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A História e o Direito Comparado

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Agenda 24/01/2017 às 17:09

O presente artigo confronta a evolução do Direito desde os Povos da Antiguidade, estabelecendo paralelos entre a tradição romanística da Civil Law e a tradição anglo-saxã da Common Law desde o seu aparecimento nas Ilhas Britânicas.

 

Resumo: O presente artigo confronta a evolução do Direito desde os Povos da Antiguidade, estabelecendo paralelos entre a tradição romanística da Civil Law e a tradição anglo-saxã da Common Law desde o seu aparecimento nas Ilhas Britânicas; compara-as com a tradição germânica mista de ambos os sistemas e tece algumas considerações finais sobre o Direito Português, tributário da Civil Law.

Palavras-chave: História do Direito. Direito Comparado. Antiguidade Clássica. Civil Law. Common Law. Direito Romano. Direito Germânico. Idade Média. Direito Britânico. Renascimento. Direito Português.

1. Introdução.

O Direito Comparado serve como fonte primária do estudo da matéria jurídica, e de sua evolução histórica. Também se presta a verificar o resultado das diversas experiências seguidas por nações diferentes da nossa, sejam ou não influenciadas por uma forma ancestral comum de legislação – por exemplo, portugueses, franceses e espanhóis são todos descendentes do Direito Romano, mas ao longo de sua trajetória histórica, lobrigaram cada um destes povos soluções distintas para os problemas que se apresentavam aos legisladores.

Basicamente, as fontes do Direito Ocidental são os dois gigantes denominados Civil Law, cujas raízes partem do Direito Romano, e prevalece nos países que margeiam o Mediterrâneo, e Commom Law, gerado nas entranhas do Direito Germânico, e trazido sobre as montarias dos bárbaros que desintegraram de vez as ruínas do Império Romano do Ocidente.

Embora não deixe de ser importante, o Direito Islâmico não logrou maior influência no Ocidente, apesar dos quase 800 anos de domínio mouro na Espanha; isto se deve primeiro à aversão absoluta que os povos cristãos sentiam às instituições do invasor, ao fato de o Direito Islâmico obter o seu fundamento de validade no próprio Alcorão, visto pelos ocidentais como uma obra demoníaca, e à final expulsão de todos os muçulmanos e judeus da Península Ibérica em 1492, o que foi a pá de cal para enterrar definitivamente qualquer instituição que os árabes tivessem deixado.

Os demais povos orientais (chineses, hindus, russos) não tiveram maior contacto com a Europa Ocidental durante o período de formação cultural (Idade Média e Renascimento) e por isso a sua influência é completamente nula.

Recorda-se aqui o filósofo Will Durant (1885-1981), segundo o qual o estudo da História deveria abranger uniformemente as culturas ocidentais e orientais, por ver na Europa apenas um apêndice do imenso continente asiático, e que por isso as contribuições dos chineses importam em um universo mais amplo do que a Grécia Clássica.

Sem pretender criticar aqui se o filósofo americano tinha ou não razão em reputar como sendo uma civilização maior ou mais importante do que a outra tomando como critério objetivo a extensão territorial do seu Império, ou a duração de suas Dinastias, o fato é que a cultura hegemônica hoje é a ocidental, constituindo a ocidentalização dos povos orientais um processo irreversível e que caminha em velocidade espantosa. E a cultura ocidental se realizou sem receber contribuições do Oriente.

2. A Civil Law.

O primeiro dos dois grandes sistemas jurídicos em que se divide o Direito Ocidental é conhecido como Civil Law (Lei Civil). Suas origens remontam aos primórdios da República Romana (após 519 a.C.), quando a vida na cidade já se havia organizado a ponto de prevalecer o uso da lei escrita sobre os meros usos e costumes dos povos antigos.

O emprego da lei escrita não é apanágio dos Romanos: antes deles, Hammurabi (circa 1780 a.C) deixara um código em que, embora de maneira um tanto caótica – misturando normas substantivas de Direito Civil, Direito Penal e tradições religiosas – já se entrevinha um escorço preliminar de fixação do Direito em bases rígidas, tanto que a conclusão do Código de Hammurabi dedicava dezenas de linhas (em escrita cuneiforme) em proferir maldições contra os soberanos futuros que porventura mudassem alguma coisa naquilo que Hammurabi estatuíra para seu povo, que por curiosidade reproduzimos em parte aqui:

“Se este governante não tiver alta conta minhas palavras, aquelas que escrevi na minha inscrição, se ele desprezar as minhas maldições e não temer a cólera de Deus, se ele destruir a lei que me foi dada, corromper minhas palavras, alterar meu monumento, apagar meu nome, escrever seu nome no lugar do meu, ou não prestando atenção às maldições fizer com que outro execute todas estas ações, este homem, não importa que seja rei ou governante, sacerdote um leigo, não importa o que seja, que o grande Deus Anu, o pai dos deuses, que ordenou que eu governasse, retire deste homem a glória da realeza, que Ele quebre o cetro deste rei, e amaldiçoe seu destino. Que Bel, o deus que fixou o destino, cujo comando não pode ser alterado, que fez meu reino grandioso, ordene uma rebelião que a mão deste monarca não possa controlar, que o vento derrube sua habitação, que ele passe anos no poder em lamentações, anos de escassez, anos de fome, escuridão sem luz, morte de olhos que tudo vêem venham ao encontro deste homem. Que Bel ordene com sua boca potente a destruição da cidade deste rei.” (O Código de Hammurabi, segundo The Eleventh Edition of the Encyclopaedia Britannica, 1910, pelo Rev. Claude Hermann Walter Johns, M.A. Litt.D.)

