RESUMO: O presente artigo faz uma breve análise da atuação da Defensoria Pública como ponte de acesso à justiça às pessoas em condições de vulnerabilidade social com a missão de compelir o Poder Público a fornecer medicamentos de alto custo aos indivíduos carentes de recursos. O pleito por medicamentos essenciais à cura ou ao controle da enfermidade é extremamente oneroso, sendo fundamentado no direito à vida e à saúde, decorrência inafastável da imposição estatal de promover o bem de todos, assegurando a saúde como corolário da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental em torno do qual gravitam todas as normas jurídicas e fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme art.1.°, inciso III, da Constituição Federal.
Palavras chaves: DIREITO – VIDA - SAÚDE – MEDICAMENTOS - DIGNIDADE HUMANA – DEFENSORIA PÚBLICA – ACESSO – JUSTIÇA – HIPOSSUFICIENTES.
SUMÁRIO:1. Introdução; 2. A Defensoria Pública; 2.1. Escopo da Defensoria Pública; 2.2. O Papel da Defensoria Pública no acesso à justiça; 3. Ascensão da Dignidade da Pessoa Humana como corolário da concretização do direito à saúde; 4. O Direito à Saúde; 5. Ativismo Judicial em relação às Políticas Públicas e o Pós-Constitucionalismo; 6. A Jurisprudência dominante no País; 7. Conclusões; 8. Referências.
Introdução
O Brasil tem hoje mais de 240 mil processos envolvendo questões relacionadas à saúde. Esses dados fazem parte de um estudo em fase de conclusão, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, que começou em 2010, com o Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde. O CNJ constatou que tramitam no Judiciário brasileiro 240.980 processos judiciais na área de saúde – as denominadas demandas judiciais de saúde. A maior parte dessas ações refere-se a reivindicações de pessoas que buscam na Justiça acesso a medicamentos e a tratamentos médicos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), bem como vagas em hospitais públicos e ações diversas propostas por usuários de seguros e planos privados junto ao setor.
É nessa hodierna conjuntura que o presente trabalho analisa, sem anseio de esgotar o tema, à vista da complexidade e contemporaneidade, a nova ordem jurídica quanto ao acesso à Justiça visto como direito autônomo, impulsionando o papel da Defensoria Pública de garanti-lo às pessoas em condição de vulnerabilidade social, máxime quando se busca efetivar através do Judiciário a garantia do direito à saúde, para compelir o Estado ao fornecimento de medicamentos de alto custo para o tratamento de doenças que atingem a população carente do país.
O tema será tratado à luz da Constituição Federal, da doutrina e da jurisprudência mais atualizada do país, expondo a importância da Defensoria Pública no acesso à justiça às pessoas desprovidas de finanças, com argumentos favoráveis à procedência do pedido nessas ações, fazendo-se um contraponto entre a reserva do possível versus o mínimo existencial, tendo como eixo fundamental a promoção da dignidade da pessoa humana, prevista como princípio fundante do Estado Democrático de Direito (CF/88, art. 1.º, III).
Noutra quadra, examinam-se as mais recentes jurisprudências sobre o tema, com especial enfoque nas recentes decisões judiciais lavradas pelo Supremo Tribunal Federal, com o advento de debates e discussões com a sociedade civil, para tentar pacificar o posicionamento a ser adotado pelos juízes e Tribunais, pertinente ao julgamento das ações de medicamentos às pessoas com insuficiência de recursos.
Ademais, será abordada a questão da judicialização das políticas públicas e o papel do Poder Judiciário nessa perspectiva, além das celeumas relacionadas aos limites da obrigação constitucional do Estado com o direito à saúde, reconhecendo a possibilidade de todos os entes Federativos (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios), integrarem o pólo passivo dessas ações, sendo solidariamente responsáveis pela efetivação desse direito.
A Defensoria Pública
A Defensoria Pública é a instituição essencial à função jurisdicional do Estado, sendo o órgão constitucionalmente predestinado a efetivar a íntegra garantia à dignidade da pessoa humana e à plena busca da felicidade aos menos abastados, com o compromisso fundamental de tentar a máxima erradicação da miséria e a criação de oportunidade para todos os indivíduos, tornando-os cidadãos.
Veja-se que já no primeiro artigo da Lei Complementar n. 80, de 12 de janeiro de 1994, com as recentes alterações da Lei Complementar n. 132, define-se o perfil instrumental e a função da Defensoria Pública, nos seguintes termos:
“Art. 1º. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal.” ((Brasil, Lei Complementar Federal n. 80, de 12 de Janeiro de 1994).
Nesse contexto, importa obtemperar que é exigência do Estado Democrático de Direito não somente a procura de repartição igualitária de oportunidades, com respeito e consideração aos direitos fundamentais, mas a conversão desses dogmas em realidades vivenciadas no cotidiano, ocasionando concretamente o imediato acolhimento às necessidades dos menos favorecidos.
