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As espécies mistas previstas na Constituição como elementos sintomáticos da crise de legitimidade do sistema tributário

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Agenda 08/08/2004 às 00:00

O poder constituinte derivado reformador desvinculou parte das receitas das contribuições sociais das finalidades que legitimaram sua criação, tornando-as, em parte, puros impostos. Sua proliferação fez com que formem já boa parte do sistema tributário.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. CONTRIBUIÇÕES: DA CLASSIFICAÇÃO DAS ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS A UMA TIPOLOGIA DOS TRIBUTOS?, 2.1. Tipologia e Classificação, 2.1.1. Considerações iniciais, 2.1.2. Dos Tipos no Direito Civil e no Direito Tributário. Razões do movimento classificatório ou tipológico, 2.1.3. Dos resíduos tipológicos no Direito Tributário, 2.2. Do conceito de tributo e da metodologia classificatória na sua divisão em espécies, 2.2.1. Considerações iniciais, 2.2.2. Da finalidade como elemento configurador de novas espécies tributárias e das formas mistas constitucionais, 2.2.2.1. Da finalidade como elemento distintivo entre espécies, 2.2.2.2. Das formas mistas na Constituição Federal, 2.3. Do movimento tipológico no sistema constitucional tributário e da segurança jurídica, 2.4. Direito Tributário, insegurança e ilegitimidade do sistema tributário; 3. CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS; NOTAS.


INTRODUÇÃO

O debate acerca do conceito de tributo e de sua divisão em tais ou quais espécies sempre foi recorrente nos meios acadêmicos e jurisprudenciais, como discussão preliminar a quase todos os grandes temas que envolveram o direito tributário. Tal reflexão ainda é o ponto de partida de qualquer manual da matéria que trate do Código Tributário Nacional e/ou da Constituição Federal.

A sistematização do Direito Tributário no Brasil, ocorrida, principalmente, a partir da década de sessenta, trouxe para o debate jurídico concepções sólidas sobre o tributo e sua divisão em espécies.

Quanto ao conceito de tributo, a jurisprudência, a partir da Constituição de 1988, pôs termos à maioria das discussões que envolviam questionamentos sobre a natureza tributária de determinadas exigências, afirmando, em tom definitivo, que, por exemplo, todas as contribuições parafiscais estão sujeitas ao regime do Direito Fiscal, e não do Direito Administrativo.

Por sua vez, no que tange à divisão do tributo em espécies, até 1988 amplamente majoritária era a corrente que, liderada por Geraldo ATALIBA (1995), e baseada no critério vinculação/não vinculação do fato gerador a uma atividade estatal, com visível respaldo no CTN, classificava os tributos em apenas três espécies: impostos, taxas e contribuições. Após 1988, contudo, mesmo ainda sendo minoria na doutrina, ganharam vozes aqueles cientistas que afirmavam serem as contribuições especiais e os empréstimos compulsórios espécies autônomas de tributos. Fizeram-no baseados no critério ‘finalidade’, que legitima a criação destas duas últimas figuras, e foram ouvidos pelo STF, que, em sua maioria adotou tal entendimento [1].

Pois bem, sem entrar no mérito sobre se as contribuições e os empréstimos compulsórios eram ou não espécies autônomas de tributos, fato é que a discussão sempre gravitou em torno de qual seria o critério apto a melhor classificar as espécies. Assim, de uma forma ou outra, o que sempre se buscou, tendo em vista o princípio da segurança jurídica, foi separar as espécies tributárias em classes estanques, dotadas de características irrenunciáveis e formadas por institutos puros. Ressalte-se, inclusive, que mesmo aqueles que admitiam apenas três classes de tributos consideravam o elemento ‘finalidade’ em suas classificações, quase sempre para enquadrar as contribuições especiais como ‘impostos vinculados’ [2].

Todavia, partindo-se do ponto de que tanto as ‘finalidades’ quanto a ‘vinculação/ não vinculação do fato gerador’ são critérios hábeis a servir de traços distintivos entre os tributos, nota-se que, desde a promulgação da Constituição, impossível era enquadrar a contribuição ao PIS em apenas uma das espécies de tributos existentes, pois, desde então, tal exação sempre possuiu características tanto de contribuições sociais como de intervenção no domínio econômico.