E estas são apenas as primeiras de muitas e espantosas maldições, que demonstram eloqüentemente o desejo de Hammurabi de que as leis não fossem mudadas por mero capricho dos governantes, ou que sem deixarem de ser observadas, não as contornassem com manobras sutis e chicanas, que na prática derrogariam a lei positiva ou a distorceriam até tornar proibido o que era permitido, e permitido o proibido.

Isso tudo não era mais do que o berço do sistema da Civil Law, onde o consenso em torno da segurança jurídica é o bastante para substituir as invocações aos deuses e maldições do proto-legislador.

3. O Direito Romano.

O Direito Romano preconiza a lei positiva (civil Law) como fonte primária do Direito, em lugar das instituições consuetudinárias. Embora não tenha abolido os usos e costumes, o Direito Romano circunscreveu-os a uma posição subalterna ou subsidiária em relação às leis escritas, sendo as Leis das XII Tábuas simbolicamente traçadas em lâminas de bronze, para representar com isso que eram tão imperativas quanto as espadas dos reis.

Os romanos, todavia, não conheciam o que se chama hoje Direito Processual; os povos antigos, quando começavam a fazer leis, curam apenas do direito material, baixando normas em regra de caráter penal ou civil de aplicação imediata, e os romanos não foram exceção. Por exemplo, um legislador proibia roubar, matar ou possuir a mulher do próximo, e previa que os que infringissem a lei seriam punidos com multas, mutilações, açoites ou com a morte, mas não existia uma lei específica para tratar da forma da peça de acusação e da peça de defesa, prazos e recursos, competência dos juízes, e o mais que se considera essencial a um código de processo.

Vagamente se intuía a necessidade do princípio do contraditório e da ampla defesa quando se estatuía a obrigatoriedade da oitiva de testemunhas, e a exigência de um mínimo legal para que a prova testemunhal fosse idônea (com três ou quatro testemunhas, qualquer um morre com certeza, segundo a letra da Bíblia Sagrada), sendo de rigor que para a aplicação da pena capital seria preciso maior número de testemunhas do que para o julgamento de causas cíveis, ou que versassem sobre crimes menores, como v.g. os furtos.

Outro ponto marcante das instituições da Civil Law é a obrigatoriedade de que somente uma lei posterior pode alterar ou revogar lei anterior. O Direito é criado pela leis, e qualquer inovação também deve partir de processo legislativo semelhante ao originário. Certos povos, como os Assírios, consideravam as leis como parte da sua tradição religiosa, a ponto de não permitir que uma lei, após ser promulgada sofresse revogação. Revogar uma lei seria o mesmo que suprimir parte do livro sagrado. O Livro de Esther dizia que os decretos de Assuero[1] eram como “as leis dos persas e dos medos”, e que por isso “não poderiam se revogar”, tanto que quando Assuero se arrependeu de mandar exterminar os judeus, não pôde simplesmente revogar o decreto que assinara a rogos de Hamã, e teve que promulgar outro decreto, em que os judeus ficavam autorizados a resistir a viva força d’armas a qualquer que os tentasse matar.

No entanto, o Direito Romano foi o primeiro a desenvolver um sistema recursal coerente e uniforme, no que se ensaiou o germe do que se tornaria o Direito Processual, o que era desconhecido dos povos que antecederam os gêmeos de Alba-Longa.

Os povos antigos, em regra, desconheciam a previsão de qualquer recurso das decisões proferidas pelos juízes. Os julgamentos eram todos em única instância, às vezes existindo juízos especiais para certos tipos de delitos, toda a instrução e julgamento era oral, e a sentença se executava imediatamente.

Entre os atenienses, por exemplo, havia magistrados de hierarquia inferior para o julgamento de infrações consideradas de menor porte, como os furtos e pequenas ofensas pessoais. Já os crimes considerados graves, como a traição, ou a blasfêmia contra os deuses eram conhecidos diretamente pela Assembléia do povo ou Boulé, formada por 500 juízes.

Veja-se por exemplo os julgamentos de Sócrates (470-399 a.C.)) e de Frinéia (Séc. IV a.C.), ambos acusados injustamente de blasfêmia contra os deuses (no caso de Sócrates, também pesava a acusação de introduzir em Atenas o culto a deuses estranhos ou demônios). Frinéia foi absolvida, e Sócrates condenado à morte, sendo reabilitado após um ano de sua execução. E em ambos os julgamentos, a acusação se processava oralmente perante uma Assembléia de 500 magistrados, que decidiam votando por maioria. Não existia recurso a instância superior, sendo permitido ao acusado apenas optar pelo exílio perpétuo como substitutivo à pena capital (Sócrates recusou o exílio, preferindo morrer entre os seus amigos a viver no estrangeiro).

Outras cidades-estado gregas menos organizadas cometiam aos reis diretamente o conhecimento das causas penais, sendo clássico o exemplo de Dionísio, o Moço, tirano de Siracusa (de 368 a 343 a.C., com um interregnum entre 357-347 a.C.), que certa vez presidiu uma audiência completamente embriagado, e de repente, enquanto o réu ainda expunha a sua defesa, disse que o condenava à morte. O acusado falou que “apelava da sentença”, ao que Dionísio indagou, com ironia, “apelar para quem?”, uma vez que o tirano era a única e última instância de julgamento. O réu, num rasgo de espírito e vivacidade, disse que recorria “de Dionísio bêbado para Dionísio sóbrio”, o que fez Dionísio envergonhar-se da injustiça que estava prestes a cometer e imediatamente perdoou o acusado.