É nessa perspectiva que se envolta a Defensoria Pública, como instituição capaz de garantir os interesses e direitos a que fazem jus às pessoas necessitadas de recursos financeiros, para que o ideal de Estado Democrático seja posto em prática. Dessarte, a Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988, cuidou de estabelecer uma norma impositiva entregando ao Estado a obrigação constitucional de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (CF/88, art. 5.º, inciso LXXV), incumbindo à Defensoria Pública o desempenho dessa garantia, dando orientação jurídica e promovendo a defesa, em todos os graus, dos necessitados na forma da lei, consoante estabelece o art. 134, caput, da nossa Carta Magna.
Escopo da Defensoria Pública
Como dito, a nossa Carta Magna encarregou a Defensoria Pública da função precípua de garantir assistência integral e gratuita, seja judicial ou extrajudicial, em todos os graus, aos que se declararem economicamente carentes de recursos, ou seja: àqueles que não possam arcar com as despesas e encargos decorrentes de um processo judicial ou administrativo, nem possam contratar um advogado para patrocinar sua defesa ou a garantia de um direito com a efetivação do adequado acesso à justiça.
Todavia, a tarefa de destrinchar os objetivos a serem alcançados por essa instituição, ficou a cargo da legislação infraconstitucional. Nesse passo, impende dizer que é na Lei Complementar n. 80, de 12 de Janeiro de 1994, com as alterações geradas pela retrocitada Lei Complementar n. 132, de 07 de Outubro de 2009, notadamente no art. 3.º-A e incisos, que se encontram expressamente consignados os objetivos da Defensoria Pública. Vejamos o citado dispositivo legal:
Art. 3º-A. São objetivos da Defensoria Pública:
I – a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais;
II – a afirmação do Estado Democrático de Direito;
III – a prevalência e efetividade dos direitos humanos; e
IV – a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. (Brasil, Lei Complementar Federal n. 80, de 12 de Janeiro de 1994).
Portanto, é imperioso destacar que é a Defensoria Pública instituição permanente essencial e vocacionada à eficácia das disposições constitucionais e dos tratados internacionais firmados pelo Brasil, a fim de dar efetividade e concretude aos seus comandos essenciais. Nesse passo, importa consignar que o fortalecimento e a valorização dessa instituição, com a dotação de recursos financeiros próprios condizentes com o seu papel de protagonista no Estado Democrático de Direito é uma conquista inalienável de toda a sociedade brasileira.
O Papel da Defensoria Pública no acesso à justiça
Impende nesse momento ressaltar, é que na realidade não se existirá democracia e não se promoverá cidadania se não for garantida ao indivíduo a mesma qualidade de acesso à justiça como a de qualquer outra pessoa dotada de bens e posses, a fim de fazer valer seus direitos e interesses postulando em juízo em igualdade de condições e paridade de armas.
Assim, apenas se formará cidadãos em equidade de direitos e deveres, se a todos, independentemente da classe sócio-econômica a que pertençam, forem dadas as mesmas oportunidades e os mesmos instrumentos legais e processuais de acesso ao Judiciário, para poderem lutar por seus direitos e interesses nas mesmas hipóteses em que lutariam pessoas dotadas de riquezas, inseridos na mesma sociedade.
Desse modo, percebe-se que além do indispensável acesso aos direitos sociais, como saúde, lazer, educação, habitação, trabalho e segurança, torna-se indissociável da ideia de Estado Democrático de Direito o pleno e eficaz acesso à justiça, como forma de crescimento social do homem e da sociedade.
Isso se torna uma ingrata realidade, na medida em que a existência de direitos fundamentais, sem a possibilidade de torná-los concretos no dia-a-dia do cidadão, sentindo e usufruindo dos seus direitos individuais e coletivos, é um intolerável resquício de um Estado fracassado nas suas promessas e objetivos consagrados como diretriz constitucional a ser seguidos pela República Federativa do Brasil, que se diz constituir em Estado Democrático de Direito (CF/88, art. 1.°, caput).
Nessa perspectiva, temos que a obtenção do acesso à justiça, com a participação equivalente dos indivíduos dentro da sociedade, assegurando celeridade na prestação jurisdicional com a garantia do bem da vida desejado, dando-lhes a tutela jurisdicional requerida em tempo razoável e com eficiência, é princípio fundante de um país que busca seu crescimento social, cultural e econômico, tornando-se uma potência mundial, porque a garantia e a defesa dos hipossuficientes são, em última análise, a garantia e a defesa do próprio Estado de Direito, porquanto o que se busca é contribuir com máxima efetividade ao princípio constitucional da igualdade.
