RESUMO:O presente artigo tem por escopo tratar as consequências práticas da relativização da incapacidade civil, especialmente no instituto do casamento, advindas pela promulgação da Lei Federal n.º 13.146/2015, o dito Estatuto da Pessoa com Deficiência, e as consequências práticas dessa inovação.
Palavras-chaves:Direito Civil; Incapacidade civil; Estatuto da pessoa com deficiência; Casamento.
1 Introdução
O presente trabalho busca trazer à tona os principais pontos controversos quanto à relativização do instituto da incapacidade inserida no ordenamento jurídico pátrio com o advento da Lei Federal n.º 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e pôr em pauta quais os seus reflexos no direito das famílias, especificamente quanto ao instituto do casamento.
A Lei Federal n.º 13.146, de 06 de julho de 2015[1], com início de vigência a partir de 02 de janeiro de 2016, instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência que modificou e revogou vários artigos do Código Civil de 2002 relativos à incapacidade da pessoa, justificando as suas inovações na busca da evolução da inclusão social da pessoa portadora de deficiência. As maiores mudanças trazidas pela citada lei ao direito civil se situam nos artigos 3º e 4º do Código Civil de 2002[2], que dizem respeito à incapacidade, cuja antiga redação apontava:
Art. 3º. São absolutamente incapazes:
I – os menores de dezesseis anos;
II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;
III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
Por outro lado, em sua nova redação, manteve apenas os menores de dezesseis anos como absolutamente incapazes.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, o artigo 4º, do Código[3] em questão, também foi alvo de mudanças, uma vez que a antiga redação afirmava que são relativamente incapazes para certos atos da vida civil ou ao modo de exercê-los:
I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;
III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;
IV - os pródigos.
Desta sorte que, com as modificações trazidas com a Lei em tela, podemos afirmar que são considerados relativamente incapazes os ébrios habituais e os viciados em tóxicos e aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade.
Com essas alterações, o conjunto das incapacidades se tornou flexível, dando ensejo à violação de direitos e garantias fundamentais tão amplamente protegidos pela legislação anterior e adquiridos ao longo dos anos.
2. A evolução história do instituto das incapacidades da pessoa humana
Devemos iniciar a análise da incapacidade por meio do artigo 2º, do Código Civil brasileiro[4], que reza: “a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Assim, ao nascer com vida uma pessoa já possui personalidade civil e consequentemente é detentor de direitos e essa é a questão vital em nosso país, pois com o início da personalidade o sujeito se torna “sujeito de direitos”.
No Brasil, predominou, portanto, a teoria do nascimento com vida para que haja o início da personalidade, conforme preleciona o douto Silvio de Salvo Venosa[5].
Importante frisar e destacar que o Código Civil de 2002 modificou um termo do dispositivo do Código Civil anterior, o atual Codex preferiu utilizar a expressão “pessoa” em vez de “homem”, constante no artigo 2º, do Código Civil de 1916[6], e tida como discriminatória diante da nova vertente progressista instituída por meio da Constituição Federal de 1988[7], que equiparou homens e mulheres, especialmente no inciso I, do artigo 5º, I.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
Flávio Tartuce[8] menciona que esse mesmo dispositivo da atual codificação traz a ideia de pessoa inserida no meio social, com a sua dignidade valorizada, à luz do que consta no Texto Maior, particularmente no seu artigo 1º, inciso III, um dos ditames do Direito Civil Constitucional.
Silvio de Salvo Venosa[9] vai além e defende que a palavra “pessoa”, no latim, significa máscara de teatro, ou em sentido figurado, o próprio papel atribuído a um ator, isto porque na Antiguidade os atores adaptavam uma máscara no rosto, com um dispositivo especial que permitia emitir a voz. Pela evolução do sentido, o termo pessoa passou a representar o próprio sujeito de direito nas relações jurídicas, como se todos nós fôssemos atores a representar um papel dentro da sociedade.
Clóvis Bevilaqua[10], um dos mais importantes juristas e historiadores brasileiros, elaborou o Código Civil de 1916 e fez prever quem são os absolutamente e os relativamente incapazes de exercer os atos da vida civil. Pioneiro, afirmou que os absolutamente incapazes eram os menores de dezesseis anos, os loucos de todo gênero, os surdos-mudos, que não puderem exprimir sua vontade, os ausentes declarados tais por ato do juiz. Da mesma sorte, estabeleceu aqueles que poderiam, portanto, praticar atos da vida civil, porém assistidos por quem por lei lhes for responsável, ou seja, os relativamente incapazes seriam os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos, as mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal, os pródigos e os silvícolas (indígenas).
Mudada a conjuntura político-social após quase cem anos e uma nova Constituição Federal, necessária foi a atualização dessa lei civilista, momento em que no ano de 2002 se apresentaram novas regras para o instituto das incapacidades da pessoa natural. Assim sendo, o Código Civil de 2002[11] passou a estabelecer que são absolutamente incapazes os menores de dezesseis anos; os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiveram o necessário discernimento para a prática desses atos; os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. No mesmo ato, rezou quem seriam os relativamente incapazes os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; e os pródigos.