O Direito Romano previa a possibilidade de recurso a instâncias superiores, sendo que a maior ou menor amplitude do grau recursal dependia da qualidade do réu. O acusado que não fosse cidadão romano podia no máximo, apelar para o Procurador da Província, ao passo que o cidadão tinha o direito de recorrer ao Imperador.

Foi este, por exemplo, o caso de São Paulo (m. em 67), que, preso em Jerusalém por intrigas dos judeus (Atos dos Apóstolos, Capítulo 25, versículos 2-7), e pressentindo que acabaria padecendo sob Festo (Século I d.C.) como anos antes o próprio Cristo fora condenado sendo Pilatos (Século I d.C.) o Procurador da Judéia, optou por recorrer a Nero César (37-68), no que foi imediatamente enviado a Roma para ali se defender perante o Imperador. Paradoxalmente, o Rei dos Reis, por não deter a cidadania romana, teve o julgamento mais indigno da História no que foi o pior momento do Poder Judiciário, antes e depois, e como nunca mais outro se veria: O Senhor do Universo não pôde apelar para um Imperador deste mundo.

Ao prever a possibilidade de recorrer a uma instância superior, o Direito Romano moderou o poder dos juízes das instâncias inferiores, tirando deles o império sobre a vida e a morte dos cidadãos. Do mesmo modo que se pode dizer a um monarca que “ainda existem juízes em Berlim”, e desta forma remediar os excessos do poder real absoluto pelo Judiciário independente, é possível de igual modo recordar aos magistrados das províncias e comarcas menores que “ainda existem juízes maiores do que tu” e capazes de reformar as arbitrariedades, muitas vezes decididas por peitas, ameaças, pressões da opinião pública ou para não desagradar interesses políticos locais.

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No entanto, o direito de recorrer é progressivamente limitado por filtros, a cada vez mais rigorosos; a finalidade de ordem prática é impedir a eternização das demandas, com recursos sucessivos e protelatórios, e a de ordem filosófica é que uma vez que a parte interessada na reforma da decisão não atende aos requisitos exigidos pela lei para o conhecimento do apelo, presume-se que a mesma aceitou o julgamento das instâncias inferiores.

Outro ponto de ordem lógica, não menos desprezível, é que se depois de recorrer à segunda instância, fosse permitido uma nova apelação, que remetesse outra vez a instrução a um magistrado ou corte mais elevado, seria permitido pensar no direito de uma quarta, quinta ou sexta instância, sem limites ou até chegar no rei ou na Assembléia soberana que fizesse as vezes de monarca. Assim, a possibilidade recursal deve sofrer um progressivo afunilamento, como em uma pirâmide, em cuja base fica o julgamento de primeira instância, no meio o julgamento das apelações, e no topo os extremos recursos, permitidos em casos especiais e desde que satisfeitas condições determinadas.

Assim, qualquer um que fosse condenado poderia recorrer ao Procurador da Província, devolvendo-se a ele o conhecimento de todo o processo. Em regra, a apelação de uma decisão de primeira instância não deve ser obstada, uma vez que em certos casos, o julgamento justo somente é possível na segunda instância, longe das interferências dos poderosos das comarcas.

Já o recurso ao Imperador era facultado apenas aos que detinham a cidadania romana, o que representava a primeira filtragem. Era preciso que a causa versasse também sobre crime capital, pois somente o César poderia decidir definitivamente sobre a vida ou a morte de um dos cidadãos romanos, considerados como herdeiros das primitivas gens patrícias de fundadores da Cidade Eterna.

4. O Direito Germânico.

O Direito Germânico deve sua origem nas tribos bárbaras do Norte, em regra assimiladas por uma cultura guerreira e mercantil conhecida genericamente como Viking. No entanto, muito impropriamente se pode atribuir a alcunha de viking a todos os povos do Setentrião, como os Saxões, Germanos, Anglos, Jutos, sem falar em povos semi-lendários como os Geats, pois vikings eram somente os habitantes da Escandinávia (atuais Suécia e Noruega), e os povos vizinhos, habitantes do norte da atual Alemanha ou da Jutlândia (hoje, Diinamarca) apenas sofriam a influência dos conquistadores vikings em sua cultura e religião, mas preservando idioma próprio e instituições de certo modo independentes.

Foi daquela cultura ainda tribal, mas já centrada na figura onipotente de um soberano absoluto chamado de Bretwalda (Rei dos Reis) e com inúmeros tiranetes locais que lhe deviam vassalagem que nasceram concomitantemente o Direito Germânico e as instituições que terminariam no Feudalismo, cujo apogeu seria alcançado na época de Carlos Magno (742-814) e somente mitigado quando a Renascença se tornou uma caudal revolta que nenhum dique poderia conter.

Basicamente, a instrução do processo no Direito Germânico seguia o princípio da oralidade, mas a produção das provas atendia a critérios supersticiosos em que a certeza do juiz era determinada por ordálias em que a parte era submetida a testes físicos extremos, como segurar ferros em brasa ou duelar com o adversário na lide, pois segundo a mentalidade ingênua e de boa fé dos arianos do Norte, os deuses sempre defendem quem diz a verdade. A rigor, o sistema só funcionava na prática porque sempre as partes acreditavam tão piamente que quem tivesse razão na demanda suportaria a prova, que aquele que estivesse de má-fé terminava por fugir ao exame, servindo a revelação da consciência pesada como prova suficiente para dizer quem detinha o bom direito, como na célebre bocca della verità que se dizia ter o poder de morder a mão da mulher que não se casasse virgem.

