4. Imunidade recíproca e entidades da Administração Pública indireta
Além das imunidades apresentadas no Capítulo anterior, tem-se a denominada imunidade recíproca, cuja previsão se encontra no art. 150, VI, “a”, da Constituição Federal, in verbis:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...)
VI - instituir impostos sobre:
a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;
Vitório Cassone[10] entende que a imunidade recíproca é aquela “que se dá entre as pessoas políticas detentoras da competência tributária, em que uma não tributa a outra, em relação a impostos”.
Essa limitação ao poder de tributar tem fundamento imediato no postulado da isonomia dos entes constitucionais, vez que, pela nossa estrutura de federação, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, embora não sejam independentes, são autônomos no sistema brasileiro de organização político-administrativa.
Com base nessa ideia e, sabendo que a Constituição Federal Brasileira adota um federalismo atípico, que coloca até o ente municipal em grau de paridade, não faria sentido viabilizar uma competência impositiva de um ente federativo sobre o patrimônio, a renda e os serviços dos demais.
Importante notar que o poder de instituir impostos caracteriza uma relação de sujeição, o que seria inusitado quando se fala em autonomia entre os entes políticos.
Acerca do tema, merece destaque o seguinte trecho do voto do Ministro Celso de Mello:
“É importante por em destaque, neste ponto, a própria razão de ser da cláusula que instituiu a imunidade tributária recíproca.
Sabemos que a Constituição do Brasil, ao institucionalizar o modelo federal de Estado, perfilhou, a partir das múltiplas tendências já positivadas na experiência constitucional comparada, o sistema do federalismo de equilíbrio, cujas bases repousam na necessária igualdade político-jurídica entre as unidades que compõe o Estado Federal.
(...)
A imunidade tributária recíproca – consagrada pelas sucessivas Constituições republicanas brasileiras – representa um fator indispensável à preservação institucional das próprias unidades integrantes do Estado Federal, constituindo, ainda, importante instrumento de manutenção do equilíbrio e da harmonia que devem prevalecer, como valores essenciais que são, no plano das relações político-jurídicas fundadas no pacto da Federação.”
(STF, 2ª Turma, RE 363412 AgR/BA, data de julgamento 07.08.2007)
Em suma, pode-se afirmar que a imunidade tributária recíproca deriva de um vínculo fundado na isonomia entre os entes políticos que compõem a República Federativa do Brasil, representando uma cláusula impeditiva de conflito federativo.
No que diz respeito à sua destinação, sabe-se que a imunidade é destinada a todos os entes federativos. Porém, o próprio texto constitucional a estende ao patrimônio, renda e aos serviços das Autarquias e Fundações. Contudo, desde que vinculados às suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes. Assim dispõe o art. 150, § 2º da Constituição Federal:
§ 2º - A vedação do inciso VI, "a", é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.
Ao tratar especificamente das Autarquias e Fundações de direito público, o constituinte quis, nitidamente, fazer uma distinção entre as entidades públicas de direito público e as entidades públicas de direito privado.
Essa distinção estaria em consonância com o que dispõe o artigo 173, da Constituição Federal:
§2º - "As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado".
Contudo, não se pode esquecer, que existem aquelas entidades de direito privado integrantes da Administração Indireta que se destinam a prestar serviços públicos, o que as enquadra numa situação muito mais próxima às autarquias e fundações públicas.
O que se deve ter em mente é que se o serviço público for prestado diretamente pela pessoa política estará, indubitavelmente, imune à tributação por via de impostos. E, assim, a mera delegação da execução desse serviço público, pela pessoa que é titular da competência para prestá-lo à coletividade, a uma empresa pública ou sociedade de economia mista, não deveria, portanto, alterar o regime jurídico, inclusive tributário, que incide sobre a mesma prestação.
Sobre a aplicabilidade da imunidade às empresas estatais, prestadoras de serviço público, como a ECT, Roque Antonio Carrazza, ensina[11]:
“De fato, quando as empresas estatais prestam, na condição de delegatárias, serviços públicos, a elas não se aplica a vedação do art. 150, parágrafo 3º, da CF, mas sim o princípio da imunidade recíproca (art. 150, VI, “a”, da CF), que lhes garante o direito de não recolher impostos ainda que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelos usuário. Não há falar, pois, no caso, em desempenho de atividade econômica, quando – aí sim (e somente aí) – o princípio da imunidade recíproca deixaria de se fazer sentir.”
Nesse mesmo sentido entendeu o Supremo Tribunal Federal que, apesar de não haver previsão na Constituição, tais pessoas de direito privado seriam abrangidas pela imunidade tributária recíproca quando prestadoras de serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do Estado.
No que diz respeito às empresas públicas, tal entendimento foi consagrado no julgamento do RE 407.099/RS, que tratava especificamente da Empresa de Correios e Telégrafos, cuja ementa se transcreve:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS: IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RECÍPROCA: C.F., art. 150, VI, a. EMPRESA PÚBLICA QUE EXERCE ATIVIDADE ECONÔMICA E EMPRESA PÚBLICA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO: DISTINÇÃO. I. - As empresas públicas prestadoras de serviço público distinguem-se das que exercem atividade econômica. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos é prestadora de serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do Estado, motivo por que está abrangida pela imunidade tributária recíproca: C.F., art. 150, VI, a. II. - R.E. conhecido em parte e, nessa parte, provido.
