RESUMO: O presente artigo analisa o Plano Diretor do município de Marabá/PA à luz da função social da propriedade atrelado à proposta de agricultura urbana como uma das formas de materialização dessa função. Discute que o enfrentamento de problemas sociais diversos que assolam as cidades deve ocorrer a partir de ações em consonância com o desenvolvimento sustentável. A pesquisa identificou a inexistência de uma política municipal de agricultura urbana e sugere alterações no Plano Diretor para incluí-la. Como complementação, propõe a aprovação de uma lei para instituir a Política Municipal de Agricultura Urbana e ainda a efetivação de projetos envolvendo hortas comunitárias, escolares e residenciais.
Palavras-chave: desenvolvimento sustentável, função social da propriedade, agricultura urbana.
Sumário: Introdução. 2. Considerações acerca da Função Social da Propriedade. 2.1. A função Social da Propriedade no ordenamento jurídico brasileiro. 3. O Plano Diretor e a função Social da Propriedade Urbana. 4. A Agricultura Urbana como proposta ao desenvolvimento sustentável das cidades. 5. Descrição e análise do objeto. 5.1. O Plano Diretor do município de Marabá/PA. 5.2. Proposições. 6. Considerações Finais.
Introdução
As cidades e centros urbanos nos países em desenvolvimento estão crescendo a uma escala sem precedentes. Há dez anos, cerca de 40% da população do mundo em desenvolvimento – ou 2 bilhões de habitantes – viviam em áreas urbanas. Desde então, esse número aumentou a um ritmo de quase o dobro do crescimento da população total, para mais de 2,5 bilhões. Trata-se do equivalente a quase cinco novas cidades do tamanho de Pequim a cada 12 meses. Em 2025, mais da metade da população do mundo em desenvolvimento – 3,5 bilhões de pessoas – será urbana.[1]
Enquanto na Europa e América do Norte a urbanização levou séculos, estimulada pela industrialização e aumento constante da renda per capita, no mundo em desenvolvimento ocorrerá no espaço de duas ou três gerações. Em muitos países em desenvolvimento, o crescimento urbano está sendo impulsionado não pela oportunidade econômica, mas por altas taxas de nascimento e um afluxo maciço de habitantes rurais que procuram escapar da fome, pobreza e insegurança. A própria ONU vem alertando para os níveis elevados de urbanização e sua relação direta com os níveis de pobreza e insegurança alimentar desde a Conferência Habitat II - Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Urbanos.
O princípio da sustentabilidade das cidades tem sido mundialmente debatido. As discussões desse princípio iniciaram-se na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento – Rio 92 – e continuou na Conferência sobre as Cidades, promovida pelas Nações Unidas em Istambul, em 1996. Naquela ocasião foram redigidas 100 páginas da “Agenda Habitat” que foi assinada por 180 nações, na qual o Brasil também foi signatário[2] e que impulsionou em nível interno, a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001, definindo um novo marco legal para as políticas urbanas.
Os termos dessa agenda estabeleceram, entre outras prioridades, que “a instalação ou estabelecimento humano deve ser planejado, desenvolvido e melhorado de tal maneira que leve em conta os princípios do desenvolvimento sustentável” e que “é necessário respeitar a capacidade suporte dos ecossistemas e a preservação de oportunidades para as gerações futuras”[3]. Rediscutir a função social da propriedade, em especial o imóvel urbano se tornou uma obrigação em perfeita conexão com a visão sistêmica de desevolvimento sustentável nas cidades. Afinal, a disputa desenfreada por espaços e o uso inadequado do solo geram desequilíbrios incontestáveis.
Marabá, cidade situada no sudeste do estado do Pará, enfrenta problemas semelhantes aos de algumas cidades de países em desenvolvimento. Considerada uma das expoentes cidades da Amazônia paraense, é um município médio que carrega consigo a reflexão de que “a urbanização dos espaços das cidades amazônicas é condição e resultado de processos socioespaciais constituídos historicamente”.[4] A cidade de Marabá, polo para todo o sudeste e sul do Estado, é a única do Pará entre as 20 cidades de porte médio do Brasil (entre 100 mil e 500 mil habitantes) que mais cresce economicamente.[5] Atualmente possui população estimada em 266.932[6] habitantes, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desses, 47.399 residem na zona rural e 186.270 na zona urbana do município.