Outro aspecto que reforça o caráter tribal e de quase informalidade do Direito Germânico primitivo era o fato de a jurisdição não ser obrigatória. O ordenamento dos guerreiros do Norte não colocava à margem da lei a auto-tutela ou justiça pelas próprias mãos, sendo um direito da parte optar entre o julgamento por um juiz imparcial ou adotar vingança privada sobre o inimigo ou sua família.

O que se denota é que antes da organização das leis que resultaram no Direito Germânico, as populações viviam em um estado de guerra privada dos cidadãos uns contra os outros, qual descrito por Thomas Hobbes (1588-1679) no Leviatã como sendo uma condição geral da Humanidade antes do aparecimento dos Tribunais e magistrados.

Sendo um costume arraigado demais a vendetta por causa de uma ofensa, não poderiam os reis subitamente compelir os seus governados a abandonar as antigas tradições por princípios salutares de Justiça que o seu entendimento primitivo não assimilava.

É esta uma importante lição que devem ter em mente os legisladores: quando se tenta forçar um povo a mudar abruptamente as suas instituições, o resultado imediato é a revolta e a indignação, por mais justas e benignas que possam ser as reformas; foi por isso que Jean Jacques Rousseau (1712-1778) disse que “os russos não foram corretamente legislados e nunca mais o poderão ser”, porque o Czar Pedro, o Grande (1672-1725) teria errado em “impor aos seus súditos ainda bárbaros leis que somente seriam compreendidas por ingleses ou alemães” (in “Contrato Social)[2].

A sabedoria que faltou a muitos dos reformadores ao longo da História, a começar pelo Faraó Akhenaton (Século XIV a.C), passando pelo citado Czar Pedro, o Grande até chegarmos aos contemporâneos Lênin (1870-1824), Stalin (1879-1953) e Mao-Tsé-Tung (1893-1976), todos eles culpados por terem arrancado de seus povos tradições por eles amados para trazer novos costumes, foi, no entanto, longeva nos bárbaros reis das tribos germânicas, que entenderam que a introdução de uma mudança revolucionária na sociedade não se perfaz em uma única geração, devendo ser colocada progressivamente, ao longo dos anos, ou mesmo séculos, quanto mais for profunda a alteração pretendida.

Assim, os germanos tiveram uma fase inicial em que só existia a possibilidade da satisfação de pretensões pelo desforço próprio (lei do mais forte), passando para uma outra, intermediária, em que coexistiam independentes a jurisdição e a auto-tutela, dispostas como livre escolha da parte, até que finalmente a jurisdição prevaleceu e só por intermédio do processo é que se poderia realizar a distribuição da Justiça.

Foi preciso que os reis pusessem a escolha da jurisdição em uma bandeja de prata sob os olhos dos seus súditos, para que estes aos poucos a tomassem para si, vendo que a jurisdição era boa, e que é melhor cometer ao critério de um entendido em leis (juiz) a decisão sobre o que é direito da parte, do que expor-se à abertura de hostilidades recíprocas, que muita vez enlutam as famílias em uma sucessão de violências sem fim e abandonassem o antigo costume da vendetta até que esse uso caísse em desuso e pudesse enfim ser proscrito.

O Direito Germânico acabou por filiar-se à Civil Law após a Queda do Império Romano do Ocidente, quando as tribos invasoras se fixaram nos domínios abandonados pelos romanos e os seus líderes começaram a adotar as pompas dos antigos governantes; os regulamentos gerais da Províncias do Império continuaram em vigor, agora alçados ao status de verdadeiros Corpus Iuris, simplesmente porque os bárbaros não tinham um plano de poder para depois que efetivassem a conquista. Não tendo instituições sólidas ou ideologia para impingir aos povos conquistados, acabaram por adotar a ordem que vigia antes de sua chegada e a manter as leis que os romanos escreveram. A Queda do Império não foi mais do que uma mudança do poder das mãos dos Césares para as dos reis guerreiros, seguida da implantação em massa de populações migratórias, como quando um partido político de oposição vence as eleições e alija dos cargos públicos todos os ocupantes ligados à situação vencida, sem mudar as leis do país.

Fenômeno semelhante vem sendo observado nas levas de imigrantes que acorrem aos países desenvolvidos, em geral beneficiados pelos estatutos de nacionalidade originária, que estão a encher a Europa de “europeus” que nasceram na África ou nas Américas, a ponto de certos estudiosos já virem chamando o fenômeno de invasões bárbaras da modernidade. Esses imigrantes, ao tomarem seu lugar nos Estados Unidos ou na França, por exemplo, abandonam muitas das suas tradições de origem, pois desejam comer no McDonald’s (que “luxo”) em vez de caçar na savana, calçar “tênis” Nike (que “vitória”), em lugar de enrolar os pés em tiras de couro, e a falar em telefones celulares (mormente em lugares de uso comum) e não mais tocar tambores. Logo eles assimilam a cultura do lugar, passando a pretender a ascenção a postos altos no governo, sendo a eleição do Sr. Barack Houssein Obama, atual Presidente dos Estados Unidos o exemplo mais eloqüente do grau de infiltração dos novos “bárbaros” nas sociedades “invadidas”[3].

Ora, os imigrantes pouco ou nada levam de suas culturas que possa influenciar a vida nos países desenvolvidos, mas ao tomarem o lugar no governo que era ocupado pelos naturais (estadunidenses ou europeus), tornam-se iguais a conquistadores como Odoacro (m. em 493)[4] ou Átila, o Huno (m. m 453), que removeram do poder os administradores romanos para gerirem eles mesmos o território do antigo Império com as leis dos conquistados.

Os bárbaros germanos nada conheciam em matéria de recursos, tendo assimilado toda a matéria deixada pelos juristas romanos, sem deixar a este respeito nenhuma contribuição de monta.

A rigor, os germanos eram mesmo infensos à idéia de que um juiz reformasse decisões tomadas por outro, reflexo do caráter orgulhoso e indomável desses que eram iguais ao seu Thor, tendo criado esse deus à sua própria imagem e semelhança. Os magistrados germânicos sentiam-se de certo modo “ofendidos” com a pretensão da parte em recorrer, e para esses juízes o píncaro da glória chegava quando obtinham do rei o status de “juiz sem apelação ou embargo”, a significar que suas decisões, por serem consideradas como perfeitas, eram irrecorríveis e só poderiam ser modificadas pelo monarca, caso perdoasse o acusado.

Essa mentalidade orgulhosa foi a grande responsável pelo atraso, em muitos séculos, do desenvolvimento do sistema recursal. Somente ao fim da Idade Média é que se pôde mitigar a autoridade desses “juízes sem apelação ou embargo”, quando os reis, para impor aquilo que viria a tornar-se no absolutismo monárquico, decidiram sujeitar as sentenças a recursos julgados em Tribunais de Apelação inspirados no sistema do Direito Canônico, muito mais avançado, e desta forma enfraquecendo os juízes isolados em face do poder real.

5. O Direito Britânico.

A História das Ilhas Britânicas se perde na Noite dos Tempos; os mitos, lendas, sagas e cânticos dos bardos se confundem com a verdade histórica e com as evidências trazidas à flor do solo pela Arqueologia, para contar a formação de um grande povo, que bem poderia ter existido apenas na ficção de poetas como Shakespeare (1564-1616), Marlowe (1563-1593) e o anônimo cantor do Beowulf (Século VIII), se eles mesmos não fizessem parte deste mesmo povo, e não tivessem as suas próprias vidas cercadas pelo maravilhoso, fazendo parte das mesmas lendas que narraram.

Passado o período da dominação Romana (que todos os povos da Europa conheceram, como atores principais, coadjuvantes ou figurantes, e o Inglês não faz exceção), as Ilhas Britânicas começaram a ser ocupadas por levas e levas de Saxões (o grupo dominante, que embora seja originário da Alemanha, passou a designar o tipo comum inglês), Anglos (que terminaram por dar o seu nome à maior parte das Ilhas, Angla Terra, a terra dos Anglos), mais os Jutos, seus parentes próximos, a partir do início do Século V da Era Cristã.

Ainda antes da queda definitiva de Roma, em 476 d.C., a antiga Britannia era já dividida em reinos bárbaros de tribos saxônicas, inicialmente lideradas pelos reis semi-lendários Hengest e Horsa. O primeiro pereceu combatendo os últimos romanos que defendiam a ilha ao lado dos celtas autóctones, mas o segundo consolidou a conquista e fundou o Reino de Kent, atual Condado de Kent, em torno do qual está a Cidade de Londres (na atual divisão geográfica, Londres é Condado de si mesma), antiga Londinium dos filhos do Lácio.

Nos trezentos anos que se seguiram, o povo meio romano e meio céltico que habitava as Ilhas Britânicas foi empurrado pelos conquistadores para os confins da terra: para o País de Gales, a Ilha da Irlanda e a Escócia, esta última jamais colonizada pelos Romanos, devido à dificuldade de acesso ao seu terreno montanhoso de solo marcado por highlands (terras altas) que formaram uma barreira natural à expansão imperial —Adriano (76-138) construiu na divisa a célebre muralha que tem seu nome, e cujas ruínas ainda hoje lá se encontram — e abrigaram no absconso interior os homens que queriam permanecer livres.

Ao mesmo tempo, os Saxões conquistadores, lutando entre si e rompendo as antigas alianças com a mesma facilidade com que as celebravam, fracionaram a terra que hoje tem o nome de Inglaterra em sete reinos bárbaros, chamados Mércia, East Anglia, Nortúmbria, Kent, Essex, Sussex e Wessex.

No Século VIII, a balança pendeu a favor dos reis de Wessex, que após se ligarem por casamento às princesas reais de Mércia e Nortúmbria, permitiu-lhes unificar os três maiores reinos britânicos e partir para a conquista dos restantes sob a égide da Primeira Dinastia, chamada de Saxônica, de onde os atuais reis ingleses se ufanam de ter a sua origem remota.

A Inglaterra unificada sob os reis de Wessex conheceu dois períodos de usurpação dos Wikings, povos nórdicos aparentados dos Saxões, mais ainda seguidores de uma religião pagã chamada de Ásastru, a qual tem no seu Panteão os deuses das óperas wagnerianas.

Os Saxões já eram cristãos desde o século VI, quando o Papa São Gregório I Magno (540-604) enviou missionários para a Inglaterra, uma vez que ele mesmo não pôde evangelizar os ingleses quando era jovem, como era de seu desejo, e eleito Sucessor de Pedro concretizou o seu carisma apostólico na pessoa de Santo Agostinho de Canterbury (m. circa 605), que se tornou o primeiro Bispo Primaz ao pregar o kerigma em Cantuária.

Duas vezes os Wikings pagãos dominaram a Inglaterra, e por duas vezes a Dinastia Saxônica foi restaurada. Na segunda vez, o Rei Santo Eduardo III o Confessor (1004-1066), por ter feito o voto, ao lado da Rainha, de renunciar ao uso legítimo do matrimônio, não deixou filhos, e decidiu que após a sua morte a Coroa passaria ao Duque Guilherme da Normandia (1027-1087). Ora, os normandos eram descendentes dos Wikings, e aclimatados às terras da atual Normandia desde que o Rei de França Carlos III, o Simples (879-929) concedeu em 911 ao seu líder Rollon, o Andarilho (m. em 931), o direito de habitar a parte da Nêustria que corresponde à atual Normandia, em troca de que se convertessem ao cristianismo e se submetivessem à suserania do Rei de França (após o batismo, Rollon passou a chamar-se Duque Roberto I); para os nobres ingleses este ato de vontade do seu rei passava como uma traição, pelo que os Lordes juraram sagrar como novo rei ao Conde Harold Godwinson (m. em 1066), que, no entanto, entrou para a História como usurpador com o nome de Rei Harold II.

O Duque Guilherme invadiu a Inglaterra com o seu Exército no ano de 1066 — sendo esta foi a última vez em que um exército desembarcou nas Ilhas Britânicas, embora alguns autores considerem a chegada de Guilherme de Orange (1650-1702) na Revolução Gloriosa (1688) como a derradeira conquista da Inglaterra por mar —, e travou a Batalha de Hastings, onde venceu os exaustos combatentes das hostes de Harold II, que morrera um mês antes em batalha contra uma coalizão dos Wikings, que também foram derrotados, sucumbindo em combate todos os seus reis. Depois da derrota na Inglaterra, os reinos Wikings na Escandinávia desmoronaram, porque os nobres passaram a lutar entre si, aproveitando o vácuo de poder deixado pelo desaparecimento dos monarcas, e em apenas uma geração a cultura Wiking desapareceria da face da terra.

Guilherme da Normandia, vencendo a Batalha de Hastings inaugurou a segunda Dinastia de Inglaterra, que durou até o aparecimento da Casa dos Plantagenetas.

Seu reinado foi centralizador, cuidando de extinguir a autonomia dos condados remanescentes dos antigos reinos saxônicos; o Rei de Inglaterra, como o Faraó do Livro do Gênesis comprando todo o Egito por intermédio de José, adquiriu por bem ou por mal todas as terras e tornou-se o único proprietário do solo da Ilha. No caso dos saxões que tinham jurado fidelidade a Harold, por exemplo, Guilherme confiscou todos os seus bens pura e simplesmente, e baniu-os da Inglaterra como traidores.

A conquista da Inglaterra pelos normandos não foi mais do que um saque real perpetuado durante todo o reinado de Guilherme, que mandou catalogar o montante dos bens territoriais, descrevendo minuciosamente os condados e respectivas benfeitorias. Nada escapava à rapacidade do conquistador, que calculava cada polegada de lã que podia tosquiar das ovelhas inglesas. O livro contendo os cadastros é chamado até hoje de Doomsday Book, o “Livro do Juízo Final”, por consagrar a espoliação dos particulares.

Isto levou Guilherme da Normandia (agora Guilherme, o Conquistador) a ser o mais impopular rei que a Inglaterra conheceu. Quando de sua morte, narra-nos Cesare Cantu (1804-1895) que “na ocasião em que iam sepultar o grande barão, um homem chamado Asselin saiu de entre a multidão e disse em alta voz: Bispos e clérigos, este terreno é meu; o homem pelo qual orais tirou-mo à força, para aqui edificar a sua igreja; não vendi o meu terreno, nem o empenhei, não incorri em confiscação, nem o dei: é meu e reclamo-o. Em nome de Deus, proíbo que o corpo do roubador seja aqui sepultado, e que o cubram com terra que é minha” (História Universal, Volume XII, pág. 162), o que foi aceito pelo cortejo, que teve que transigir com o homem e sepultar o Conquistador em outro eito.

A Inglaterra tornou-se o país feudal por excelência, na medida em que desapareceram as propriedades alodiais (que pertencem aos particulares e são isentas da autoridade real) e toda Ilha passou a ser feudo do rei.

Tecnicamente, os ingleses não são proprietários dos seus imóveis da forma como isso é compreendido na maioria dos povos, uma vez que até hoje (embora no presente o rigor da norma esteja mitigado) o solo pertence à coroa: quando um inglês compra uma casa, por exemplo, está comprando o direito de moradia sobre o imóvel, mas o solo continua sendo propriedade do rei. Por isso que os impostos de transmissão por herança são altíssimos, podendo ultrapassar os 40% (quarenta por cento) do valor do bem, o que leva os ingleses que têm mais de um filho a transmitir por testamento os seus bens apenas para um deles (morgadio), para que o quantum dos impostos a serem pagos não exceda o valor total do espólio.

O Poder Judiciário em Inglaterra deve a sua organização primitiva ao bom rei Alfred, o Grande (reinante de 871 a 901), que enquanto ainda lutava para conter as invasões dos Wikings tinha tempo para filosofar (talvez com a mesma sabedoria que um Marco Aurélio (121-180), como se dessume dos seus Pensamentos que chegaram até nossos dias) e ditar ao seu povo leis justas e sábias, que vigoraram até a dominação Normanda e serviram de base para a legislação posterior, refletindo sua influência até mesmo na Magna Carta de 1215. É de Alfred, o Grande, a máxima segundo a qual “a dignidade de um rei só é verdadeira, não enquanto se considera como rei, mas como cidadão do reino de Cristo, isto é, da Igreja, não quando se eleva superior às leis dos bispos, mas quando se submete com humildade e docilidade à lei de Cristo, por eles proclamada”, noção de que o poder real deve ser limitado pelo Direito e pela Justiça, o que se traduz na máxima a lei vem antes do rei constante do diploma que os barões obrigaram João Sem-Terra (1167-1216) a jurar.

Alfred, o Grande passa por ser o criador da instituição do Júri, a que chegou inspirando-se na antiga distribuição germânica da população em distritos (shires) congregando as famílias de que se compunha o reino; os representantes de cada shire exerciam a jurisdição civil, mas dentre estes “deputados” eram escolhidos doze chefes de família para exercer a jurisdição criminal, julgando as acusações e impondo as penas, daí serem doze os jurados nos países de cultura anglo-saxã, embora a razão de ser desse número tenha desaparecido, por não terem os atuais jurados que exercer como “chefes de famílias”.

Também foi Alfred, o Grande quem primeiro adotou normas extraídas do Antigo Testamento dentro do ordenamento como lei positiva, o que mais de 700 anos depois levaria Thomas Hobbes no Leviatã a dizer que é legítimo e mesmo desejável que os reis adotem a Escritura Sagrada como fonte do Direito.

Uma vez consolidada a conquista da Inglaterra pelos Normandos, o sistema legal britânico tenderia a degenerar, devido à cobiça dos novos juízes instalados por Guilherme e seus sucessores; entretanto, não foi isso o que se viu acontecer. Não obstante certos abusos que tiveram lugar, principalmente contra as pessoas mais humildes (até o Século XVI era considerado como de pequena monta que um juiz exigisse subornos), a pujança das instituições deixadas por Alfred, o Grande conseguiu resistir à erosão dos Séculos, deitar raízes fundas e espalhar as suas sementes até o Novo Mundo.

Em 1215 os ingleses deram o primeiro exemplo de limitação do poder real, quando os barões do reino obrigaram João sem-Terra, o irmão usurpador do também usurpador Ricardo I, o Coração de Leão (1157-1199) a jurar a Magna Carta; os franceses já conheciam algo semelhante com as suas Leis Fundamentais do Reino, só que estas eram de alcance mais político (por exemplo, o rei não podia ceder parte do território da França a qualquer outro país) e disciplinavam questões que muito raramente tangenciavam a esfera de interesses do homem comum. Já a Magna Carta, com a célebre máxima a lei vem antes do rei antecedia em muito o aforismo ainda existem juízes em Berlim e mais do que isso, abria o caminho para que os juízes de Berlim pudessem julgar os atos do seu monarca, garantindo a todos os súditos o acesso à universalidade dos direitos fundamentais e o reconhecimento da prevalência da dignidade da pessoa humana em face dos abusos do poder.

O desenvolvimento do Direito Britânico bem como dos princípios que resultaram na Commom Law dependeu primeiro da emancipação dos Tribunais ingleses da tradição romanista.

Até o Século XIV, o idioma natural do país (a Língua Inglesa) achava-se tão longe de ser o mais falado no mundo como é nos dias de hoje, quanto pode estar o núcleo solar da órbita de Netuno; somente os vilões falavam o inglês, pois as cortes só se serviam da Língua Francesa (devido aos casamentos dos nobres ingleses com damas francesas) e os Tribunais, do Latim.

Foi a partir do momento em que a Língua Inglesa começou a ser aceita nos Tribunais, que o Latim, e com ele, a tradição romanística, passou a ser afastado do meio jurídico como algo anti-patriótico. As antigas fórmulas dos reis da Dinastia Saxônica foram relembradas e revigoradas; em lugar dos Digestos e Glosas compilados pelos Jurisconsultos medievais, os juízes ingleses instituíram a coleção da jurisprudência nativa, rompendo definitivamente com a cultura do estrangeiro.

Este sentimento nacionalista britânico, que venceu as suas primeiras batalhas ao impor a Língua Inglesa nos Tribunais, serviu dois Séculos depois para fomentar a reforma religiosa de Henrique VIII (1491-1547), cujo êxito em criar uma Igreja Anglicana só se explica na medida em que para os ingleses o mais natural era utilizar somente aquilo que era britânico. Assim, a mera afirmação de que se tratava de uma “Igreja nacional da Inglaterra” já era o suficiente para justificar a adesão ao novo Credo e a ruptura com Roma, denotando que os ingleses têm uma visão de mundo muito distinta da de certos povos, como os brasileiros, por exemplo, que julgam ser de melhor qualidade tudo aquilo que vem com o rótulo de “importado”.

6. O Direito Português e o Direito Brasileiro.

O Direito Português nasceu dos escombros das catedrais do Direito Visigótico. Este pequeno povo bárbaro, estabelecido nos confins do antigo Império Romano, construiu a primeira grande Civilização Peninsular, nas terras dos Ibéricos, fazendo da velha Hyspania o berço de uma cultura vigorosa e de sólidas instituições em uma Europa ainda dominada pela lei do mais forte.

