5. PRINCÍPIOS APLICÁVEIS
5.1 Princípio da boa fé objetiva
O Código Civil de 2002, especificamente em seu artigo 422, faz referência ao princípio basilar da boa fé objetiva: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”[32].
Para Dias, o princípio da boa fé objetiva é oriundo do direito das obrigações, entretanto difundiu-se para todos os demais ramos do direito, inclusive o direito das famílias, atingindo as mais variadas relações jurídicas existentes como um dos critérios para controle da autonomia privada.
Nas ações afetas ao direito das famílias, conceito empregado pela doutrinadora, as relações familiares devem ser pautadas na ética e coerência, de modo que as partes envolvidas não criem falsas expectativas umas nas outras.
Segundo os ensinamentos da jurista, as partes devem pautar suas condutas na confiança, honestidade e na lealdade, qualquer que seja a relação jurídica celebrada, de modo a se comportarem de acordo com a expectativa gerada na outra, e qualquer conduta contrária a tais preceitos, constitui violação ao princípio da boa fé objetiva[33].
Por conseguinte, citando Cristiano Chaves, a doutrinadora leciona que em se tratando de relações familiares a confiança se materializa no afeto[34].
Sobre tal princípio, Venosa, que possui entendimento similar ao de Dias, afirma que a boa fé objetiva, se trata, em verdade, de cláusula geral, também definida pela doutrina como cláusula aberta, devendo sempre ser aplicada pelo Estado-Juiz de acordo com o caso concreto e com observância da compreensão social e histórica que cerca o referido princípio[35].
No entendimento do doutrinador, o princípio da boa fé objetiva tem o escopo de fazer com que as partes envolvidas em relações contratuais, celebrem a avença com confiança, honestidade e fidelidade contratual, a má fé, caso presente em um acordo de vontades vicia o negócio jurídico e não pode ser aceita pelo Poder Judiciário.
Venosa assevera que o órgão responsável pela prestação jurisdicional, deverá identificar se os partícipes de um determinado contrato, o celebraram com observância ao princípio da boa fé objetiva, ou seja, se as partes contratantes manifestaram suas vontades de acordo com um padrão de conduta comum ao homem médio, bem como se foram observados os aspectos sociais relevantes que porventura estejam envolvidos na contratação.
Dessa forma, o princípio da boa fé objetiva irradia-se sobre todo o ordenamento jurídico brasileiro e, no direito das famílias, possui uma importância ainda maior, pois, nas relações familiares, existe um liame afetivo entre as partes, que na maioria das vezes não se encontra presente em outros ramos do direito.
Por derradeiro, importante ressaltar que a doutrina e a jurisprudência pátria, reconhece outro princípio que, guardadas as suas peculiaridades, possui uma estreita ligação com o princípio da boa fé objetiva, trata-se do princípio da proibição de comportamento contraditório, e seu estudo, ainda que breve, mostra-se de suma importância no presente artigo, razão pela qual a seguir será feita breve análise das suas principais características.
5.2 Princípio da proibição de comportamento contraditório. "Venire contra factum proprium"
Nas palavras de Venosa, o princípio da vedação ao comportamento contraditório possui ligação direta com o princípio da boa fé objetiva, o qual visa proporcionar às partes contratantes maior segurança jurídica nas negociações, as quais deverão apresentar comportamento coerente com o objetivo a ser alcançado.
Conforme entendimento do doutrinador, o comportamento contraditório de qualquer das partes é, em verdade, ato ilícito, que pode ensejar tanto indenização de índole moral quanto por perdas e danos, logicamente de acordo com o caso concreto.
Venosa leciona ainda em sua obra, que o princípio da proibição de comportamento contraditório, guarda íntima relação com a vedação de alegação da própria torpeza, nemo auditur turpitudinem allegans[37] (ninguém pode ser ouvido ao alegar a própria torpeza), pois, trata-se de princípio geral do direito que se irradia por todo o ordenamento jurídico brasileiro, principalmente nas relações obrigacionais e contratuais[38].
Em outro ponto de sua obra, Venosa aduz que verificado no caso concreto o comportamento contraditório de uma das partes contratantes, tal conduta pode e deve ser arguida como matéria defensiva, a fim de se evitar que aquele determinado comportamento contrarie a expectativa gerada à outra parte, uma vez que a conduta anterior gera, objetivamente, esperança e confiança a quem foi dirigida[39].
Deste modo, a vedação ao comportamento contraditório, tem por escopo fazer com que as partes contratantes, comportem-se de forma leal nas relações contratuais e obrigacionais, tal princípio, busca preservar a confiança, a segurança jurídica. Ademais, busca proteger a expectativa gerada à contraparte a qual a manifestação de vontade foi direcionada.
Em outras palavras, aquele que apresenta determinado comportamento no meio jurídico, não poderá simplesmente escusar-se das consequências jurídicas provenientes de sua manifestação de vontade, a fim de frustrar a expectativa gerada na outra parte que, de boa fé, confia e acredita nos efeitos que aquele determinado comportamento poderá gerar em seu favor.
Assim, no momento em que os divorciandos ou companheiros, realizam nos autos da ação de divórcio ou união estável a promessa de doação seja entre si ou em favor dos filhos do casal, tal promessa, por si só, gera de forma clara e objetiva, real expectativa no promitente donatário, que confia na promessa e aguarda de boa fé a sua efetivação pelo promitente doador.
Deste modo, pela força dos princípios da boa fé objetiva e da vedação ao comportamento contraditório, não há como deixar de reconhecer a possibilidade jurídica do promitente donatário, exigir o cumprimento forçado da promessa de doação, por meio de uma ação cominatória, caso o promitente doador não cumpra o prometido, sem prejuízo de sua conversão em perdas e danos caso o bem objeto da promessa de doação tenha deixado de existir.
Somando forças aos aludidos princípios, será feita breve análise, em seguida, do princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional, a fim de demonstrar que o Poder Judiciário deve promover uma melhor prestação jurisdicional quando o assunto é promessa de doação, e reconhecer a sua exigibilidade por meio de execução específica nos casos de inadimplemento.
5.3 Princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional.
O presente estudo, como dito alhures, não objetiva e nem seria possível fazê-lo, esgotar a análise das normas e princípios constitucionais afetos ao direito das famílias, resumindo-se, neste ponto, à análise do princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional, a fim de demonstrar que a negativa do Poder Judiciário em reconhecer, por vezes, a exigibilidade da promessa de doação por meio de ação cominatória, constitui afronta ao princípio em análise e gera no jurisdicionado o sentimento de descrédito no Judiciário.
Segundo José Afonso da Silva, a Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 05 de outubro de 1988 (CRFB/1988), chamada pela doutrina de “Constituição Cidadã”, trouxe avanços e profundas mudanças no ordenamento jurídico brasileiro, e constitui o documento de maior importância jurídica no país na atualidade, vez que suas normas e princípios se irradiam por todos os ramos do direito, e a inobservância de seus preceitos na aplicação das normas constitui violação à Carta Magna.
Noutras palavras, com o advento da Constituição Federal de 1988, todo o ordenamento jurídico brasileiro, deve ser analisado com lentes constitucionais, ou seja, independentemente do direito aplicado no caso concreto, a legislação infraconstitucional deverá ser aplicada com extrema observância das normas e princípios que estão previstos na Constituição.
Em outro importante trecho de sua obra, o jurista destaca que um dos objetivos da Carta Magna, além da plena realização da cidadania, era assegurar a todos, sem distinções, direitos e garantias fundamentais mínimos, motivo pelo qual trouxe em seu Título II, Capítulo I, um rol extenso que trata especificamente dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, destacando-se dentre eles, o artigo 5º, inciso XXXV, objeto da presente análise, o qual declara expressamente: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”[40].
Nas palavras de Silva, o mencionado artigo traz o princípio da proteção judiciária, mais conhecido no meio jurídico como princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, o qual é considerado a principal garantia constitucional relacionada aos direitos subjetivos, sendo reconhecido pelos doutrinadores que lecionam sobre a matéria, como a garantia das garantias constitucionais[41].
Dessa forma, segundo Silva houve ampliação do direito de acesso ao Poder Judiciário, o qual detém o monopólio da jurisdição, permitindo que o jurisdicionado postule perante o órgão jurisdicional tanto a reparação a uma lesão sofrida quanto à proteção a direitos que porventura estejam sendo ameaçados[42].
Além da previsão constitucional, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional ganhou previsão expressa no Novo Código e Processo Civil, Lei 13.105 de 16 de março de 2015, encontrando-se presente no seu artigo 3º: “Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito;”, tal previsão, corrobora a tese de que a legislação infraconstitucional vem sendo direcionada e moldada à luz da Constituição Federal[43].
Deste modo, como o próprio STJ[44] já se posicionou em casos específicos reconhecendo a validade da promessa de doação no âmbito do direito de família, não há motivo justificável para não reconhecer sua exigibilidade nos casos em que o promitente doador não efetive a doação, uma vez que o ato é plenamente exigível nos casos de descumprimento e, qualquer entendimento contrário, constitui, em verdade, afronta ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.
Assim, o Poder Judiciário a fim de garantir o direito de ação previsto no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal de 1988[45], deve admitir que o beneficiário do ato, por meio de ação de execução específica, promova o cumprimento forçado da promessa de doação não cumprida, de modo que o promitente doador cumpra o contrato preliminar que, de livre e espontânea vontade e com animus donandi, prometeu celebrar com o promitente donatário.
6. A REGULAMENTAÇÃO DA MATÉRIA NO DIREITO COMPARADO.
Por derradeiro, importante demonstrar, ainda que de forma breve, como o tema objeto do presente estudo é tratado no Direito Comparado. Para isso, neste ponto será analisada a previsão da matéria no Código Civil Alemão (Bürgerliches Gesetzbuch ou BGB)[46], bem como a jurisprudência de Portugal, destacando que ambas as legislações constituem, inegavelmente, fontes do direito civil brasileiro, além disso, será feita breve digressão sobre o Direito Romano que, nas palavras de Venosa, é a “mãe” de todo o direito civil e dos principais fundamentos do Direito em geral[47].
Venosa, define em sua obra o Direito Romano como um emaranhado de normas jurídicas que vigorava há cerca de 2.000 (dois mil) anos, tanto em Roma, quanto nos países sob o domínio dos romanos.
Segundo o doutrinador, a maioria dos países ocidentais, assim como o Brasil, herdaram a estrutura do Direito Romano, nos ensinamentos do civilista, o Direito Romano nunca morreu e constitui fonte jurídica inesgotável para o direito contemporâneo.
Segue Venosa:
[...] Não existe, doutra parte, nenhuma legislação antiga tão conhecida como a romana. Os monumentos legislativos e doutrinários que chegaram até nós permitem um acompanhamento das variações do Direito Romano, de suas origens até a época moderna e, raramente, tais variações deixam de afetar o direito que ora aplicamos; [...][48].
Feita a divagação, destaca-se que Venosa leciona em outro ponto de sua obra, que tanto o Código Civil Alemão (BGB) quanto a doutrina jurídica germânica, possuem fundamentos sólidos no Direito Romano[49], e constituem uma das fontes do direito civil brasileiro. Segundo o doutrinador, o Código Civil da Alemanha, que entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1900, após sua promulgação no ano de 1896, é em verdade, o marco principal do Direito Civil do nosso sistema.
Importante frisar que, o Código Civil alemão dispõe expressamente acerca da promessa de doação mortis causa [50] na seção 2301:
[...] A promessa de uma doação feita sujeita à condição, que o donatário sobrevive o doador é regido pelas disposições relativas às disposições mortis causa. O mesmo se aplica a uma promessa para cumprir uma obrigação ou de reconhecimento de dívida da criança descritos nas secções 780 e 781, feita por meio de doação sujeita a essa condição; [...][51].
Como visto no dispositivo, a legislação germânica que é uma das fontes do direito civil pátrio, prevê e atribui expressamente validade à promessa de doção com encargo, diferentemente do Código Civil Brasileiro[52], o qual não traz nenhuma regra específica sobre este tema e somente atribui validade à doação pura e acabada feita por meio de escritura pública ou instrumento particular, consoante disposição do artigo 541, caput, ficando a polêmica acerca da matéria a cargo da doutrina e jurisprudência nacional.
Segundo Venosa, outra fonte importante do direito civil brasileiro é a legislação portuguesa, logicamente pelo fato do Brasil ter vivido por mais de três séculos como Colônia de Portugal[53].
Nas palavras de Venosa, o estudo da história do nosso direito passa necessariamente pelo direito português, fonte das instituições jurídicas brasileiras, principalmente pelo fato das tradições destes dois países, historicamente, serem muito parecidas.
Dessa forma, importante demonstrar que o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, já teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema objeto da pesquisa, qual seja, a validade da promessa de doação e sua exigibilidade em caso de descumprimento.
No julgamento citado, o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, julgando o Recurso de Revista nº 06ª3608, relatado por Ribeiro de Almeida, em j. 21.11.2006, proferiu decisão reconhecendo a validade da promessa de doação, mas, no caso concreto, não reconheceu sua exigibilidade perante o promitente doador.
[...] I - É válida a promessa de doação. Mas uma coisa é a validade da doação e outra é a de saber se a mesma é passível de execução específica, como determina o art. 830.º do CC.II - A natureza da obrigação assumida pelo promitente opõe-se pela sua natureza à execução específica.III - Nos termos do n.º 2 do art. 452.º do CC, a lei proíbe a reserva de nomeação, entre outros, nos casos em que é indispensável a identificação dos contraentes.IV - Na doação, quer a pessoa do doador quer a pessoa do donatário têm que estar determinadas.V - No caso em apreço, da promessa de doação não consta o nome do donatário, atribuindo- se a uma terceira pessoa a possibilidade de o vir a indicar, pelo que, a promessa de doação tem que se considerar nula e de nenhum efeito; [...][54].
Deste modo, fato é que as duas grandes e principais fontes do direito brasileiro, principalmente a legislação alemã, se mostram à frente do entendimento empregado ao tema pelos nossos Tribunais e por parte da doutrina nacional.
Como visto, muito embora os julgadores tenham se mostrado bastante cautelosos no julgamento, analisando de forma detalhada todas as nuances do caso concreto a fim de atribuir, ou não, exigibilidade à promessa de doação não cumprida, restou claro que o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de pronto reconheceu a validade do instituto em questão e somente não admitiu o seu cumprimento forçado pelo fato de não ter constado no ato o nome do promitente donatário.
Com isso, embora o Código Civil Brasileiro não trate expressamente sobre a promessa de doação, com base nos dispositivos legais, nos princípios aplicáveis e na jurisprudência que foi analisada, não se pode negar validade e exigibilidade a tal ato, pois ignorá-lo acarretaria má aplicação do direito.
Dessa forma, a doutrina e a jurisprudência nacional, necessitam ampliar sua visão acerca do tema, buscando melhores entendimentos e posicionamentos frente a polêmica que tem se tornado corriqueira nos Tribunais do país, principalmente nas ações afetas ao Direito das Famílias, a fim de que seja garantida uma prestação jurisdicional de qualidade e de acordo com a tendência jurisprudencial mais moderna, tanto a nacional como a comparada.