Dessa crescente urbanização, resultam dois problemas principais e comuns que são o fornecimento de alimentos e a preservação ambiental. Decorrem também questões fundamentais como: A cidade se organiza dentro de um sistema sustentável? Como o Plano Diretor rediscute a função social da propriedade de maneira a contribuir para a elaboração de políticas públicas no enfrentamento de problemas urbanos? E mais, como a prática de Agricultura Urbana (se existe) se insere no enfrentamento de problemas multisetoriais vivenciados pelas cidades, em especial, na cidade de Marabá/PA, e como ela pode contribuir para esses enfrentamentos?
Nesse contexto, diversos esforços devem ser somados para a superação desses problemas que podem ser tanto a alteração de leis municipais com intuito de reorganizar o planejamento urbano, até a execução de projetos transversais com a participação do poder público e da sociedade civil. Em se tratando de diplomas legais locais, impõe-se a necessidade de ressignificação da função social da propriedade urbana, vez que o instituto deve estar em consonância com os enfrentamentos dos problemas da cidade, por isso, ele não é um termo fechado em si mesmo, mas passível de alteração, à medida que o dinamismo social urbano se impõe. Tal concepção justifica, por exemplo, a obrigatoriedade legal imposta pelo Estatuto da Cidade em se revisar o Plano Diretor a cada dez anos (art. 40, § 3º), o que não impede a sua revisão a qualquer tempo.
As políticas públicas têm favorecido os grandes empreendimentos econômicos por intermédio de incentivos fiscais, aportes financeiros, alterações legislativas e fiscalização ineficiente das relações de trabalho, em detrimento de condições dignas de vivência social para a maioria das populações locais. Existe um Projeto de Lei 906/15 tramitando no congresso nacional sobre a matéria visando instituir a Política Nacional de Agricultura Urbana. Tal projeto será abordado na seção 4 que trata sobre a agricultura urbana.
O enfoque do trabalho em contribuir para o desenvolvimento sustentável local, atrelado a uma cultura de cultivo urbano em imóveis ociosos estratégicos da cidade de Marabá/PA, sugere alterações no Plano Diretor para inserir a Agricultura Urbana nos seus dispositivos e a aprovação de uma lei específica para instituir a política municipal de agricultura urbana a ser implementada pelo governo. A proposta possui uma dimensão intersetorial, visto que na busca pela concretização da função social da propriedade – no caso, os imóveis urbanos – ela deve ser perseguida de modo a identificar e enfrentar os problemas que assolam a cidade. Daí a necessidade de conexão com várias áreas, para que haja uma maior convergência para a manutenção da qualidade de vida das pessoas, ideal considerado o grande “gênero” em nossos dias, do qual a função social da propriedade e o desenvolvimento sustentável se tornam “espécies” de vital importância. As ações de políticas públicas em relação à Agricultura Urbana podem se dar nas seguintes áreas normativas: política de uso do solo urbano; segurança alimentar urbana; política de saúde; política ambiental e política de desenvolvimento social. O estudo propõe, portanto, a absorção de uma nova cultura no que tange à tríade ser humano, ambiente e alimentação.
Portanto, políticas públicas voltadas para o incentivo e a implementação da agricultura urbana podem favorecer e promover o desenvolvimento local das periferias de grandes cidades por meio da utilização racional de espaços urbanos ociosos. A produção de alimentos de boa qualidade nutricional e sem agrotóxicos, desenvolvida a custo relativamente baixo, pode contribuir não só para melhorar a qualidade de vida, como também para aumentar a renda familiar.
Entre tantas possibilidades e iniciativas, sem dúvida, o desenvolvimento da agricultura urbana tem importante papel para contribuir para o futuro da sustentabilidade das cidades.
Na zona urbana é onde está concentrada a maioria da população, onde a degradação da qualidade ambiental é, no geral, elevada, o que pode levar à ocorrência de problemas de saúde pública. A identificação dos principais problemas dos ecossistemas urbanos representa um passo importante para a posterior aplicação de medidas que conduzam a uma melhor gestão ambiental permitindo, assim, a manutenção dos serviços ecológicos que tornam as cidades mais sustentáveis. Isso inclui a identificação e intervenção em espaços urbanos subutilizados, em latente descompasso com a função social da propriedade, a fim de se propiciar uma melhora na qualidade de vida de seus habitantes.
Em muitos países as hortas urbanas, como espécie da agricultura urbana, têm surgido como uma eficiente proposta na efetivação da cultura ambiental. A proposta atrai a superação da ideia de que somente aos espaços rurais é reservada a produção de alimentos. Nesse contexto, as hortas, como ecossistemas agrícolas, proporcionam, além dos serviços gerados como espaços verdes, produtos alimentares e, portanto, podem suprir necessidades básicas estimulando um desenvolvimento sustentável. A pesquisa demonstrará algumas experiências de hortas comunitárias e sua influência no desenvolvimento sustentável das cidades.
Desta forma, medidas que permitam a autonomia e uma melhor qualidade de vida nas cidades são necessárias e desejáveis, e não podem ser vistas apenas como uma “tendência” transitória, mas como uma cultura a ser absorvida e tornada contínua. As hortas urbanas podem contribuir para enfrentar de forma positiva a situação econômica atual, melhorar a qualidade ambiental das cidades e o bem-estar da população. Pretende-se com este trabalho propor a implantação de hortas comunitárias como ação de efetivação da função social da propriedade, tendo como eixo o desenvolvimento sustentável previsto no Plano Diretor de Marabá/PA.
Como metodologia utilizou-se a pesquisa bibliográfica, bem como dados disponibilizados pelo site do FAO/ONU e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE), além de dados disponibilizados pelo sítio eletrônico da prefeitura de Marabá/PA.
Contribuíram com essa pesquisa teóricos da área jurídica, a saber: Teori Zavascki (2005), Bernardo Gonçalves Fernandes (2013), Paulo Luiz Neto Lobo (1999) e Fábio Konder Comparato (1997) acerca do instituto da função social da propriedade a partir da nova ressignificação promovida pela Constituição Federal de 1988. Para problematizar a importância do Plano Diretor no planejamento urbano, foram valorosos os posicionamentos críticos de Sônia Carvalho (2001) e Edésio Fernandes (1997). Machado & Machado (2002), Dias (2000) e Roese & Curado (2004) auxiliaram na definição e discussão sobre a Agricultura Urbana.
O artigo está organizado da seguinte maneira: no intuito de problematizarmos o conceito de função social da propriedade em contraposição ao direito à propriedade, bem como sua performance no ordenamento jurídico, a seção 2 trata desse instituto de modo a discutir os vários pontos trazidos sobre o assunto, principalmente após a Constituição Federal de 1988, e que são pormenorizados pela doutrina. A seção 3 discute a importância do Plano Diretor e a sua relação com a função social da propriedade urbana. Na seção 4 será abordado o tema da agricultura urbana como alternativa para o desenvolvimento sustentável. A seção 5 analisa o Plano Diretor do município de Marabá. E a seção 6 foi reservada às considerações finais.
2. Considerações acerca da Função Social da Propriedade
2.1. A função Social da Propriedade no ordenamento jurídico brasileiro
A propriedade é o grande foco de tensão entre as correntes ideológicas do liberalismo e do igualitarismo.[7] A vigente constituição brasileira de 1988, construída sob a égide do Estado democrático e social de direito, também é refletora desse conflito. O direito de propriedade encontra-se protegido no rol dos direitos fundamentais (art. 5º, XXII, CF/88: “é garantido o direito de propriedade”) e, como princípio da ordem econômica (art. 170, II), simultaneamente, evidencia a clássica garantia da propriedade privada do Estado Liberal. Já os incisos XXIII e III (“a propriedade atenderá a sua função social”) dos mesmos artigos citados respectivamente, expressam a dimensão coletiva e intervencionista própria do Estado Social.
Lidos isoladamente, e sem considerar o papel de cada instituto, num primeiro plano pode soar como uma antinomia no texto constitucional em que em um predomina o interesse individual; em outro, o interesse social. Longe de propor um conflito, o ordenamento jurídico brasileiro procura acomodar os dois institutos. A CF/88, pelos mesmos artigos (art. 5º e 170 da CF/88), vincula o direito à propriedade à realização de uma função social. Ou seja, tanto o direito à propriedade, quanto a sua função social constituem-se como institutos jurídicos em mesmo grau de paridade de latente interdependência.
Bernardo Gonçalves Fernandes (2013) sintetiza que a “função social da propriedade é elemento integrador do conceito de propriedade como objeto constitutivo do mesmo, não se confundindo com os elementos limitadores do direito de propriedade”.[8] Seguindo a lógica levantada pelo constitucionalista, não poderá ser juridicamente considerado proprietário aquele que não der ao bem uma destinação compatível e harmoniosa com o interesse público. Logo, no dizer de Carvalho (2013), “é muito mais que o estabelecimento de limitação ao exercício do bem, fixando condutas que podem, até mesmo, colidir com os interesses do proprietário, mas que se não atendidas, desnaturam a própria condição do mesmo”.[9]
Alguns doutrinadores tratam a função social da propriedade para além de um aspecto funcional, elevando-a a um princípio constitucional. Assim propugna Zavascki (2005) que tal princípio não está, de forma alguma, “confinado a mero apêndice do direito de propriedade, a simples elemento configurador de seu conteúdo”. O eminente teórico propugna ainda que:
por função social da propriedade há de se entender o princípio que diz respeito à utilização dos bens, e não à sua titularidade jurídica, a significar que sua força normativa ocorre independentemente da específica consideração de quem detenha o título jurídico de proprietário.[10]
Teori Zavascki discorre sobre a tutela da posse, no ordenamento jurídico brasileiro, para além da exteriorização do direito de propriedade e para o qual o possuidor tem o dever de observância da função social da propriedade,[11] desvelando, assim, uma estreita relação entre posse e propriedade.
De fato, a Constituição da República de 1988 baliza os dois princípios, vez que a concepção sobre propriedade foi inserida como um direito fundamental do cidadão, do qual pode livremente dispor, desde que observe a sua função social. Em outras palavras, a Carta Magna preceitua que a propriedade é um direito fundamental que perdeu o status de inviolabilidade absoluta antes associada à influência de ideias fundadas no individualismo. A mudança de paradigma se impõe na medida em que a função social é incompatível com a noção de direito absoluto, oponível a todos, em que se admite apenas a limitação externa, negativa.[12]
A função social importa limitação interna, positiva, condicionando o exercício e o próprio direito. Lícito é o interesse individual quando realiza, igualmente, o interesse social. Ainda que, aparentemente se mostre contraditório, o exercício do direito individual da propriedade deve ser feito no sentido da utilidade não somente para si, mas para todos. Essa é a proposta trazida pela constituição cidadã à qual o estado brasileiro se filia e que deve irradiar a todo o ordenamento jurídico. Daí os propósitos constitucionais serem incompatíveis com a inércia, com a inutilidade, com a especulação. Conforme Comparato (1997), numa visão voltada para a ótica dos direitos humanos: “é preciso, enfim, reconhecer que a propriedade-poder, sobre não ter a natureza de direito humano, pode ser uma fonte de deveres fundamentais, ou seja, o lado passivo de direitos humanos alheios”.[13]
Comparato (1997), apoiado na doutrina alemã, enfatiza que a exegese do instituto deve se mirar na ideia de que o legislador estendeu a determinação do conteúdo e limites da propriedade. Portanto, filia-se ao entendimento de Hans-Jochen Vogel, para o qual a influência ideológica das premissas adotadas pelo estado social impõe os deveres de que “a responsabilidade social incumbe não só ao Estado, como aos particulares; Estado Social significa não apenas obrigação social da comunidade em relação aos seus membros, como ainda obrigação social destes entre si e perante a comunidade como um todo”.[14] Conforme propugna Lôbo (1999): “No estado social (Welfare State), todos os temas sociais juridicamente relevantes foram constitucionalizados” vez que o “Estado social, no plano do direito, é todo aquele que tem incluída na Constituição a regulação da ordem econômica e social”.[15]
A ideologia do social, traduzida em valores de justiça social ou distributiva, passou a dominar o cenário constitucional do século XX. A sociedade exige o acesso aos bens e serviços produzidos pela economia. Firmou-se a communis opinio de que a solidez do poder residiria, substancialmente, no econômico e, relativamente, no político. Daí a inafastável atuação do Estado, para fazer prevalecer o interesse coletivo, evitar os abusos e garantir o espaço público de afirmação da dignidade humana.[16]
Destarte, a propriedade é uma das bases do sistema socioeconômico do Estado, assim como a sua função. A sua importância transcende o âmbito dos direitos individuais, sendo mencionado também nas diretrizes da ordem econômica e social, o que torna plenamente compreensível e razoável o entendimento de que a propriedade deve harmonicamente atender aos anseios tanto do proprietário quanto da sociedade. Portanto, a propriedade – urbana ou rural – deve ser utilizada em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.