Temos a cidadania e a dignidade humana como fundamentos da República Federativa; e como objetivos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com a promoção do bem de todos, sem discriminação, de origem, raça, cor, idade, sexo ou quaisquer outros tipos, como àquela por pertencer à determinada classe social. É por essa razão que o Estado é forçado a prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
Nesse contexto, percebemos então um dos mais importantes papéis do Estado: a efetivação e a defesa dos direitos fundamentais de modo igualitário, de maneira a garantir a cada um e a todos a imediata ação da Justiça, fazendo com que pobres e ricos tenham a mesma qualidade de serviço público prestado pela jurisdição.
A defesa gratuita é dever do Estado que preceitua entre seus fins, erradicar a pobreza e promover o bem de todos. Igualmente, é direito inalienável do despojado de riquezas, sendo certo que a assistência judiciária gratuita é corolário do Estado Democrático de Direito, sendo exercida pela Defensoria Pública, que na Administração da Justiça, é instituição essencial à função jurisdicional do Estado como legítima função social, tornando-se sua ação de promoção e proteção dos pobres um agente de mudança, haja vista que assegura amparo jurídico aos necessitados na forma da lei fomentando grandes transformações sociais como um autêntico agente político do Estado.
Desse modo, é imperioso concluir que é o defensor público, mais do que qualquer outro operador da ciência jurídica, o profissional mais capacitado a prestar todo o amparo e proteção jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, para efetivamente desfrutar de seus direitos e interesses, asseverando o íntegro acesso à justiça, que hoje é visto como direito autônomo, sendo um dos princípios fundantes do Estado Democrático de Direito, fincado no princípio constitucional da igualdade.
Isso porque é o defensor público o agente estatal mais próximo da realidade vivenciada pelo indivíduo pobre, captando com maior imediatismo e sensibilidade o cotidiano dramático do povo humilde, utilizando-se de um conteúdo humanístico e instrumental de sua missão como agente de transformação social, buscando solucionar as contendas envolvendo essas pessoas carentes de recursos econômicos na melhor forma de direito e justiça, mas também, transformando o indivíduo em cidadão, com informação, educação e formação ética, fornecendo-lhes todo o arsenal imprescindível na busca por seus direitos na ordem jurídica, impedindo que o poder do Estado se torne excessivo e violador de garantias individuais e coletivas, com prejuízo a camada mais pobre da sociedade.
Ascensão da Dignidade da Pessoa Humana como corolário da concretização do direito à saúde
O artigo em comento traz como temática a obrigação do Estado em fornecer medicamentos de alto custo às pessoas carentes, com fundamento no direito à saúde, previsto constitucionalmente nos art. 6.° e art. 196 e seguintes da Constituição da República, que o categorizam como direito social de segunda geração, tendo como consequência a imposição ao Poder Público do dever de promover o bem de todos, assegurando saúde aos que dela necessitem, como corolário da dignidade da pessoa humana fundamento da República Federativa do Brasil (CF/88, art. 1.°, inciso III), sendo o eixo fundamental em torno do qual giram todas as normas jurídicas.
Destarte, temos que é a dignidade humana o núcleo informador de todo o ordenamento jurídico brasileiro. Para a sua observância, não há como considerar as normas de conteúdo social como desprovidas de normatividade. A própria Constituição Federal vigente, reconhece os direitos sociais como direitos fundamentais, tendo em vista a sua importância para a consecução do bem comum e, em última análise, para a inserção das pessoas na sociedade.
A dignidade da pessoa humana está diretamente relacionada com os direitos fundamentais, e esses direitos variam de acordo com a história e os valores de cada sociedade. Assim, podemos dizer que a dignidade humana é a pedra de toque e o alicerce dos direitos fundamentais sem a qual o indivíduo passa a ser coisificado, deixando de ser visto como ser humano.
Os direitos fundamentais podem ser entendidos como um conjunto de princípios e regras que possuem um elevado grau de normatividade capaz de impulsionar os dons e o potencial das pessoas, fazendo com que elas sejam vistas como seres autônomos e independentes, capazes de se desenvolver perante a sociedade em que vivem.
Segundo o jurista Ingo Wolfgang Sarlet, in Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2.ª ed, revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002, p. 62, a dignidade humana é:
“a qualidade intrínseca e distintiva de cada Ser Humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”. (Ingo Wolfgang Sarlet. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2.ª ed, revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002, p. 62).
As lições da doutrina e da jurisprudência demonstram que a promoção da dignidade humana passa pela plena garantia do direito à saúde, por isso que na atual ordem jurídica o direito fundamental à vida (CF/88, art. 5.°, caput), consiste no direito a viver bem, com saúde e dignidade, cominando ao Estado o dever de conceder oportunidades a todos os indivíduos para a busca da felicidade, reconhecendo que os direitos sociais são igualmente direitos fundamentais, (Capítulo II do Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais), com aplicação imediata (CF/88, art. 5.°, § 1°), além de inaugurar um Estado Social (CF/88, arts. 1° e 3°), que para sua real concretização requer a aplicação dos direitos sociais.