(RE 407099, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 22/06/2004, DJ 06-08-2004 PP-00062 EMENT VOL-02158-08 PP-01543 RJADCOAS v. 61, 2005, p. 55-60 LEXSTF v. 27, n. 314, 2005, p. 286-297) [original sem destaque]
A extensão da imunidade tributária recíproca às sociedades de economia mista prestadoras de serviço público, por sua vez, apenas foi reconhecida em momento posterior, em 2007, quando o STF, no julgamento da AC 1550/RO, entendeu também serem destinatárias da proteção constitucional, desde que preencham os mesmos requisitos exigidos das empresas públicas.
Pacificada essa questão, surgiu nova discussão, e em 2013, o Supremo Tribunal Federal surpreendeu ao proferir decisão flexibilizando o entendimento anteriormente explanado.
A nova discussão referia-se às atividades exercidas pelos Correios, e o fato de algumas não se enquadrarem como vinculadas a suas finalidades essenciais, nem sequer como serviços públicos.
Na oportunidade do julgamento, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a EBCT deveria ser beneficiada pela imunidade recíproca não apenas no que diz respeito à prestação do serviço público (matéria já pacificada pelo Tribunal), mas também em relação a todas as demais atividades, bens e serviços por ela empreendidos, aí residindo a virada jurisprudencial promovida pela Corte Suprema.
O voto condutor, de lavra do Ministro Joaquim Barbosa, apresentou como argumentos, dentre outros, o fato de que os Correios, ainda quando não prestem serviços de natureza pública, se sujeitam a uma série de restrições não aplicáveis à iniciativa privada, como a exigência de prévia licitação para a celebração de contratos, a realização de concursos públicos para a contratação de pessoal e a submissão ao controle pelo Tribunal de Contas.
Para além disso, afirmou-se que, no que diz respeito aos serviços enquadrados como financeiros, a principal clientela é composta por pessoas sem acesso à moderna rede bancária brasileira. Ou seja, embora a EBCT esteja, no caso, de fato, oferecendo serviço financeiro, não se poderia cogitar de efetiva concorrência, na medida exata em que as agências da empresa pública estão localizadas em diversas localidades que, de tão provincianas, não contam com a presença de outros estabelecimentos bancários do sistema financeiro nacional.
De acordo com o Ministro Ricardo Lawandowiski: “os correios prestam serviços onde a iniciativa privada não presta, não quer prestar ou entende que é deficitária”.
Por fim, os Ministros entenderam que a prestação do serviço postal vem passando por um momento histórico de baixa, sendo paulatinamente esvaziada pela utilização de novas tecnologias, principalmente a internet, o que tem tornado obsoletas, por exemplo, a comunicação por carta ou telegrama, tornando premente a necessidade de proteção fiscal no que toca aos serviços financeiros, sob pena de se comprometer a viabilidade financeira da empresa pública em questão.
Com efeito, a Constituição, em seu art. 21, atribui à União Federal a competência para manter o serviço postal e o correio aéreo nacional, devendo assim ser entendida como a obrigação de manter tal serviço, ainda que ele deixe de ser lucrativo.
Em face dos argumentos acima apresentados, por maioria mínima, o STF entendeu que todas as atividades realizadas pelos Correios estão protegidas pela imunidade recíproca.
Conclusão
De todo o exposto, é simples concluir que a imunidade recíproca é estendida às empresas estatais prestadoras de serviços públicos, de prestação obrigatória e exclusiva do Estado.
Ademais, no que tange à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, evidencia-se que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal fixou entendimento no sentido de aplicação da imunidade tributária recíproca, ainda no que se refere aos serviços financeiros por ela prestados, sendo, assim, imune aos impostos estaduais e municipais, não só na prestação de serviços exclusivos, mas também não exclusivos.
REFERÊNCIAS
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ALEXANDRINO, Marcelo. Direito tributário na Constituição e no STF. 17 ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014
ATALIBA, Geraldo. Parecer sobre o serviço postal e as atividades da ECT.
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CASSONE, Vittorio. Direito Tributário: fundamentos constitucionais, análise dos impostos, incentivos à exportação, doutrina, prática e jurisprudência. 11 ed. São Paulo: Atlas, 1999.
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MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 28ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 1997.
NOGUEIRA, Ruy Barbosa, Direito tributário: estudo de casos e problemas. São Paulo; Bushatsky, 1973, p. 140.
Notas
[1] NOGUEIRA, Ruy Barbosa, Direito tributário: estudo de casos e problemas. São Paulo; Bushatsky, 1973, p. 140.
[2] MARTINS, Marcelo Guerra. Limitações constitucionais ao poder de tributar. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-unimep/index.php/direito/article/view/710/267> Acesso em: 06/11/2014.
[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 1997.
[4] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. Salvador: Jus Podium, 2008.
[5] DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Manual de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2003.
[6] ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 7ª ed. São Paulo: Método, 2013.
[7] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 28ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 304.
[8] ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 7ª ed. São Paulo: Método, 2013, p. 148.
[9] DA SILVA, Edgard Neves apud MARTINS, Ives Gandra da Silva. Curso de Direito Tributário. / Ives Gandra da Silva Martins, coordenador. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. P. 282.
[10] CASSONE, Vittorio. Direito Tributário: fundamentos constitucionais, análise dos impostos, incentivos à exportação, doutrina, prática e jurisprudência. 11 ed. São Paulo: Atlas, 1999.
[11] CARRAZZA, Roque Antonio. A Imunidade Tributária das Empresas Estatais Delegatárias de Serviços Públicos – Um estudo sobre a imunidade tributária da ECT. 2004, p. 35.