Para balizar o direito fundamental à propriedade, vários dispositivos atuam no corpo do texto constitucional expressando essa limitação ao direito de propriedade, como é o caso, por exemplo, da expropriação em caso de necessidade ou utilidade pública ou ainda por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro (art. 5º, XXIV, CF/88); do uso de propriedade particular pelo Estado, no caso de iminente perigo público, assegurando ao proprietário indenização em caso de dano (art. 5º, XXV, CF/88).
Por outro lado, o ordenamento jurídico protege a propriedade contra a expropriação arbitrária, sem qualquer indenização, uma vez que estaria configurado o confisco ou o perdimento, sanções possíveis apenas no caso de uso de propriedade como instrumento de crime, e após o devido processo legal. A exceção está prevista no artigo 243 da CF/88, o qual prevê a expropriação de propriedades urbanas e rurais sem indenização e ainda sem prejuízo de outras sanções, em caso de utilização de culturas ilegais de plantas psicotrópicas e com incidências de prática de exploração de trabalho escravo.[17]
O texto constitucional, apesar de atuar no plano genérico, cuidou de proteger claramente determinada espécie de propriedade, atribuindo-lhe especial proteção. É o caso, por exemplo, da pequena e da média propriedade rural. A Constituição as declara insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária e determina que a lei lhes garanta tratamento especial (art.185, CF). A pequena propriedade rural, ainda, como tal definida em lei, desde que trabalhada pela família do proprietário, não pode ser objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, além de gozar, por lei, de condições favorecidas de financiamento (art. 5º, inc. XXVI).
Todavia, a proteção constitucional não se limita à propriedade já existente. Garante-se, ainda, o acesso à propriedade a todos os que dela dependam como meio de subsistência, por meio do usucapião extraordinário dos arts. 183 e 191, CF/88.
O Código Civil, por sua vez, em seguimento às diretrizes constitucionais, dispõe que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas (art. 1228 do CC). Portanto, a propriedade deve ser utilizada como instrumento da produção e circulação de riquezas, para moradia ou produção econômica, não podendo servir de meio para a destruição de bens ou valores caros a toda a sociedade como é o caso do meio ambiente sadio e equilibrado.[18]
Todavia, para o código civil chegar a esse patamar, de fato foi necessária a incidência da constitucionalização do direito civil. Os códigos civis, historicamente, tiveram como paradigma o cidadão dotado de patrimônio, vale dizer, o burguês livre do controle ou impedimento público. Nesse sentido é que ampliaram o entendimento para o homem comum, deixando a grande maioria fora de seu alcance. Para os iluministas, a plenitude da pessoa dava-se com o domínio sobre as coisas, com o ser proprietário. A liberdade dos modernos, ao contrário dos antigos, é concebida como não-impedimento. Livre é quem pode deter, gozar e dispor de sua propriedade, sem impedimentos, salvo os ditados pela ordem pública e os bons costumes, sem interferência do Estado.[19]
A prevalência do patrimônio, como valor individual a ser tutelado nos códigos, por muito tempo prosperou e submergiu a pessoa humana, que passou a figurar como polo de relação jurídica, como sujeito abstraído de sua dimensão real. A patrimonialização das relações civis, mesmo que com sobrevida nos códigos, é incompatível com os valores fundados na dignidade da pessoa humana, adotado pelas constituições modernas, inclusive pela brasileira (artigo 1º, III). A repersonalização reencontra a trajetória da longa história da emancipação humana, no sentido de repor a pessoa humana como centro do direito civil, passando o patrimônio ao papel de coadjuvante, nem sempre necessário.
Impõe-se a materialização e supervalorização dos sujeitos de direitos, que são mais que apenas titulares de bens. A restauração da primazia da pessoa humana nas relações civis é a condição primeira de adequação do direito à realidade e aos fundamentos constitucionais.