Destaque-se, por derradeiro, que os silvícolas passaram a ser regidos por lei própria, especial, valorizando aqueles que estavam no Brasil antes mesmo da colonização portuguesa.
Percorrido este caminho passaremos a demonstrar o início da personalidade jurídica.
2.1 O início da personalidade natural
Como dito alhures, aduz o artigo 2º, do atual Código Civil[12] que “a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”, pois bem, este é o ponto de partida da personalidade é de suma importância, tendo em vista que, através dele, a pessoa se torna sujeita de direitos.
Flávio Tartuce[13] conceitua personalidade como sendo a soma de caracteres corpóreos e incorpóreos da pessoa natural ou jurídica, ou seja, a soma de aptidões da pessoa. Assim, a personalidade pode ser entendida como aquilo que a pessoa é, tanto no plano corpóreo quanto no social.
No Brasil, pacificada é a teoria do nascimento com vida para se ter início a personalidade. Assim, salutar é afirmativa de Sílvio de Salvo Venosa[14] que, com base na medicina, afirma que “se comprovarmos que a criança respirou, então houve o nascimento com vida”.
Desta maneira, entendemos não haver celeuma quanto ao que é nascer com vida e que este é o momento que se inicia a personalidade e os efeitos jurídicos advindos dela.
Após, iremos discutir as atualizações conceituais advindas com o Código Civil de 2002 em detrimento ao Código Civil de 1916.
2.2 As atualizações nas incapacidades no Código Civil de 1916 para o atual Código Civil
Tão mutante é a sociedade e as suas respectivas leis, que já se passaram dois códigos civis para que houvesse a promulgação de uma lei específica que dispusesse sobre os direitos da pessoa com deficiência.
Contudo, no início do Século XX, poder-se-ia ainda afirmar que as mulheres casadas, enquanto subsistisse a sociedade conjugal, seriam relativamente incapazes para a prática de atos da vida civil.
Necessária e importante foi a mudança trazida com a Carta Magna de 1988, que findou por vez essa lei discriminatória e deixou equivalentes os direitos do homem e da mulher.
Nesse mesmo sentido e considerando os avançados sobre a sociedade, deixaram os indígenas de ser tratados com parcialidade na sua capacidade civil e foram eles valorizados ao possuírem uma lei especial para sua maior proteção.
Em seguida iremos abordar a proteção aos incapazes.
3. Da proteção aos incapazes
O Código Civil prevê dois institutos importes para a proteção das pessoas: a Curatela e a Tutela.
Todavia, a Lei Federal n.º 13.146/2015[15] modificou completamente a teoria das incapacidades e, consequentemente, a forma que se dará a interdição.
Curatela é uma obrigação determinada por um juiz comum a alguém que seja capaz de administrar os bens de outras pessoas incapazes em decorrência de uma enfermidade ou deficiência mental, ou alguém que por prazo determinado ou indeterminado não puderem exercer a regência de suas vias sozinhas[16].
De forma específica, o instituto da curatela determina quem são os “maiores incapazes” que estarão sob cuidados, explicando quem será protegido, o porquê, quem poderá proteger e quais os efeitos civis práticos.
O principal ponto da curatela antes e depois do Estatuto do Deficiente recai sobre o patrimônio, pois que uma interdição – a depender da situação fática – também recairá sobre alguns de seus familiares. Não se pode analisar e estudar tal instituto sem antes pensar quais as consequências práticas na vida de todo o eixo familiar.
A Lei em tela se pauta no melhor interesse do enfermo e o juiz deve analisar toda a conjuntura social: conversar com o interditando, seus vizinhos, seus familiares e seu médico (aqui principalmente por laudo pericial) são por demais necessários para que se tome a decisão mais justa.
Abaixo teceremos comentários sobre as mudanças que o estatuto dos deficientes trouxe ao instituto da curatela, pois a maioria dos seus incisos foi revogada.
Desta sorte, Pablo Stolze[17] traça um paralelo entre o novel estatuto e instituto da curatela e afirma que, de acordo com o §2º, do artigo 85, da referida lei, curatela passa a ser medida extraordinária e que seria outra via assistencial de que poderia se valer a pessoa com deficiência – livre do estigma da incapacidade – para que ela pudesse se desenvolver na sociedade, especialmente para a “tomara de decisão apoiada” (sic.), momento em que a pessoa portadora de deficiência possa escolher ao menos duas pessoas para lhe prestar apoio na tomada de decisão sobre atos da sua vida civil, oportunidade na qual lhes forneceria os elementos e informações suficientes para que pudesse exercer sua capacidade.
No mesmo sentido, não podemos nos olvidar de falar da tutela, uma vez que não podemos dizer que existe interdição absoluta no nosso sistema civil, pois os menores não são interditados, mas, sim, tutelados.
Tal medida jurídica advém dos tempos da Roma Antiga e, conforme apontado pelo jurista Luiz Felipe Lyrio Peres[18], tem por finalidade “suprir a falta de capacidade de menores aos quais tenham os pais falecido, encontram-se ausentes ou estejam destituídos do pátrio poder”.
