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Julgamento por teses e gerenciamento de dados

Agenda 08/01/2017 às 10:00

A opção do legislador no sentido de fazer convergir o julgamento das questões repetitivas para casos paradigmáticos somente se efetivará completamente e de maneira inovadora se receber um gerenciamento com uso de meios automáticos de manipulação de dados e de replicação das teses aos casos individuais.

A palavra “tese”, usada no sentido de proposição abstrata formulada por um tribunal sobre determinada questão de direito, aparece 22 (vinte e duas) vezes no Código de Processo Civil de 2015 (conferir: art. 12, §2º II; art. 927, §§2º e 4º; art. 947, §3º; art. 955, II; art. 976, §4º; art. 977, parágrafo único; art. 978, parágrafo único; art. 984, §2º; art. 985; art. 986. ; art. 987, §2º; art. 988, §4º; art. 1.022, parágrafo único, I; art. 1.038, §3º; art. 1.039; art. 1.040, III e IV; art. 1.043, §1º). Já no Código de 1973, em sua redação original e por mais 33 anos (até o advento da Lei 11.481/2006), esse vocábulo não foi empregado uma vez sequer.

Essa constatação sugere que o Novo Código de Processo Civil reformulou em profundidade a sistemática de julgamento de recursos pelos tribunais, notadamente em casos repetitivos. Houve acentuada abstração do julgamento, que agora deve concentrar-se sobre a questão jurídica reiterada e não tanto sobre o caso sob exame (embora este deva ser julgado pelo órgão uniformizador, conforme art. 977, art. 978, art. 1.039).

O problema da divergência de soluções judiciais para casos idênticos não é novo, nem é a primeira vez que a legislação brasileira se ocupa do assunto. Para não retroagir até os “assentos” das Ordenações Manuelinas (Livro V, Título LVIII), vale ressaltar que em 1862, em obra cujo sugestivo título era “Decadência da magistratura brasileira; suas causas e meios de restabelecê-la”, José Antonio de Magalhães Castro já observava: “Quando, com as mesmas leis, variam as decisões em casos idênticos, agrava-se o mal a ponto de ser melhor viver sem lei alguma” (ver: https://www.stf.jus.br/bibliotecadigital/OR/54536/pdf/54536.pdf). E Octaciano Nogueira (A Constituição de 1824. Editora do Senado: Brasília, 2001, pág. 139) afirma que durante os 65 anos de vigência da Constituição Imperial, a principal preocupação do sistema judiciário foi a uniformização da jurisprudência. Mais recentemente, o CPC/73 também já tinha disciplina tendente a uniformizar a jurisprudência (arts. 476. a 479). A novidade do CPC/2015 é a generalização da sistemática para as chamadas causas repetitivas e a previsão de efeito vinculante para a tese firmada. Essa previsão formal, em si, porém, é tautológica, porque a lei também é obrigatória em todo o território nacional e nem por isso a aplicação dela está isenta de incertezas e divergências. A grande questão é e sempre foi: como fazer, na prática, que a tese seja observada nos casos em que deve ser observada?

Para além das discussões de ordem política e até mesmo filosófica que essa orientação legislativa possa suscitar, é certo que a reconfiguração operada pelo CPC/2015 depende, para a sua concretização prática, de mudança do éthos dos partícipes do processo, notadamente dos tribunais; mas depende ainda mais do gerenciamento de informação. O sucesso da aplicação dessa nova fórmula de julgamento realmente está menos dependente de teorias jurídicas que do correto desenvolvimento de bons programas de gerenciamento de dados. Talvez agora, como nunca antes, graças às novas tecnologias, pela primeira vez se possa falar com propriedade de decisão vinculante.

Com efeito, entre as inúmeras questões que essa nova sistemática suscita, uma parece particularmente importante: os mecanismos de gerenciamento e transmissão das informações decorrentes da identificação e seleção das questões repetitivas, bem como a ordenação das teses para fins de sua aplicação.

Em vão se trabalhará para firmar teses se não houver um meio operacional eficiente e rápido para transmitir as repercussões adequadas sobre os processos individuais pertinentes. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal firma a tese de que o tributo “t” é inconstitucional. Para que essa tese tenha pregnância superior à de uma lei, não adianta recrudescer admoestações hermenêuticas e solicitar os juízes que a aplique — isso a lei já faz e todo dia surgem processos sobre a aplicação da lei. O mais importante é encontrar uma maneira operacional de fazer com que essa tese recaia automaticamente sobre os processos que estão sob seu alcance semântico, sem passar por interpretações analógicas mediadoras. Ou seja, é preciso encontrar um meio de fazer essa aplicação por meios digitais. Claro, isso não é simples, depende do desenvolvimento de um algoritmo específico e do uso de máquinas capazes de executá-lo, mas não é de modo algum impossível no estágio atual da técnica computacional.

O Código ainda aposta nos meios analógicos para dar transcendência à tese jurídica (como indicam, por exemplo, o art. 1.039. e o art. 1.040, III e IV do NCPC). Mas isso não impede o avanço dos mecanismos automatizados, tanto mais porque o próprio Código assim o permite (arts. 193. a 199). O fluxo de informações sobre quais recursos estão subordinados à questão jurídica repetitiva (o input do sistema de julgamentos) e sobre as teses firmadas pelo tribunal (o output), deve se dar não para que o órgão local aprecie novamente a aplicabilidade da tese, como ocorre hoje, mas sim por meio de uma informação discreta, que incida diretamente sobre os processos afetados, se possível por mecanismos remotos do próprio tribunal. Só assim se pode atingir a integridade a que alude o art. 926. Só assim também se pode falar de um efeito “vinculante” (art. 927) que não seja apenas metafórico.

Não parece profissional, num sistema de teses, que o tribunal uniformizador fixe entendimento abstrato sem saber o número exato de processos estão (e sem saber quais são eles), naquele momento, sujeitos à incidência da tese. O conhecimento do número de casos (e dos casos concretamente falando) a ser atingido pela tese é, inclusive, um dado relevante para o próprio julgamento. Por outro lado, firmada a tese, não deve haver maior discussão sobre a quais casos pendentes ela é aplicável — a seleção deve já ter sido feita adequadamente, ao menos quanto aos casos que existiam já aquando da afetação do caso-paradigma. Nem deve haver aplicação da tese que não seja automática, pois se for analógica inevitavelmente estará sujeita ao “contágio” da subjetividade (que o legislador, bem ou mal, quis extirpar). Atualmente, a função do juiz a quo é apenas identificar e declarar suspenso o processo, quando o tribunal afeta o caso-padrão ao julgamento repetitivo. Pode-se ir além: o juízo a quo poderia alimentar o sistema de dados com inúmeras informações relevantes, preparando a causa para receber a solução-padrão, de modo tal que, quando esta for proferida, a sua aplicação seja apenas uma questão de pura execução de um programa.

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Outro ponto que toca diretamente o gerenciamento de informações é a questão da hierarquização lógica das teses e da obstrução de antinomias. Não é exato tratar todos os recursos repetitivos como se tivessem a mesma prioridade, sem avaliar o número de processos sobre os quais incidirá a tese, bem como sobre a própria prioridade lógica de certos temas. Um exemplo pode iluminar: um recurso repetitivo que verse sobre a forma de cálculo da correção monetária nas condenações contra a Fazenda Pública nas ações cíveis não pode ser tratado com menor prioridade que um recurso repetitivo que trate de uma gratificação de certo grupo de servidores públicos. É que a tese firmada na primeira ação repercutirá sobre um conjunto infinitamente maior de demandas, inclusive sobre as que versam a respeito da gratificação referida. Um sistema de gerenciamento de dados eficiente pode perfeitamente ordenar essas questões temáticas, inclusive revelando que algumas são subconjuntos de outras.

As questões repetitivas, na verdade, não aparecem isoladas nos processos individuais. Elas se mesclam, em cada caso, com inúmeras outras questões, que também podem ser repetitivas, daí porque é indispensável na gestão dos processos repetitivos que se leve em conta também uma visão global do acervo judiciário, e não apenas a discussão em si. É também evidente a necessidade de se cogitar de julgamentos parciais, mediante a incidência de tese sobre caso individual que tenha questões excedentes não prejudicadas pelo julgamento-paradigma. Isso não foi tratado diretamente pelo Código, mas pode ser obtido por extensão daquilo que se contém no art. 354, parágrafo único, e art. 356.

Sobre a questão da hierarquização lógica, nas ações individuais está bem estabelecido na doutrina e na lei que o juiz deve sempre, antes de julgar o mérito, apreciar as questões preliminares (ex: art. 357, I). Ora, sendo assim, pelas mesmas razões, as questões repetitivas que versem sobre preliminares (competência, legitimidade, interesse, etc.) devem ser julgadas antes de quaisquer outras, sob pena de atuação antieconômica do tribunal uniformizador. O tribunal pode firmar uma tese sobre certa questão repetitiva de mérito (por exemplo, a inconstitucionalidade de um tributo) que sirva para um número “x” de processos, mas depois vem a firmar uma tese sobre uma questão preliminar (por exemplo, ilegitimidade ativa do substituto tributário) que “desaplica” a primeira tese em praticamente todos os casos individuais existentes (que foram ajuizados por substitutos tributários). É evidente que a questão preliminar repetitiva deveria ter sido julgada primeiro.

As antinomias são outra coisa a ser pensada no âmbito da fixação de teses. Uma vez que o julgamento em forma de tese tem a mesma expressão lógica de uma lei, não só é possível como é altamente provável que surjam paradoxos lógicos entre esses julgados abstratos. A simples conjuração retórica disso não impede que no mundo dos fatos as contradições ocorram. Os tradicionais critérios de superação das antinomias entre leis (temporal, espacial, material, hierárquico) podem e devem ser usados para a solucionar esses conflitos. O ideal, porém, é que sejam criados mecanismos prévios de detecção lógica, por meio de inteligência artificial, dos possíveis paradoxos. Não pode a jurisprudência, caso se postule seriamente a uniformidade, ficar na dependência de que a parte ou algum julgador “lembre” que já existe um caso repetitivo sendo apreciado em um tribunal superior, ou num caso-paradigma já julgado. Com o volume brutal de informações que se produz a cada dia, a varredura das informações deve ser feita por máquinas, senão estará fadada a cometer falhas elementares.

Em resumo, a opção do legislador no sentido de fazer convergir o julgamento das questões repetitivas para casos paradigmáticos somente se efetivará completamente e de maneira inovadora se receber um gerenciamento com uso de meios automáticos de manipulação de dados e de replicação das teses aos casos individuais. A discussão jurídica, política e filosófica sobre se esse mecanismo de centralização dos julgamentos é bom ou ruim somente se fará com maior clarividência quando se tiver aplicado meios operacionais técnicos que sejam capazes de tornar realidade indiscutível essa promessa legislativa de uniformização jurisprudencial. Até lá, qualquer discussão dessa natureza acaba recaindo no campo puramente ideológico, ou se concentrando nos desperdícios e incongruências do funcionamento real do sistema, não no seu conceito.

Sobre o autor
Nazareno César Moreira Reis

juiz federal da Seção Judiciária do Piauí

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS, Nazareno César Moreira. Julgamento por teses e gerenciamento de dados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4939, 8 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54964. Acesso em: 22 nov. 2024.

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