Segundo Alexandre Herculano (1810-1878), em seu romance da Reconquista Eurico, o Presbítero, existem mais registros históricos seguros (fatos, não lendas) da época visigótica (Séculos IV-VII d.C) do que do período de formação do Reino de Portugal (Século XII), mais de quinhentos anos após a conquista pelos Árabes levar o Crescente aonde outrora reinava a Cruz.

O Código Visigótico, que vigia até a dominação muçulmana, resumia toda a ciência jurídica dos Romanos em um todo mais coerente do que as leis esparsas dos Germânicos, rivalizando de perto com o Código de Justiniano, e por vezes ultrapassando-o. Se não tivesse caído a Coroa dos Visigodos na Batalha do Crissus, certamente a glória dos seus reis excederia a dos Carolíngios.

O Reino de Portugal, forjado junto com as armas dos cavaleiros andantes de D. Afonso Henriques (1111-1185), cujos feitos heróicos excederam na vida real as façanhas mentirosas dos Amadis de Gaula da ficção espanhola, logrou repelir os mouros em muito menos tempo do que seus irmãos da nascente do Tejo, e retomar o desenvolvimento da cultura ocidental onde os guinchos dos muezins ousaram abafar o toque do Angelus.

Foi no seio desta realidade que tiveram lugar as primeiras Ordenações do Reino, onde se compilaram a princípio usos e costumes ao lado das leis esparsas, até evoluírem de meras compilações para quase-codificações.

O fenômeno das Ordenações é comum ao Direito da Península Ibérica; os reinos de Espanha também tiveram as suas, ao lado das Constituições, que em seu sentido primitivo indicavam um regramento administrativo baixado por um governador local.

Em Portugal, as Ordenações mais recuadas no tempo são as Ordenações Afonsinas (1446), que recebem o nome de D. Afonso V (1432-1481) por ser este monarca o que as promulgou (sob a regência do Infante D. Pedro), embora o trabalho de compilação tenha se iniciado no reinado de D. João I (1385-1433) e atravessado ainda inconcluso o de D. Duarte (1433-1438).

A estrutura das Ordenações Afonsinas, em cinco Livros — mantida sem maiores alterações pelas que se lhe seguiram — açambarcava todos os aspectos da cultura jurídica então praticada, baixando normas sobre a organização dos órgãos judiciários (Livro I), da competência dos magistrados (Livro II), princípios gerais de processo civil (Livro III) de processo comercial (Livro IV) e relações da Igreja com o Estado (Livro V), tornando-se a base de todo o Direito Português, secundadas pelos direitos romano e canônico, glosados através de Acursio (Século XIII), e Bartolo di Sassoferrato (1314-1357), ficando para o rei o espaço de poder para resolver as questões não abordadas no texto legal.

O mérito das Ordenações Afonsinas para a evolução do Direito Português foi o banimento do Direito Consuetudinário, que passou a ficar restrito pela própria Lei; a centralização do Direito operada pelas Ordenações sedimentou o caminho de Portugal no domínio da Civil Law sob a égide da Segurança Jurídica.

Quando a Suprema Corte Estadunidense começou a esboçar a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade das leis e atos normativos em fins do Século XIX, nada mais fazia do que trilhar a orientação disposta mais de quatro séculos antes pelos Reis de Portugal, ao limitarem os usos e costumes — embora parecessem justos, aos homens da época — a um ordenamento encadeado em normas jurídicas positivas, a que todos devem submeter-se — mesmo que os homens da época as reputassem injustas — por força de simetria.

O trabalho de consolidar as Ordenações do Reino prosseguiu com as Ordenações Manuelinas (1514-1603), que radicalizaram os princípios teleológicos das Ordenações Afonsinas, ao determinar que o Direito Romano tem preferência sobre o Direito Canônico, com o que se fez sentir, dezoito anos antes da publicação de O Príncipe de Nicolau Maquiavel (1469-1527), o primeiro esforço de separar a Igreja do Estado, diminuir o poder e influência do Clero e afirmar a autoridade do Rei em face do Papa — sem, todavia, abrir uma verdadeira ruptura com as tradições cristãs do povo português, tanto que o Direito Canônico ainda se aplicaria, no silêncio da Lei Secular.

Nova atualização do Direito Ordenacional Português — se se permite que chamemos assim à fase em que vigeram as Ordenações do Reino —  foi empreendida no período da união Ibérica (1580-1640) em que os Reis de Espanha sucederam ao Cardeal-Rei D. Henrique de Avis (1578-1580); agora D. Filipe II (I em Portugal; 1527-1598), editou as suas Ordenações Filipinas, que apenas adequavam à condição política do seu tempo as normas consolidadas nas anteriores Ordenações.

As Ordenações Filipinas fecharam o ciclo das Ordenações do Reino; em Portugal, vigoraram até a edição do Código Civil Português (1867), e no Brasil a sua longevidade — ao menos em matéria civil, já que o Direito Penal fora regulamentado pelos Códigos de 1832 e 1890 — perdurou desde 1603 até 1917 (trezentos e quatorze anos, se tomarmos a data da entrada em vigor do primeiro Código Civil Brasileiro) quando já no período Republicano o Presidente Wenceslau Braz (governante de 1913 a 1917) promulgou a Lei nº. 3.071, de 1º de Janeiro de 1916, obra dos juristas Clóvis Beviláqua (1859-1944) e Ruy Barbosa (1849-1923).

A vigência das Ordenações no Brasil independente de Portugal duraria mais tempo do que na antiga Metrópole, onde já estavam revogadas ainda nos estertores do Século XIX, quando sequer mais existia o Império Colonial Português onde o Sol não se punha e para o qual foram criadas.

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