Vejamos o que rezam os artigos 1.728 e 1.729 do Código Civil[19]:
Art. 1.728. Os filhos menores são postos em tutela:
I - com o falecimento dos pais, ou sendo estes julgados ausentes;
II - em caso de os pais decaírem do poder familiar.
Art. 1.729. O direito de nomear tutor compete aos pais, em conjunto.
Parágrafo único. A nomeação deve constar de testamento ou de qualquer outro documento autêntico.
Desta sorte, podemos afirmar que a tutela é um poder, conferido por lei, a uma pessoa capaz para proteger e administrar os bens de uma criança ou um adolescente que esteja sem o pátrio poder. Tal tutor deverá representar ou assistir nos atos da vida civil.
Transcorrida esta etapa passaremos a abordar o instituto do casamento.
4. Do casamento no Código Civil
A entidade familiar mais comum nas sociedades católicas ocidentais é o casamento e ele ocorre quando duas pessoas de sexo diferentes se unem com a finalidade de conviver em família, após, claro atendidas diversas formalidades legais.
Para o Código Civil, mais precisamente no artigo 1.511, temos que “o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”.
A vanguardista jurista Maria Berenice Dias[20], explica que a relação matrimonial melhor pode ser entendida pela noção de comunhão de vidas, de comunhão de afetos, e que este é o “efeito por excelência do casamento”; este, portanto, não obstante estabelecer a sociedade conjugal, gera dois vínculos: o vínculo conjugal (estado civil) e o vínculo de parentesco por afinidade, pois que liga um dos cônjuges aos parentes do outro.
Logo, aqueles que se casam possuem os mesmos direitos e deveres e merecem a total proteção do Estado e assistência conjunta ou mútua do seu respectivo cônjuge. A união não servirá apenas para os unir nos bons momentos, mas, sim, pela vida.
Quanto à capacidade para casar, de acordo com o Código Civil[21]:
Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil.
Parágrafo único. Se houver divergência entre os pais, aplica-se o disposto no parágrafo único do art. 1.631.
Feita essa premissa, não se pode confundir a incapacidade para o casamento com os impedimentos matrimoniais, tendo em vista que a primeira (incapacidade) impede que alguém se case com qualquer pessoa, enquanto os impedimentos somente atingem determinadas pessoas em determinadas situações[22].
Assim, nas palavras de Flávio Tartuce[23], é importante frisar que “os impedimentos matrimoniais apenas atingem determinadas pessoas, a incapacidade matrimonial veda que a pessoa se casa com qualquer um que seja”.
Entendemos que esta distinção é importantíssima, haja vista que torna algumas pessoas em algumas situações são impedidas para casar para evitar danos pessoais e sociais. Desta maneira, o Código Civil[24] disciplina em um rol taxativo aquelas pessoas que não podem se casar em determinadas hipóteses. Vejamos:
Art. 1.521. Não podem casar:
I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II - os afins em linha reta;
III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;
V - o adotado com o filho do adotante;
VI - as pessoas casadas;
VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.
Art. 1.522. Os impedimentos podem ser opostos, até o momento da celebração do casamento, por qualquer pessoa capaz.
Parágrafo único. Se o juiz, ou o oficial de registro, tiver conhecimento da existência de algum impedimento, será obrigado a declará-lo.
Flávio Tartuce[25], ressalta que a mudança estrutural que mais interessa no que tange à capacidade para se casar diz respeito à revogação dos incisos do artigo 3º do Código Civil, uma vez que, modificado esse panorama, “as pessoas que por causa transitória ou definitiva não puderem exprimir vontade, caso do sujeito em coma, passaram a ser relativamente incapazes para os atos da vida civil”.
Desta sorte, como já dito, com a revogação de todos os incisos do artigo 3º do Código Civil só são absolutamente incapazes para os atos da vida civil os menores de dezesseis anos[26].
Além das causas impeditivas temos as causas suspensivas, igualmente estão expressamente previstas em um rol taxativo do artigo 1.523 do dito Códex[27], e compreendem recomendações daqueles que não devem, porém podem se casar. Senão vejamos:
Art. 1.523. Não devem casar:
I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros;
II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal;
III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal;
IV - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas.
Parágrafo único. É permitido aos nubentes solicitar ao juiz que não lhes sejam aplicadas as causas suspensivas previstas nos incisos I, III e IV deste artigo, provando-se a inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, para o ex-cônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada; no caso do inciso II, a nubente deverá provar nascimento de filho, ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo.
Art. 1.524. As causas suspensivas da celebração do casamento podem ser arguidas pelos parentes em linha reta de um dos nubentes, sejam consanguíneos ou afins, e pelos colaterais em segundo grau, sejam também consanguíneos ou afins.
Note-se que todos os dispositivos analisados até o momento têm como pilar a proteção aos cidadãos brasileiros.
Em seguida trataremos diretamente a respeito da Lei Federal n.º 13.146/2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência.