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O direito de propriedade no Brasil

As mazelas decorrentes de uma concepão liberal do Direito

Agenda 02/01/2017 às 17:36

O presente artigo busca resgatar o processo de evolução legislativa do direito à terra no Brasil, confrontando eventos históricos para demonstrar como a concepção liberal, aliada a outros fatores, contribuiu para multiplicação de conflitos pela terra.

1. Introdução.

O presente artigo tem por objetivo estabelecer um referencial teórico sobre o direito à terra, apresentando alguns dos principais conflitos relacionados ao tema no país.

Nesse sentido, verificou-se como a concepção do Estado Liberal, aliada a outros elementos problemáticos como a ascensão do Regime Militar e a política econômica efetivada por meio dos planos de desenvolvimento econômicos, resultaram em um cenário complexo de exclusão, desigualdade e violência no âmbito da terra.

Por esta razão, a superação do Estado Liberal pelo Estado Democrático de Direito, com a promulgação da Constituição de 1988 e a elevação da dignidade da pessoa humana como valor fundamental do Estado, nos levam a reflexão sobre os meios de superação desses problemas, de acordo com as considerações tratadas a seguir.

2. O surgimento do direito à terra.

A pesquisa pelas primeiras referências sobre o direito à terra nos remete ao surgimento da propriedade[2] (latu sensu), que segundo Comparato (2000, p. 131), surge nas civilizações antigas (Grega e Romana) atrelada a uma relação espiritual ou religiosa que se estabelecia entre a coisa e proprietário, e dessa forma tinha uma importância singular na organização institucional da sociedade.

O autor registra que, por sua vez, em sua concepção moderna, a propriedade foi inteiramente desvencilhada deste caráter religioso ou sagrado e passou a ter um sentido de mera utilidade econômica, havendo sido concebida como poder absoluto sobre determinada coisa, segundo o código burguês de Napoleão.

Comparato (2000, p. 134 -135) nos informa, a seguir, a evolução da propriedade, enquanto fenômeno social, registrando como houve, dentro da sociedade burguesa, uma separação entre Estado e sociedade civil, entre indivíduo ou homem privado e cidadão, levando a um conceito de propriedade fundamentado na proteção do indivíduo em sua esfera de liberdade, contra as ingerências do Estado.

Ora, a propriedade passou a ser exigência natural de subsistência do indivíduo e “o mais sagrado de todos os direitos dos cidadãos e mais importante, de certa forma, do que a própria liberdade” na expressão de Rousseau, apud Comparato (2000, p. 135), chega a ser considerada, o fundamento do pacto social, e a condição sem a qual a sociedade não poderia subsistir, se cada qual não pudesse se manter tranquilo no gozo daquilo que lhe pertence.

No mesmo sentido, interessante registrar como para Locke apud Secreto (2007, p. 17), a propriedade e a atividade econômica sempre estiveram presentes no homem, por isso, quando o desenvolvimento dessas atividades alcançou um grau de complexidade incompatível com a ausência de instituições políticas é que se criou a sociedade civil.

Secreto (2007, p. 17), com fundamento nas lições de Locke, considera que a propriedade vem do estado de natureza, não por consenso, mas por direito natural, conquistado antes da instituição do Estado Social, por meio do trabalho do homem, e podendo ser definida, como a própria vida, a liberdade e os bens[3]. Por tudo isso, tal a importância dada a este direito.

Com o exposto até aqui, podemos perceber um direito de propriedade coerente com a tradição liberal, cuja característico era a de garantir os direitos da burguesia, se opondo ao poder absoluto do monarca.

Ora, essa relação entre a propriedade e a concepção do Estado é verificada em Paulsen (1998, p. 130) que considera que a concepção que se tem do direito de propriedade é uma decorrência da cultura, do sistema político e do ordenamento jurídico de cada país.

Ademais, para este citado autor o direito de propriedade é um direito de primeira geração ligada a sua função social, cuja evolução foi marcada desde a Constituição Imperial, que garantia o gozo pleno da propriedade, até a Constituição de 1988, que asseverou o dever de observância da função social da propriedade.

Entretanto, hoje é consenso entre a doutrina que o conceito de direito de propriedade ultrapassou os limites de simples direito de primeira geração, assim como o Estado não é mais um Estado liberal. A bem da verdade, considera-se que o conceito tradicional de direito de propriedade formulado pelas correntes liberalistas não foi recepcionado pela Constituição de 1988, haja vista que é incompatível com a novel ordem jurídica.

Ora, Silveira (1998, p. 11) assevera que o conceito absoluto de propriedade, a quem em geral os operadores de direito prestam culto, persiste apenas como uma projeção mental, não guardando relação com a realidade social e, tampouco, sendo funcional no sistema.

Nesse sentido, Mendes (2009, p. 467), que considera “propriedade” um conceito amplo que designa diferentes valores a serem protegidos pela Ordem Constitucional, destaca que o direito de propriedade ultrapassou o sentido tradicional desde a Constituição de Wiemar, para alcançar uma gama de valores e relações de índole patrimonial.

Hoje, o direito de propriedade consagrado na Constituição Federal de 1988, por intermédio do princípio da função social, se relaciona diretamente com princípios constitucionais, direitos de identidade de grupo, direitos sociais, e valores imateriais também garantidos pela Constituição, conforme restará demonstrado no desenvolver deste trabalho.

Por isso, ao se utilizar da expressão “direito à terra” tem-se por objetivo referir-se a um direito fundamental que ultrapassa a concepção do direito de propriedade concebido tradicionalmente pelo direito civil, e cujo conteúdo abrange os direitos ao acesso à terra e à manutenção pacífica da posse ou domínio, mas que também significa o direito as relações imateriais e/ou espirituais entre terra e sujeito, o direito à identidade cultural e à dignidade dos ocupantes das terras como, por exemplo, se observa na relação entre terra e populações tradicionais.

Dessa forma, apesar de limitada, esta exposição, sobre o direito de propriedade, será capaz de introduzir o tema; veremos a seguir como o direito de propriedade liberal deu origem ao direito à terra, que, no Brasil foi normatizado pela lei portuguesa de Sesmarias, promulgada em Portugal em 1.375, e tinha por objetivo o maior aproveitamento das terras pelos proprietários portugueses, sob pena de confisco das mesmas e acabou sendo utilizada como meio de distribuição de terras para a Colonização do Brasil, tendo vigorado aqui até 1822.

3. As primeiras manifestações sobre o direito à terra no Brasil: A lei de Sesmarias e a Lei de Terras.

Embora o Brasil tenha sido descoberto em 1500, sua colonização teve início apenas em 1532 e apenas em 1549 Tomé de Souza foi nomeado governador, assumindo a jurisdição do território com auxílio de um Ouvidor-mor e um Provedor-mor, para o trato das questões judiciais e fazendárias, respectivamente.

Nesse período colonial, o direito à terra no Brasil foi exercido com base na legislação Portuguesa, principalmente a Lei de Sesmarias; durante muito tempo não houve poder judiciário ou exercício de jurisdição na colônia, apenas o exercício de atribuições por parte do governador e de seus auxiliares.

A respeito do regime de Sesmarias no Brasil colonial, registra que, com o esforço português para expansão mercantilista e a chegada aqui dos conquistadores Ibéricos, a coroa Portuguesa, após passar um período em que o extrativismo do pau-brasil era praticamente a única atividade, decidiu iniciar no país um projeto de colonização baseado na concessão de terras à particulares, em geral nobres da Coroa Portuguesa ou plebeus enriquecidos pela mercancia, que fossem capazes de garantir a exploração econômica e a manutenção do território.

Segundo Trecanni (2001, p.1), antes mesmo da descoberta do Brasil, pelo direito de conquista, pelo reconhecimento papal e pela diplomacia internacional, todas as terras no Brasil eram consideradas propriedade do rei, de modo que, a partir de então, toda e qualquer propriedade particular apenas seria legalmente reconhecida se devidamente comprovada sua transição da propriedade real ou pública para a propriedade particular.

Para Marques (2010, p. 22), com o “descobrimento” do território, a Coroa Portuguesa incumbiu, em um primeiro momento, a Martin Afonso de Sousa, nos idos de 1531, a tarefa de colonizar o Brasil, momento em que a legislação Portuguesa passou a vigorar no território da Colônia.

Deste modo, estando em vigor, em Portugal, o chamado regime de Sesmarias, instituído por meio de decreto de 26 de junho de 1375, foi este o regime pelo qual as terras no Brasil foram cedidas aos “amigos do Rei” a partir da Carta Foral, de 06 de outubro de 1531.

Segundo Nozoe (2006, p. 588), a Lei de Sesmarias se constitui no principal meio de promoção da colonização e do aproveitamento dos vastos territórios do além mar que a expansão ultramarina colocou sob o domínio da Coroa lusitana.

Costa (1999, p. 173) registra como a propriedade de terras no Brasil Colonial, por meio de concessão de sesmarias, era um reflexo de prestígio social e um reconhecimento da Coroa em relação ao beneficiário; logo, a propriedade de terras estava relacionada a um status social.

A mesma autora ainda assevera que o regime de terra no Brasil Colonial foi organizado como uma empresa comercial regida por concepções rurais, feudais e mercantis que traduziam a política rural de Portugal da era medieval.

Segundo Marques (2007, p. 23), inúmeras concessões foram realizadas, principalmente entre 1726 e 1756. Segundo Trecanni (2001, p. 2), caso as terras cedidas em Sesmarias não fossem cultivadas deveriam ser “cedidas” a título de pensão ou quota determinada a quem as pudesse cultivar, sob pena de confisco e retorno da propriedade ao patrimônio real. É o que se verifica do trecho da referida lei, transcrito a seguir:

Todos que tiverem herdades próprias, emprazadas, aforadas ou por qualquer outro título, que sobre as mesmas lhes dê direito, sejam constrangidos a lavrá-las e semeá-las. Se por algum motivo legítimo as não puderem lavrar todas, lavrem a parte que lhe parecer podem comodamente lavrar, a bem vistas e determinação dos que sobre este objeto tiverem intendência; e as mais façam-nas aproveitar por outrem pelo modo que lhes parecer mais vantajoso de modo que todas venha a ser aproveitadas. [...] não tratando de aproveitar por si ou por outrem as suas herdades, as justiças territoriais, ou as pessoas que sobre isso tiverem intendência, as dêem as quem as lavre, e semeie por certo tempo, a pensão ou quota determinada. Todos os que tiverem herdades próprias, emprazadas, aforadas ou por qualquer outro título esta feita, tendo iniciado a ocupação (TRECANNI, 2001, p. 2).

Se observa também que o Regime de Sesmarias tinha por objetivo o aproveitamento da terra, sendo considerada por Trecanni (2001) a primeira lei na história do Brasil que intentou algum tipo de reforma agrária e um conteúdo implícito do princípio da função social da terra, em que pese ter beneficiado prioritariamente a elite local, tendo em vista que a concessão de Sesmarias era feita de forma arbitrária.

A posteriori, há também um relativo consenso em considerar o insucesso na lei de Sesmarias no Brasil, em geral, pela distorção da lei em função da disparidade entre a realidade da Metrópole e da Colônia.

Marques (2007, p. 23) aduz que uma análise perfunctória do texto da lei de sesmarias leva o observador a concluir, desde logo, que as sesmarias não se adequavam ao Brasil, haja vista que aqui a lei tinha outro sentido; aqui as terras eram virgens e o instituto se assemelhava a uma enfiteuse, enquanto que em Portugal as terras eram subaproveitadas e o instituto se assemelhava a um tipo de confisco.

Para Trecanni (2001, p. 1), há um consenso entre os pesquisadores do tema em reconhecer que a aplicação da legislação portuguesa nas terras do Brasil Colonial, sem a preocupação por parte da Coroa em estabelecer aqui uma legislação capaz de responder a realidade social da época e os anseios deste modelo de colonização que se iniciava, acabou por gerar uma ineficácia da lei, principalmente no que concerne à questão da aquisição de terras, multiplicando-se situações, de fato, à margem do direito vigente.

Pelos mesmos motivos Nozoe (2006, p. 589), considera que a aplicação da lei de Sesmarias no território brasileiro resultou no uso mais ou menos generalizado da posse como recurso de acesso à terra e, por sua vez, na suspensão das concessões em 1822, até a alteração completa do regime com a Lei de Terras de 1850, em razão da falta de adaptação daquela lei à realidade fundiária brasileira.

Destarte, podemos perceber como o direito à terra no Brasil foi concebido por meio de um viés absolutamente aristocrático, em que a terra era sinal de poder, status e proximidade política com a Coroa Portuguesa.

Nesse sentido, Pereira (2000, p. 107) considera que a forma como a colonização foi implantada no Brasil permitiu que a terra adquirisse prestígio e poder, fazendo com que as concessões de Sesmarias ficassem impregnadas de um caráter nítido e exclusivamente econômico, perdendo sua conotação social.

De fato, a Lei de Sesmarias demonstra a falta de interesse da Metrópole em regular os direitos da população à margem da aristocracia colonial, por isso, ao tempo em que as sesmarias eram concedidas, igualmente crescia o número de pessoas que se imitiam na posse de pequenas propriedades. Para Secreto (2007), enquanto a Sesmaria era o latifúndio inacessível ao colono e ao lavrador, a posse tornou-se comum, em razão da necessidade e da ausência de políticas públicas voltadas para a população em geral.

A mesma autora diz que a posse pura e simples foi, de fato, o meio mais efetivo do ponto de vista da apropriação territorial e a única forma de aquisição de terras entre o fim do regime de Sesmarias e a Lei de terras de 1850.

Por esses motivos, ponto de fundamental registro é o sistema de posse, que passou a vigorar no Brasil com a resolução n.º 76, de julho de 1827. Posteriormente, com uma Provisão de 22 de outubro de 1823, foram suspensas a concessão de novas sesmarias, proibindo-se a confirmação daquelas que, até então, haviam sido concedidas. A partir de então, a posse comprovada passou a prevalecer em relação às sesmarias anteriormente concedidas.

Segundo Mattos Neto (2006, p. 105) o pequeno lavrador e o imigrante europeu tiveram acesso à terra com base na posse legitimada pelo costume jurídico, que passou a ser, no período posterior à revogação da lei de Sesmarias, única fonte jurídica de consolidação da posse no patrimônio do colono, já que inexistia lei expressa que instituísse a “posse como cultura efetiva”, para fins de aquisição do domínio da terra.

Trecanni (2001, p. 8) observa que no período em que houve um vazio de regulamentação, favoreceu-se o regime do mais forte, em que aquele que tinha maiores condições se apossava de extensões maiores de terras. Nesse sentido, o mesmo autor assevera que este tipo de ocupação, que ocorria totalmente à revelia do ordenamento jurídico vigente, acabou, ao longo dos anos, criando um Brasil Real bem diferente do Brasil Legal (Trecanni, 2001).

Nesse sentido, nota-se que quando houve a promulgação da lei n.º 601 de 1850, Lei de Terras, o Brasil já vivia a vinte oito anos sob a égide da Constituição Imperial de 1824 e a trinta anos sem uma legislação específica sobre terras.

Marques (2007, p. 24) considera que o período que o Brasil passou sem uma legislação de terras foi demasiado, contribuindo para uma ocupação desordenada, o que culminou em quatro tipos propriedades de terra no Brasil, a saber: a) as propriedades legítimas com títulos e confirmações de sesmarias; b) os possuidores de terra de sesmarias sem a confirmação das mesmas; c) os possuidores sem título algum; e d) as terras devolutas, dadas em sesmarias e devolvidas.

Já em 1850, com a promulgação da Lei de Terras e a proibição da aquisição de terras pública por outro meio que não fosse a compra, aduz Costa (1999, p. 171) que tanto os posseiros ilegais quanto os sesmeiros que não preencheram as exigências à validação da concessão puderam registrar suas terras junto à Repartição de Terra Públicas, com o pagamento das taxas devidas e após a demarcação das terras segundo os limites estabelecidos para estas propriedades.

Entretanto, Mattos Neto (2010, p. 21), chama atenção para o modo como a Lei de Terras inspirou-se na colonização sistemática de Wakefield, que consistia em estabelecer um preço tão alto à terra que a população pobre não pudesse ter acesso a ela, ocasionando assim uma maior oferta de mão de obra.

A lógica era a seguinte: a terra era tão cara que o colono ou o imigrante não tinham outra opção a não ser trabalhar para quem tivesse condições de comprá-la.

Costa (1999, p. 172) ainda registra como a mudança de atitude com relação à terra correspondeu a uma mudança de atitude em relação ao trabalho, em que a escravidão foi substituída pelo trabalho livre, asseverando que além de impedir a compra de quem aqui já estava, o dinheiro arrecado com a venda das terras ainda ajudava a custear a vinda de mais trabalhadores europeus para o Brasil.

Foi dessa forma que se criou um contingente de mão de obra capaz de atender aos interesses econômicos da elite fundiária e permitiu alguma ordem na estrutura fundiária caótica.  

Cabe ainda ressaltar que a Constituição Imperial foi outorgada inteiramente sobre a influência do pensamento Liberal, rompendo com a juridicidade da Metrópole e estabelecendo aqui um conceito de propriedade baseado no gozo pleno e absoluto da propriedade, conforme se observa pela transcrição dos termos do Art. 179 daquela Constituição, in verbis:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.

XXII. E'garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação (BRASIL, 2014).

Ora, o que se observa no texto acima é que o objetivo do legislador Constitucional do Império para com o direito de propriedade do cidadão era que este pudesse ser gozado de forma absoluta, com única exceção no interesse do Estado.

Posteriormente, sob a égide da Constituição Imperial de 1824, a lei n.º 601 de 1850 - Lei de Terras - acabou por reconhecer a aquisição da propriedade pela posse com cultura efetiva.

No que tange especificamente à Lei de Terras, alguns pontos merecem destaque. A princípio, o art. 4º da referida lei possibilitou a confirmação de sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial, que se achassem cultivadas, ou com princípios de cultura e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionário; ou de quem os representassem, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições com que foram concedidas.

Já o Art. 5º findou por permitir que fossem legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se achavam cultivadas, ou com princípio de cultura e morada habitual do respectivo posseiro, ou de quem o representasse.

Nesses termos, importante ressalva foi feita pelo § 2º do mesmo artigo, que previu que as posses em circunstâncias de serem legitimadas, que se achassem em sesmarias ou outras concessões do Governo, mas que não tivessem sido revalidadas por esta Lei, só dariam direito à indenização pelas benfeitorias, salvo o caso de verificar-se a favor da posse qualquer das seguintes hipóteses: a) ter sido declarada boa por sentença passada em julgado entre os sesmeiros ou concessionários e os posseiros; b) ter sido estabelecida antes da medição da sesmaria ou concessão, e não perturbada por cinco anos; c) ter sido estabelecida depois da dita medição, e não perturbada por 10 anos.

Ora, não obstante a inovação no ordenamento jurídico, Laranjeiras apud Marques (2006, p. 26) registra as observações de Messias Junqueira, lamentando as frustrações da Lei n.º 601 de 1850; ao observar a falta de pessoal habilitado, tanto para o desempenho do ofício de Juiz Comissionário, como para o exercício do emprego de Inspetor de Medição de Terras vagas em 1854. A área assombrosamente elevada de posses para levantar e de terras devolutas para medir, a dificuldade de penetração do escasso pessoal burocrata em zonas invioladas além de outras circunstâncias, conspiraram contra a lei n.º 601 de 1850.

Marques (2006, p. 24) ainda assevera como a Lei Imperial não foi capaz de operar os resultados práticos esperados e como a estrutura agrária brasileira foi um problema que passou do Império para a República.

Dessa feita, a Lei de Terras de 1850 vigerá até 1964, quando da publicação do Estatuto da Terra.

4. O direito à terro no Regime Militar: Os Planos de Desenvolvimento Econômico e o Estatuto da Terra.

O Estado Brasileiro, após a morte de Vargas, ainda foi marcado pela ascensão do Regime Militar que, segundo Matos (2002, p. 46) teve como uma de suas principais característica a emergência do modelo de gestão por meio dos planos econômicos.

Nesse sentido, os diversos planos de desenvolvimento para o Brasil também são elementos críticos na estruturação da realidade fundiária nacional, principalmente para a Amazônia, nesse sentido o primeiro e o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, que tiveram grande na conformação do espaço geográfico brasileiro, de maneira que o breve registro é valido.

O I Plano Nacional de Desenvolvimento, que tinha como um dos principais objetivos o de colocar o Brasil na categoria de nação desenvolvida, aumentando o PIB e a renda per capita, além de garantir o investimento em diversos setores, buscava, de acordo com Bomfim (2010, p. 19), “integrar para desenvolver”. Segundo o autor, acerca da integração desde 1964, um conjunto de leis e medidas administrativas, conhecidas como Operação Amazônia, vinha sendo elaborado para garantir a consecução dos objetivos nacionais na Amazônia. Dentre elas, destaca-se a criação do Banco da Amazônia S. A. (BASA) e da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), substituindo a antiga Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA)

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Já o II Plano Nacional de Desenvolvimento, elaborado durante o governo Geisel (1975 – 1979), segundo Matos (2002, p. 50), mudou a ênfase do desenvolvimento para a indústria de bens de capital, admitindo a necessidade de uma reconstrução estrutural, alterando as prioridades na industrialização brasileira, investindo na indústria siderúrgica e de meios de produção.

Assim, de acordo com Bomfim (2010, p. 20), na Amazônia, o II PND desenvolveu-se pela conjugação entre o Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia (Polamazônia) e outras três iniciativas de ocupação da região: o Complexo Mínero-Metalúrgico da Amazônia Oriental, a Política de Desenvolvimento de Recursos Florestais Uso Racional dos Solos da Amazônia e o Distrito Industrial da Zona Franca de Manaus, todos com objetivo de tirar proveito da infraestrutura regional implantada pelo I PND e seus complementos, para que se efetivasse a estratégia de integração e desenvolvimento.

Ora, dessa forma, até aqui se observa como a gestão do Estado Brasileiro foi marcada, durante o período Republicano, pelos interesses da elite fundiária brasileira, e durante o Regime Militar, pelas tensões decorrentes do intervencionismo da época na economia e em diversas áreas da sociedade.

Nesse sentido, no âmbito legal, a maior alteração trazida pelo período militar, certamente foi o advento da Lei n.º 4.504 de 1964, Estatuto da Terra. É importante observar que o Estatuto da Terra, Lei n.º 4.504 de 1964, foi considerado por Martins apud Trecanni (2001, p. 136) como uma proposta para munir o Estado de instrumentos que lhe permitiam administrar os conflitos no campo. No mesmo sentido, Celestino e Rocha (2010) chegaram a considerar que referida lei foi apenas uma resposta militar ao clima de revoltas camponesas que se espairava pelo país.

Trecanni, (2001, p. 119) referiu-se ao Estatuto da Terra por “engodo”, asseverando que mesmo reiterando diversas vezes o ideal de justiça e a necessidade de cumprimento da função social da propriedade, o Estatuto, ao definir empresa rural ou ao dispor sobre as áreas passíveis de desapropriação, aparentemente esqueceu a função social que havia afirmado, daí porque de se considerar a lei um engodo formal. Ainda assim, a título de esclarecimento, alguns pontos da lei merecem destaque.

A princípio, o advento da Lei n.º 4.504 de 1964, Estatuto da Terra, trouxe para todos os fins legais a classificação dos imóveis rurais, acrescentando a previsão da Constituição Federal de 1988 à pequena e média propriedade, além da propriedade produtiva.

O regime do Estatuto da Terra tinha, claramente, a intenção de trazer maior organização jurídica ao espaço fundiário brasileiro, ao classificar os tipos de imóveis existentes e trazer regras e institutos jurídicos até então inexistentes.

Deste modo o imóvel rural passou a ser classificado em propriedade familiar, módulo rural, minifúndio, latifúndio e empresa rural, além das já mencionadas classificações constitucionais. Esta foi a primeira vez que a lei se ocupou em classificar os imóveis rurais, trazendo uma definição de cada tipo de imóvel.

Nesse sentido, cabe esclarecer, em poucas linhas, as definições trazidas pelo Estatuto da Terra, que em seu art. 4º definiu Imóvel Rural como sendo o prédio rústico, de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer por meio de planos públicos de valorização, quer por meio de iniciativa privada.

A propriedade familiar, conceituada no inciso II, do citado artigo, segundo Marques (2005, p. 56), traz ao ordenamento jurídico brasileiro verdadeira resposta aos movimentos sociais no âmbito da terra. A lei definia "Propriedade Familiar" como sendo o imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração e, eventualmente, trabalho com a ajuda de terceiros,  porque as limitações de área e de exploração de trabalho de terceiro, impostas no inciso transcrito a seguir, segundo Marques Júnior (2012), acabam por gerar um maior número de propriedades, favorecendo a distribuição da terra.

Paulo Torminn Borges, citado por Marques Júnior (2012, p. 54), define o Módulo Rural nos seguintes termos:

[...] a área de terra que, trabalhada direta e pessoalmente por uma família de composição média, com auxílio apenas eventual de terceiro, se revela necessária para a subsistência e ao mesmo tempo suficiente como sustentáculo social e econômico da referida família.

Deste modo, verificamos que a definição de módulo rural é a mesma de propriedade familiar. Cumpre observar que o art. 5º do Estatuto da Terra assevera que a área dos módulos de propriedade rural será fixada em conformidade com as características econômicas e ecológicas da área onde estes se encontram, bem como com os tipos de exploração ou atividade nela desenvolvida.

Ademais, cumpre ainda registrar que a Lei n.º 5.368/72 criou o instituto da fração mínima de parcelamento, considerado por muitos doutrinadores um novo critério básico de parcelamento da propriedade rural, adotando-se aquele que for menor em cada região. Paulo Torminn, novamente citado por Marques Júnior (2012, p. 54), o define como:

a gleba de terra que, embora bem trabalhada pelo proprietário com sua família, e, eventualmente com ajuda de terceiro, se revela insuficiente para o sustento e o progresso social e econômico do mesmo conjunto familiar.

Para Marques Júnior (2012, p. 57), latifúndio é o imóvel rural que, tendo área igual ou superior ao módulo, é mantido inexplorado, é explorado incorretamente ou tem dimensão incompatível com a justa distribuição de terra.

Nesse sentido, o inciso V, do art. 4º do Estatuto da Terra, definia como Latifúndio o imóvel rural que excedesse a dimensão máxima fixada na forma do artigo 46, § 1°, alínea b desta Lei, tendo-se em vista as condições ecológicas, sistemas agrícolas regionais e o fim a que se destine. A lei ainda trazia uma ressalva segundo a qual o latifúndio não poderia exceder o limite referido na alínea anterior, e tendo área igual ou superior à dimensão do módulo de propriedade rural, seja mantido inexplorado em relação às possibilidades físicas, econômicas e sociais do meio, com fins especulativos, ou seja, deficiente ou inadequadamente explorado, de modo a vedar-lhe a inclusão no conceito de empresa rural.

Por fim, resta aduzir que o Estatuto de Terras também trazia a definição de Empresa Rural, Parceleiro, Cooperativa Integral de Reforma Agrária (CIRA) e Colonização.

Por estes motivos, Mattos Neto (2006, p. 108) considerou que o Estatuto da Terra foi exemplarmente técnico no trato da questão fundiária. Entretanto, o autor também considera que a referida lei teve aplicabilidade insatisfatória ao concluir que “a incipiente aplicação do Estatuto gerou maior concentração de propriedade agrária, conforme atestam os índices dos órgãos oficiais e jornais diários, ao retratarem a luta armada e as mortes pela posse da terra”.

Não obstante à técnica legislativa, a norma não foi suficiente para atender às necessidade da realidade fundiária do período, marcada pelas ingerências do Governo Militar e pela incidência dos grandes projetos na Amazônia, implantados com intermediação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), em forma de conclaves, completamente dissociados da realidade amazônica, o que culminou com a expulsão de colonos e das populações tradicionais de seus entornos.

Resultado desse processo, sob o aspecto sociológico, foi a constante ocorrência constante de conflitos na história da ocupação do território do Estado do Pará. Nesse sentido, o pesquisador paraense Ronaldo Barata produziu relevante obra na qual catalogou casos de violência no campo ocorridos durante a década de 1980, quando houveram 578 mortes registradas decorrentes da violência no campo, a maioria de posseiros e peões.

Outro importante registro é o fator social foi feito por Loureiro (2004, p.180). Segundo a autora diversos conflitos foram marcados pela: a) grilagem e venda fraudulenta de terras; b) colonização dirigida para a Amazônia; c) Grandes Projeto e respectivos conflitos com populações indígenas, negras e colonas; d) conflitos decorrentes da falência da Reforma Agrária no Brasil; e) conflitos decorrentes das ações judiciais com despejos de posseiros; f) conflitos decorrentes da reação ao trabalho escravo; e g) conflitos pela manutenção ou conquista de território.

Todos estes problemas, conformados durante os anos de vigência do Estado Liberal, ficaram ainda mais evidentes após a promulgação da Constituição de 1988, a partir da elevação da dignidade da pessoa humana ao status de princípio fundamental da República.

Nesse mesmo sentido, o surgimento da função social da propriedade e a aliada a alterações legislativas e reconhecimento de direitos, deram ao direito à terra uma proteção jamais vista, oportunizando ao Supremo Tribunal Federal a proteção do direito à terra em casos emblemáticos como os analisados a seguir.  

5. O discurso jurisprudencial e dogmático contemporâneo sobre os principais conflitos fundiários.

Ora, o resultado desse processo histórico-político foi a ocorrência alarmante de conflitos no campo, fato notório. Alguns desses conflitos serão apresentados a seguir, como suporte fático para as observações que se pretende, como por exemplo, o caso da grilagem.

Nesse sentido, o contexto sócio-político no Estado do Pará e na Amazônia e a luta por direitos das comunidades aqui instaladas provocaram, ao longo dos anos, a reflexão de pesquisadores, sobre o tema. Hodiernamente, muitos dos conceitos ligados a teoria do direito foram produzidos a partir da pesquisa e análise das relações locais com a terra. Dessa forma, não se pode negar a valia das relações sociais na apreensão e analise do fenômeno do direito à terra e a contribuição de novas vozes na doutrina do direito, sobre as questões fundiárias no Pará e na Amazônia e a repercussão dessas relações sociais no ordenamento jurídico.

Por isso, neste tópico analisaremos alguns dos principais movimentos e lutas sociais no âmbito da luta pelo direito à terra, quais sejam; a questão indígena, a questão quilombola e os conflitos relacionados a grilagem de terras públicas, e a respectiva repercussão na doutrina e na jurisprudência.

Nesse sentido, segundo Almeida (2008, p. 25), nas duas últimas décadas o Brasil e, principalmente, a Amazônia vêm assistindo ao surgimento de novos padrões de relação política no campo e na cidade, a partir do aumento da luta pelo exercício da territorialidade e inclusão política de movimentos sociais de grupos ligados entre si por fatores étnicos, ecológicos, critérios de gênero e de auto identificação coletiva.

O fenômeno reconhecido por Almeida corresponde ao engajamento político de grupos sociais que se auto reconhecem como portadores de uma identidade coletiva diferenciada, os quais vêm sendo tratados, mais usualmente, como comunidades tradicionais.

Para Shiriashi (2009, p. 14), a Constituição de 1988 retirou esses grupos da “invisibilidade jurídica” ao reconhecer que o Estado brasileiro é Multicultural e Pluriétnico, ou seja, dentro do território brasileiro há uma grande diversidade de formas de existência coletiva de diferentes povos e grupos sociais, entretanto, as dificuldades de efetivação dos dispositivos legais que garantem algum direito a estes grupos indicam a existência de tensões relativas ao seu reconhecimento jurídico-formal.

A Constituição, ao garantir a existência jurídica destes grupos - que foram historicamente excluídos -, direita ou indiretamente, findou por influenciar na estrutura agrária, uma vez que também garantiu o direito ao uso, posse ou propriedade, conforme cada caso, sobre as terras que essas comunidades tradicionalmente ocupam, o que gerou consequências econômicas dentro do mercado de terras na Amazônia, além de tensões políticas e sociais para a região.

A título de breve esclarecimento e panorama geral, o art. 231 da Constituição de 1988 garantiu aos povos indígenas a “posse permanente” e usufruto exclusivo dos recursos naturais em terras consideradas como “bens da união”; por sua vez, no art. 64 do ADCT, as comunidades remanescentes de quilombos alcançam a propriedade das terras que ocupam por meio de “titulação definitiva”. Noutro turno, Seringueiros e Pescadores têm direito de uso sobre bens que são considerados comuns dos povos e bens da União, respectivamente.

Entretanto, o pleno exercício dos direitos constitucionalmente garantidos a estes grupos encontra resistência em entraves burocráticos e na falta de interesse do poder público. Para Almeida (2006, p. 40), os resultados obtidos e declarados por órgão oficiais têm se mostrado inexpressivos.

Ademais, estes direitos vêm sendo confrontados judicialmente; nesse sentido, além do caso da grilagem no Estado do Pará, que ainda será mencionado, diversos processos com origem nas tensões vinculadas a interesses econômicos das áreas circundantes aos territórios tradicionais, já chegaram a instâncias superiores, havendo, inclusive, por duas vezes, chegado ao Supremo Tribunal Federal com grande repercussão a nível nacional, como: o julgamento da Petição 3.388-4 do STF, que tinha por objeto julgar a constitucionalidade do fracionamento de terras indígenas em Roraima, conforme interesse do agronegócio da região, caso conhecido como caso Raposa Serra do Sol; e a ADI 3.239, que trata da titularização de terras quilombolas em Alcântara, no Maranhão.

Em ambos os casos, o Supremo teve a oportunidade de dar contornos mais concretos aos direitos destes grupos, revelando-nos qual interpretação faz sobre o direito à terra em cada caso.

Isso ocorreu porque a posição do Supremo Tribunal Federal consolidou uma interpretação que reconhece a relação diferenciada dessas comunidades com o direito à terra e com os recursos naturais.

Segundo Siraishi Neto (2009, p. 16), inaugura-se uma nova abordagem sobre o conceito de direito à terra, que pretende romper a concepção tradicional de propriedade privada e reclama uma racionalidade jurídica própria, muito peculiar ao que se desenvolveu ao longo deste trabalho.

Essa ideia de apropriação do território não se restringe ao sentido da propriedade privada, mas ao uso que se faz dos atributos do lugar, ou seja, do controle de determinado espaço. A demarcação do território efetiva-se por meio das relações entre os membros do grupo e desses com o lugar que se estabelecem como forma de garantia de seu uso. Assim, enquanto que a propriedade se refere às situações individualizadas, cujos bens são destacados do seu contexto para a realização das trocas mercantis, o território expressa o que é vivido coletivamente por todos os membros do grupo. Para esses grupos, a terra e os recursos naturais não são passíveis de alienação, pois possuem um valor intrínseco, que não se reduz ao valor mercantil da terra, mas sim, às necessidades reprodutivas do grupo. Ademais, o território deve ser compreendido como dotado de fluidez, já que está condicionado às relações que se estabelecem no interior e ou fora do grupo social. A “insegurança”, que se manifesta nas relações sociais estabelecidas inclusive conflitivamente, é justamente a segurança que garante indistintivamente o acesso e uso da terra e dos recursos naturais por todos os membros do grupo.

Para Shiraishi Neto, a racionalidade jurídica da propriedade privada não vale para os territórios tradicionalmente ocupados, porque reduz a terra à condição de mercadoria, enquanto para as comunidades tradicionais a terra esta vinculada à própria existência.

Em outras palavras, podemos considerar que Shiraishi Neto, em um exercício no ontológico de hermenêutica, considera necessário que o conceito de propriedade aplicado aos territórios tradicionalmente ocupados, tenha fundamento na cosmovisão daquela comunidade, ou seja, que seja um conceito que reproduza a realidade daquele grupo, posicionamento compatível com as lições aqui apresentadas.

Por seu turno, Almeida (2006, p. 27-28) registra a definição daquilo que se poderia considerar como Povos e Comunidades Tradicionais, como sendo:

Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

Almeida (2006, p. 27-28) esclarece também que a relação destas comunidades com a terra e os recursos naturais se dá por meio de normas específicas, combinando uso comum de recursos e apropriação privada de bens, que são acatadas, de maneira consensual, nos meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos familiares, que compõem uma unidade social.

Ora, aos poucos o Supremo Tribunal Federal, vem demonstrando uma mudança de direção no reconhecimento dos direitos dos povos e comunidades tradicionais, é o que se verifica, por exemplo, por meio da análise de Mattos Neto (2009, p.4), que se ocupou em criticar a posição STF com relação ao direito de posse permanente e uso dos recursos naturais em terras da União pelos indígenas.

Sobre esta questão, Mattos Neto (2009, p. 14) considerou que a decisão do STF sobre a Petição 3.388-4 trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro uma leitura mais concreta sobre o estágio atual dos direitos indígenas, ou seja, para além do direito positivado, verdadeiro regime jurídico das terras indígenas.

Por isso, Mattos Neto (2009, p. 12), ocupando-se da análise de tal decisão, foi capaz de traçar um panorama aprofundado destes direitos, que alterna a confirmação de posicionamentos já consolidados, como a confirmação do direito constitucional indígena, com a posse permanente sobre as terras que ocupa tradicionalmente (artigo 231, §2º), com base no reconhecimento do direito originário sobre as terras e novas dimensões de direitos sobre a questão indígena, detalhando a utilização das terras indígenas, por exemplo, pela confirmação do direito de ir e vir de não-indígenas em terras ocupadas e a soberania dos interesses na União na utilização de recursos e na defesa da soberania nacional em terras indígenas. 

Nesse sentido, Mattos Neto (2009, p. 12) esclarece que a posse há de ser permanente, enquanto existir a agrupamento indígena. Além disso, o autor observa que nas terras indígenas o usufruto é exclusivo da comunidade indígena, razão pela qual o não-índio ou o índio de outra etnia não tem direito a usufruir. Tal fato levou o Tribunal Excelso a decidir que as terras indígenas não se prestam a ser objeto de contrato de arrendamento, parceria ou qualquer outro negócio jurídico que possa implicar em limitação ao pleno exercício do usufruto exclusivo e dos direitos possessórios pela população indígena. 

Entretanto, segundo Mattos Neto (2009, p. 14), o Supremo Tribunal Federal considerou que os interesses nacionais são superiores aos interesses indígenas em todos os sentidos. Portanto, ponderou o Supremo que a Constituição não fez nenhuma ressalva dos direitos indígenas sobre esta área de defesa nacional, e nem ainda quanto ao direito de usufruto indígena o aproveitamento dos recursos hídricos, energéticos e a pesquisa e lavra dos recursos minerais.

O referido autor considera possível a exploração econômica destas riquezas por não-índios, desde que haja interesse nacional, autorização do Congresso Nacional (artigo 49, inciso XVI, Constituição Federal) e seja garantido à etnia indígena participação nos resultados da lavra (renda), na forma da lei (artigo 231, §3º, Constituição Federal). Ele considera, ainda, ser recomendável constitucionalmente intervenções militares, expansão estratégica da malha viária, exploração de alternativas energéticas e o resguardo das riquezas da natureza por parte da União.

Sobre o direito de ir-vir em terras indígenas, o Supremo Tribunal considerou que é constitucional o trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios, desde que regulamentado pelo Instituto Chico Mendes, em caso de se tratar de área afetada à unidade de conservação, ou pela FUNAI, em caso contrário. Por fim, e mais importante, sobre a demarcação contínua das terras indígenas, o Supremo Tribunal Federal, nesse sentido, considerou que o regime constitucional das terras indígenas autoriza a demarcação contínua do espaço geográfico onde está a comunidade tradicional.

Segundo o STF o objetivo constitucional é deixar que a população indígena desfrute de espaço físico do meio ambiente natural necessário à sua subsistência e reprodução cultural, econômica e social, por isso é constitucionalmente adequada a demarcação contínua dentro de uma mesma comunidade indígena, em geral, formada por uma só etnia, mas sendo possível duas ou mais etnias.

Importante destacar que, segundo Mattos Neto (2009, p. 14), o perímetro a ser demarcado deve considerar os quatro círculos concêntricos referenciados pelo Supremo Tribunal Federal, a saber: a) habitação em caráter permanente e não-eventual; b) as terras utilizadas “para suas atividades produtivas”; c) “as imprescindíveis à dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar”; d) as que se revelarem “necessárias à reprodução física e cultural” de cada uma das comunidades indígenas.

Mattos Neto (2009, p. 15) encerra sua análise considerando a interpretação emprestada às normas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, que servem como regras paradigmáticas para a construção de um Estado de Direito Agroambiental brasileiro e constroem as bases normativas principiológicas que erguem as regras do desenho jurídico do Estado de Direito Agroambiental, entretanto sem exaurir seu conteúdo.

Ora, a decisão foi histórica e trouxe contribuições efetivas para o desenvolvimento dos direitos indígenas. Entretanto, a mesma fundamentação vem sendo utilizada para reduzir direitos à demarcação de terras indígenas, a exemplo do que aconteceu nos autos do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 29452[4], em que, com fundamento na decisão da PET 3388 – Caso Raposa Serra do Sol, o STF decidiu pela invalidade da Portaria 3.508/2009, do Ministério da Justiça, que havia declarado a terra indígena Porquinhos, no Maranhão, como de posse permanente do grupo indígena Canela-Apãniekra e havia resultado na ampliação da área demarcada em data anterior à Constituição Federal de 1988.

Ora, nesse sentido, fica claro que a utilização da decisão da PET 3388 – Caso Raposa Serra do Sol, como precedente e fundamento para toda e qualquer demarcação indígena, trouxe prejuízos práticos ao reconhecimento dos direitos indígenas a demarcação de suas terras.

Por seu turno, no que tange à questão quilombola, cabe observar que os direitos quilombolas são protegidos a partir do art. 68 do ADCT e art. 216 § 5º da Constituição Federal e a nível estadual pela Constituição Estadual, em seu art. 322, que reconhece a propriedade definitiva aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, ao mesmo tempo em que impõe ao Estado o dever de emitir títulos respectivos. Outrossim, a norma ainda é regulamentada em nível infraconstitucional pelo Decreto n° 663, de 20 de fevereiro de 1992.

Entretanto, apesar da proteção jurídica, até hoje essas comunidades lutam pelo reconhecimento efetivos de direitos, tendo no Pará, segundo Trecanni (2006, p. 249) um marco para os movimentos sociais de todo o Brasil, no reconhecimento de domínio das comunidades remanescentes de quilombos.

Segundo Trecanni (2006, p. 254-250) a partir da pressão política do CEDENPA e de movimentos sociais ligados a questão quilombola junto ao governo do Estado, foram realizados estudos que identificaram 386 nomes de comunidades, que se distribuem por 49 municípios. Trecanni ainda observa como no começo de 1997, o ITERPA, na qualidade de órgão fundiário do governo do Estado do Pará, interpretou o art. 68 do ADCT pela auto-aplicabilidade da norma, expedindo títulos de reconhecimento de domínio em favor de comunidades quilombolas, sem que antes tivesse sido elaborada qualquer norma complementar que explicitasse como operacionalizar o mandamento constitucional

Para Trecanni (2006, p. 254-250) a posição do ITERPA constitui uma vitória dos movimentos sociais pelos direitos quilombolas no Estado do Pará, entretanto, a realidade ainda não favorece a efetividade dos direitos desses grupos.

Nesse sentido, Loureiro (2014, p. 238) chama atenção para a tensão existente no Pará entre os remanescentes de quilombos no Baixo Amazonas, em região localizada próxima ao município de Oriximiná e a ALCOA (Mineração Rio no Norte).

Ocorre que, segundo Loureiro (2014, p. 237) a ALCOA vem, desde a década de 1970 explorando a região próxima a área de preservação ambiental em que foram realocadas as comunidades quilombolas Tapagem e Abuhi, trazendo possíveis contaminações com os  rejeitos de bauxita o que tem afetado a subsistência por meio da pesca.

Chama atenção de Loureiro (2014, p. 237) o fato do EIA-RIMA, de responsabilidade da empresa, não registrar a presença da população quilombola na região, se referindo apenas aos elementos naturais, como se os negros não existissem. Interessante notar que situações como esta e desenvolvimentos de movimentos ligados à questão quilombola se multiplicam no Estado. Entretanto, nenhuma ação foi tão profunda na análise da questão quilombola quanto a ADI 3.239, no Maranhão.

Apesar de esta ação tratar de porção de terra que não corresponde ao espaço fundiário paraense, o registro dos termos do Voto-Vista e do Voto- Relator merecem registro.

Nesse sentido, a ação foi ajuizada pelo então Partido da Frente Liberal, que posteriormente passou a se designar Democratas, em face do Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos objeto do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, em que se discutia, dentre outras coisas, a utilização dos critérios de autoatribuição para o reconhecimento das terras de quilombos localizados às proximidades do município de Alcântara, no Maranhão.

Ora, interessante notar como o Voto-Relator[5] se posicionou pela procedência da ADI 3.239 e consequente inconstitucionalidade do Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, ao arrepio das expectativas dos movimentos sociais ligados a questão quilombola, centrando a questão principalmente na suposta inconstitucionalidade da auto identificação, ao argumentar que a identificação dessas comunidades deveria ser estabelecida a partir de critérios legais e ainda na comprovação da permanência dos remanescentes em quilombos ocupados desde 1888.

Entretanto, o Voto-Vista, após traçar um panorama sucinto sobre a questão quilombola, declarou a constitucionalidade do Decreto, negando procedência a ADI, que teve julgamento suspenso por pedido de vista.

Nesse sentido, alguns pontos do Voto merecem destaque; a princípio, sobre a interpretação: 

Com efeito, todo e qualquer ato jurídico, enquanto ato linguístico, é – ou resulta de –, em última análise, um ato de interpretação.

[...]

Tenho, pois, que, levada a sério, à norma constitucional – especialmente a definidora de direito fundamental – não pode ser atribuída exegese que lhe retire toda e qualquer densidade normativa. Em absoluto merece endosso, data venia, interpretação atribuidora de sentido e eficácia que impliquem a própria inexistência do texto interpretado: impacto jurídico indistinguível de uma ordem jurídica carente do preceito.

O Voto-Vista considerou que recusar a autoidentificação implica converter a comunidade remanescente do quilombo em gueto. Para a ministra, não se pode negar o direito de alguém reconhecer a si próprio como bem o quiser sem correr o risco de ofender a própria dignidade humana daquele que o faz, uma vez que, alertando que agindo de boa-fé, a ninguém se pode recusar a identidade a si mesmo atribuída – mas caso má-fé prevaleça, o direito dispõe de remédios apropriados.

Certo para o Ministro que proferiu referido Voto-Vista, em qualquer hipótese, é obrigação do Estado agir positivamente para alcançar o resultado pretendido pela Constituição, ora por medidas legislativas, ora por políticas e programas implementados pelo Executivo, desde que apropriados e bem direcionados.

Nesse sentido, transcrevemos trecho do referido voto no qual é citado Funes (1997, p. 139), homenageando a memória e a cultura dos povos remanescentes de quilombos, registra que a autoidentificação é um critério válido para o reconhecimento e titulação das terras.

Suas manifestações culturais, seu cotidiano e seu modo de ser revelam suas origens. Origens mais bem expressas não apenas na cor da pele de sua gente, mas sobretudo na memória, nas lembranças dos velhos, de histórias contadas por seus avós, que nos remetem sempre a um outro passado: o dos mocambos. A história dos avós é história vivida. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2015 p. 27).

Para este último Ministro, essa memória referida é referencial não só de ancestralidade, mas também, e fundamentalmente, de identidade. Considera ainda que a difícil determinação do significado do vocábulo “quilombo” não é novidadeira e que os registros históricos dão conta que seu uso sempre foi instrumental e impreciso, por isso conclui que não é possível chegar a um significado de quilombo dotado de rigidez absoluta, tampouco se pode afirmar que o conceito vertido no art. 68 do ADCT alcança toda e qualquer comunidade rural predominantemente afrodescendente sem qualquer vinculação histórica ao uso linguístico desse vocábulo.

Nesse sentido, o Voto-vista (2015, p. 31) ainda considera que o desacordo entre o autor da ação e a Administração Pública, que ensejaram o manejo da ação, se aproxima mais do conteúdo do art. 68 do ADCT do que com a adequação do termo “quilombo” e as consequências da congnoscibilidade jurídica sobre o mesmo:

Seria falacioso perquirir acerca de um metafísico significado “puro” do termo “quilombo”, que inexiste, tampouco de um suposto significado “do Constituinte” (igualmente metafísico), na medida em que, além do significado já incorporado como referência no próprio significante – o texto aprovado pelo legislador (no caso, o constituinte) da norma jurídica –, “não cabe a questão de sermos capazes de atribuir à legislatura como tal quaisquer pensamentos, intenções, crenças ou propósitos, […] não há nenhum estado ou condição que corresponda à 'intenção da legislatura' da qual alguma outra coisa – como aquilo que membros ou grupos específicos disseram, pensaram, escreveram ou fizeram – pudesse oferecer uma pista.”

Os limites da cognoscibilidade jurídica da questão posta residem na adequação do emprego do termo “quilombo” realizado pela Administração Pública às balizas linguísticas e hermenêuticas impostas pelo texto-norma do art. 68 do ADCT.

A controvérsia espelha um desacordo hermenêutico entre a Administração Pública e o Autor da ação, mais sobre o próprio conteúdo do art. 68 do ADCT do que propriamente sobre o teor da norma infraconstitucional com ele confrontada.

Por fim, como último elemento escolhido dentre as diversas dificuldades para efetivação dos direitos ligados à terra no Pará temos a grilagem.

Nesses termos, as formas de aquisição da propriedade, dentre elas a grilagem, passaram a ter um papel fundamental, não apenas para o direito privado, mas principalmente para o direito público, uma vez que, como veremos, todas as terras têm origem pública e o acesso a estas passou a ser um direito a ser assegurado dentro do Estado Democrático de Direito.

Não há um conceito bem definido sobre o fenômeno da grilagem, entretanto, a definição adotada pelo Livro Branco da Grilagem (BRASIL, 1999, p. 12) considera grilagem toda ação ilegal que objetiva a transferência de terras públicas para o patrimônio de terceiros.

Podemos ainda considerar que grilagem é a apropriação ilegal ou irregular de terras públicas por meio de fraude administrativa. Laranjeira (1984, p. 146), ao fazer referência aos numerosos ilícitos que o grileiro comete, ao se apropriar da terra pública, considera que “a grilagem consiste numa constelação de ilícitos”. Desta forma, é cediço que o fenômeno da grilagem consiste na apropriação de terras públicas por meio de fraudes administrativas que, muitas vezes, ocorrem com a conivência de representantes do Poder Público.

Este fenômeno se apresenta de várias formas, seja por meio do registro isolado da terra, sem que haja comprovação da cadeia dominial ou a apresentação do devido título de domínio, ou ainda pela duplicidade de registros, fazendo com que uma mesma terra receba inúmeras matrículas em cartórios diferentes; seja pelo registro de averbações, dando conta do aumento do tamanho da terra em proporções muito maiores do que realmente se constataria e muitos outros.

Em grande parte dos casos, verifica-se a falsificação de documentos de propriedade, criando inclusive falsas cadeias dominiais para o imóvel que se pretende grilar ou a adulteração de documentos originais, inclusive com a conivência de representantes do Estado. De posse desses documentos adulterados, os grileiros se dirigem a um cartório a fim de registrar a terra como se fossem os verdadeiros proprietários.

A CPI[6] da Grilagem, instaurada em 25 de abril de 2000, cuidou de enumerar, em seu relatório, as práticas mais recorrentes de grilagem, as quais transcreveremos a seguir:

(1) registro sem o correspondente título de domínio ou do registro anterior, de centenas de escrituras de compra e venda, legalizando assim o domínio sobre extensas áreas, em muitos casos superiores a cem mil hectares e que chegaram a mais de um milhão.

(2) duplicidade de registro de matrícula de imóveis, fazendo que as mesmas terras fossem multiplicadas, através do subterfúgio do desmembramento ilegal em inúmeras áreas, as quais por sua vez recebiam, novas matrículas, ou pela abertura de matrícula da mesma gleba em Livros diferentes, ou em cartórios de Comarcas diferentes.

(3) aceitação do registro de imóveis constantes em sentenças de partilha de bens, que não apresentavam as correspondentes provas dos títulos de domínio, e que não estavam matriculados no correspondente Cartório. Sendo assim, legitimados, títulos sem nenhum valor, ou simples posses.

(4) registro de averbações ou abertura de novas matrículas, correspondentes a demarcatórias de glebas, sem autorização judicial e do INCRA, alargando-as e/ou determinando novos confinantes, em dimensões exorbitantes.

(5) registro de escrituras de compra e venda, e outros pretensos títulos de domínio, emitidos com uma antigüidade de 20 ou mais anos por Tabeliães de Comarcas de Estados diferentes, que não estão amparados por Título de Domínio legítimo. Inclusive, alguns formando uma cadeia dominial baseada em escrituras de mais de cem anos, cuja origem estaria na emissão de Sesmaria.

(6) registro de imóveis, supostamente registrados em outra Comarca, sem o respaldo da correspondente Certidão do respectivo Cartório.

(7) lavratura de escrituras de compra e venda e registro das mesmas no Cartório de Registro de Imóveis, onde constam pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras como compradores em condição contraria à legislação em vigor.

(8) lavratura de Escrituras de Compra e Venda, pelos Tabeliães, além de apresentar os defeitos descritos no número anterior, tendo como agravante que pelo menos uma das partes, não esteve presente no ato, nem seus documentos e/ou antecedentes pessoais lhe correspondiam.

(9) lavratura de escrituras de compra e venda, e registro destas no Cartório de Registro de Imóveis, tendo o transmitente, comprovadamente, falecido há muitos anos.

(10) emissão de laudos de avaliação de glebas, por Oficiais Registradores.

(11) matrícula de imóveis, supostamente registrados em outra Comarca, sem o respaldo da correspondente Certidão do respectivo Cartório.

(12) lavratura de Escrituras de Compra e Venda, pelos Tabeliães, com a transferência de glebas sem indicação da matrícula de origem, e sem preencher as condicionantes fixadas em Lei. Permitindo assim, que inidôneos Oficiais Registradores de Cartórios de Registro de Imóveis, levassem a registro tais imóveis, sem sequer estarem matriculados. Sendo esta mais uma das formas de legalizar arbitrariamente o domínio de terras.

[...] (RELATÓRIO DA CPI DA GRILAGEM, 2001).

Outro caso extraordinário de grilagem também teve registro no Pará. Ao longo de mais de duas décadas, a partir de 1975, dois portugueses, Manoel Joaquim Pereira e Manoel Fernandes de Souza, hoje falecidos, tiveram centenas de imóveis rurais – em 83 municípios do Estado, totalizando aproximadamente nove milhões de hectares – inventariados em nome de Carlos Medeiros, a quem teriam sido transmitidos em "cessão onerosa de direitos hereditários".

Estas terras foram, em seguida, vendidas por Carlos Medeiros a dezenas de terceiros, pessoas físicas e jurídicas. Todas as terras do espólio dos portugueses eram públicas, pertencentes à União ou ao Estado do Pará. Carlos Medeiros jamais foi localizado, nem mesmo pela polícia ou por seus próprios advogados, tendo ficado evidente tratar-se de pessoa fictícia.

Duvida-se até mesmo da existência de seus antecessores, os dois portugueses, que teriam conseguido transformar centenas de simples posses de terras em áreas oficialmente tituladas sem qualquer consulta ao INCRA ou ao ITERPA, o que já constitui ato ilícito. De acordo com cálculos do ITERPA, a quadrilha identificada pela polícia grilou mais de nove milhões de hectares, o que corresponde a algo em torno de 8% do território do Estado do Pará, ou um por cento de todo o território brasileiro. O processo movido pelo INCRA para recuperar as terras tramita no Tribunal de Justiça do Estado.

O INCRA interpôs embargos de terceiros para deslocar o feito para a Justiça Federal. Uma das áreas griladas pelo fantasma Carlos Medeiros foi a Gleba Carajás, com 942.131 hectares. Esta área foi arrecadada pelo INCRA para fins de reforma agrária, em 1973, e registrada como patrimônio da União no Cartório de Ofício da Comarca de Marabá. Três empresas - Abrolho Verde, Empreendimentos e Participações; Casa Sem, Representações, Empreendimentos e Participações; e PROMOVIX, Indústria de Processamento de Ovos -, dizendo-se proprietárias de diferentes áreas dentro da Gleba Carajás, moveram ações reivindicando indenizações milionárias que o INCRA está contestando. Na Gleba Carajás está implantado o Projeto Rio Gelado de reforma agrária, com 2.150 famílias instaladas em 260 mil hectares.

Por fim, outro caso significativo é relatado por Loureiro (2014, p. 195) e que trata da gleba Cidapar. A referida gleba possuía uma área de 60.984 ha, oriundas de concessões de Sesmarias e foram adquiridas por Guilherme Von Linde, que constituiu na área a empresa South American Golda Areas Ltda. Com a falência da empresa a área foi à praça pública para pagamento de verbas trabalhistas havendo sido arrematada por Moracyr Pinheiro Ferreira.

Entretanto, Loureiro (2014, p. 197-200) aduz como a cada ato de registro a área crescia ficticiamente, chegando a incidir sobre áreas indígenas e áreas ocupadas com ocupação mansa e pacífica. Durante a década de 70 e 80 se inicia um violento conflito sobre a área, com a morte de dezenas de pessoas. Várias foram as tentativas judiciais e extrajudiciais para solução do conflito até que em 1988 a terra foi desapropriada por interesse social, entretanto, a desapropriação foi anulada sob o argumento de que a terra era pública em razão da não validação da Sesmaria. O conflito durou aproximadamente quarenta anos, até que em 2009 a justiça federal trouxe uma decisão definitiva sobre a lide.

Grilagem pode ser entendida como toda ação ilegal que objetiva a transferência de terras públicas para o patrimônio de terceiros e é alvo da preocupação do Poder Judiciário no Estado do Pará que, por intermédio do Provimento n.º 2 da Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Pará, de 1977, chegou a determinar que todo e qualquer título de propriedade ou posse constante como expedido pelo Governo do Estado do Pará, que fosse levado a qualquer cartório de Registro de Imóveis para matrícula, registro ou averbação de qualquer ato, fosse considerado falso até prova em contrário.

Não obstante, durante décadas, milhares de mortes, fraudes e crimes de toda natureza foram impunemente cometidos em locais como a Amazônia, mais especificamente no Pará, a bem da verdade, nas últimas décadas a Amazônia e, de maneira especial o Estado do Pará ganharam destaque no cenário nacional e internacional devido às denúncias cotidianas de violação dos direitos humanos e agroambientais.

Treccani (2001, p. 216) demonstra como o fenômeno da grilagem repercute negativamente na região Amazônica; segundo dados da Comissão Pastoral da Terra e da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado do Pará (FETAGRI-PA), foram registrados mais de 2.500 conflitos pela posse da terra em 125 dos 143 municípios paraenses. Não apenas a violência, como forma mais primitiva de violação aos Direitos Humanos, mas a marginalização, a redução a condições análogas a de escravo, a pobreza, o êxodo rural e a concentração fundiária são todos problemas acentuados verticalmente pela grilagem.

Nestes termos, não é possível que dentro do Estado Democrático de Direito, no qual a terra e a propriedade têm o dever de cumprir uma função social, em que há minorias a serem protegidas, como é o caso das comunidades indígenas e quilombolas no interior do Estado do Pará, se permita que particulares se apropriem de terras públicas de maneira ilegal, gerando uma cadeia de mazelas e conflitos sociais.

Por outro lado, o grileiro, ator fundamental neste cenário, opera, a partir da grilagem, uma série de outros crimes e delitos, como o desmatamento e a exploração ilegal da natureza, o estelionato ao vender inúmeras vezes a mesma terra, entre outros ilícitos.

Por todo o exposto é induvidoso que a grilagem precisa ser combatida. Na luta contra este fenômeno, o Poder judiciário, ao longo dos anos, vem tomando iniciativas no sentido de cancelar judicialmente uma série de títulos e registros irregulares.

Entretanto, a ação do CNJ merece destaque na luta contra a grilagem, conforme delineada na introdução deste trabalho.

A decisão de cancelar 5,5 mil títulos de terras foi polêmica, não apenas por ir de encontro ao interesse de grande parte dos grileiros do Estado, mas também por encontrar oposição jurídica daqueles que sustentavam que o único meio de cancelar tais títulos, a partir de uma decisão judicial transitada em julgada, é a chamada cláusula de reserva da jurisdição.

Conforme dito alhures, no referido episódio, o CNJ, amparado em precedentes próprios, sustentou que o Registro baseado em suposto título, que formalmente deixou de existir, é hipótese que se enquadra no exemplo de inexistência do título, passível de cancelamento em sede administrativa e que as partes interessadas, ao se sentirem prejudicadas com o cancelamento administrativo dos títulos, dispõem de ação anulatória para atacar o ato, que poderá ser proposta perante o juízo competente contra a pessoa jurídica de direito público que requereu o cancelamento, nos termos do art. 3º da Lei n. 6.739/79.

Outrossim, o CNJ considerou ainda que a possibilidade de controvérsia sobre o domínio estar em discussão no âmbito judicial, não importa em obstáculo à atuação da Corregedoria, tendo em vista a independência de que gozam as esferas administrativa e judicial.

Entretanto, em 30/06/2011, a UNIFLORESTA, por meio dos MS 30220 MS 30231, conseguiu junto ao c. STF, liminar proferida pela relatora, Ministra Ellen Gracie, para suspender, apenas e tão somente quanto à Arca Indústria e Agropecuária Ltda., e aos atuais associados à UNIFLORESTA, os efeitos da decisão proferida em 16 de agosto de 2010 pelo CNJ, até o julgamento do mérito dos mandados de segurança, mas eles permanecem sujeitos à averbação do bloqueio das referidas matrículas.

Ora, nesse sentido, o que se verifica, por todos os fatos aqui narrados, seja oriundos de questões sobre a grilagem, nos termos do MS 30220 do STF e outros, seja pelas questões ligadas à demarcação de terras indígenas, nos termos da PET 3.388-4 do STF e do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 29452, ou ainda, sobre a questão do reconhecimento de terras quilombolas, nos termos da ADI 3239, é a presença marcante e atualidade dos conflitos no campo e a necessidade de se buscar alternativas para que a aplicação das normas jurídicas possam favorecer a realização de direitos no campo, garantindo que o aplicador do direito tenha meio para buscar a correta interpretação do direito à terra, à luz das garantias constitucionais, conforme até aqui foi dito.

6. Conclusões.

Por fim, à guisa de conclusão, após o reconhecimento da relação entre os conflitos pertinentes ao direito à terra e os elementos históricos e sociais oriundos das relações de poder do Estado Liberal, os quais foram agravados pela ascensão do Regime Militar, pudemos concluir que, com o advento da Constituição de 1988, houve o reconhecimento de um direito fundamental à terra que ultrapassa as questões do direito privado para atingir o núcleo de direitos de caráter imaterial, a partir do reconhecimento do princípio da função social como elemento constitutivo do direito à terra, distanciando-se do conteúdo liberal com o qual este direito surgiu para o ordenamento brasileiro.

Ademais, verificou-se como, a partir do reconhecimento de direitos socioambientais, o direito à terra passou a observar a dignidade da pessoa humana e os aspectos socioeconômicos envolvidos na relação entre o homem e a natureza, razão pela qual o direito à terra passou a ser um direito complexo, e a garantir demais direitos como o direito a auto identificação das populações tradicionais.

Nesse sentido, o princípio da função social, considerado em seus elementos social, ecológico e econômico, e concebido a partir dos objetivos fundamentais da República na construção de uma sociedade justa e cada vez mais igualitária, deve ser o elemento diretivo de qualquer interpretação sobre o direito à terra.

Diante de tais observações, concluímos o presente trabalho considerando que a pesquisa permitiu confirmar a necessidade de uma nova racionalidade para o direito à terra.

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[1] Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal do Pará.

[2] Sobre a origem da propriedade, Engels no texto “A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, traz estudos a respeito da organização do homem em sociedade desde a pré-história que seriam anteriores as civilizações Grega e Romana e faz observa que o surgimento da propriedade, da forma que a conhecemos está vinculada ao surgimento da organização social do homem em gens (famílias).

[4] Maiores informações sobre o RMS 29542 estão disponíveis no site do Supremo Tribunal Federal. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=276407 Acesso em 15 de Març de 2015.

[5] A integra do Voto-Relator pode ser assistida no site: https://www.youtube.com/watch?v=VNVstIi0nWk&feature=results_main&playnext=1&list=PLA0DBFBC1D0249934%20Acesso%20em%2024%20de%20jul.%202012. Acesso em 15 de Fev. de 2015

[6] Maiores informações sobre o resultado dos trabalhos desta CPI poderão ser encontrados em seu relatório final, Disponível em:< http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0CCoQFjAA&url=http %3A%2F%2Farisp.files.wordpress.com%2F2009%2F10%2F33421741-relatorio-final-cpi-terrasamazonas-grilagem.pdf&ei=uYGHU_TYCpekqAaBnoLwCg&usg=AFQjCNE88Tvv_Wu0_kGn- QJWx6nXClPnbg>.

Sobre o autor
Neyilton da Costa Oliveira

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Pará. Mestrando em Direito pelo Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará.

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