Mas a questão é que o problema se agravou com o tempo, porquanto o poder constituinte derivado reformador desvinculou parte das receitas das contribuições sociais das finalidades que legitimaram sua criação, tornando-as, em parte, puros impostos, bem como criou a inédita contribuição de iluminação pública, que, definitivamente, não se enquadra de forma mansa em nenhuma das categorias tributárias até então existentes. Nota-se, portanto, que a proliferação de formas híbridas no Texto Maior, consideradas todas as contribuições sociais em parte desvinculadas, o PIS e a contribuição do art. 149-A, faz com que elas formem já boa parte do sistema tributário.

Tal situação, além de perplexidade teórica, gera questionamentos sérios no sentido dos possíveis prejuízos que tal situação pode trazer à segurança jurídica, bem como induz a reflexões no sentido da formação de um diagnóstico acerca do papel que o sistema tributário vem representando, passados quinze anos após a promulgação da Carta Magna, dentro de uma ordem jurídica que tem como fundamento o desenvolvimento de uma sociedade organizada sob a forma de um Estado Democrático de Direito. É sobre tal situação que se passará a discorrer a partir de agora.


2. CONTRIBUIÇÕES: DA CLASSIFICAÇÃO DAS ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS À UMA TIPOLOGIA DOS TRIBUTOS?

Feitas tais considerações acerca da classificação dos tributos em diferentes espécies, possível será dar início, a partir deste ponto, às análise que são o objeto central deste trabalho. Portanto, o que se fez até o momento foi apenas um exercício descritivo sobre a situação jurídica que, desde o movimento de sistematização do Direito Tributário, passando pelos acórdãos do Pretório Excelso no início da década de noventa, bem como pelos esforços doutrinários empreendidos em todo esse período, vieram inspirando a maioria dos trabalhos científicos e julgamentos no que tange à classificação dos tributos em espécies. Não se desconhece, aqui, portanto, a variedade das classificações existentes, principalmente na doutrina, sobre a divisão dos tributos em tais ou quais espécies.

Enfim, sempre se discutiu na doutrina e na jurisprudência a classificação dos tributos em espécies. Muita tinta e muito papel já foram gastos em tal empreitada. Esta é uma constatação que pode ser feita em um simples debruçar de olhos sobre os livros e acórdãos existentes sobre o assunto. Mas, como dito logo acima, o objetivo deste trabalho não é dar continuidade a tal discussão. Quer-se aqui, em verdade, abordá-las sob o ponto de vista dos métodos de ordenação classificatório e tipológico, para, em seguida, tentar-se fazer um diagnóstico, em tal viés, sobre a divisão dos tributos em espécies posta na Constituição Federal. Mas, antes, vejamos em que consistem as metodologias classificatórias ou tipológicas, tal como explicadas pela Professora Misabel DERZI (1988) em sua obra Direito Tributário, Direito Penal e Tipo.

2.1. Tipologia e Classificação.

2.1.1. Considerações iniciais.

O vocábulo tipo, aqui, não é adotado na acepção usual em que aparece no Direito Penal e, em geral, também no Direito Tributário. Na verdade, como bem alerta a Professora Misabel DERZI (1988), a palavra tipo foi trazida para o Direito Penal como uma tradução equivocada feita do alemão ‘tatbestand’ para a língua espanhola, e daí para o português. Portanto, o "tipo" em sentido impróprio do Direito Penal e do Direito Tributário, em verdade, é uma classe. E é assim porque o tipo, em seu sentido próprio, é uma realidade lingüística concreta, aberta e com notas renunciáveis. Exemplos ilustrarão melhor o que se quer aqui dizer.

Quando se fala em ordenação conceitual, classificatória, está-se a referir a secções que são feitas da realidade, formando compartimentos semânticos estanques, de modo que, em surgindo uma nova realidade, para esta terá que sempre existir uma nova classe. Vejamos: se na biologia há uma classe representante dos mamíferos e outra dos ovíparos, com o surgimento do ornitorrinco, se estivermos usando uma metodologia classificatória, terá que ser criada uma nova classe, um novo conceito, para abrigar a nova espécie, ao lado daquelas até então existentes. Já quando se fala em ordenação tipológica, está-se a raciocinar de modo a permitir que uma nova realidade transite entre os tipos até então existentes. Assim, os entes que se pretendem subsumidos aos tipos podem apresentar características renunciáveis. Quando se fala, em nosso exemplo, em classificação, adentra-se em uma metodologia que não permite a existência de um "mais ou menos", mas apenas de um "sim" ou "não", "incluído" ou "excluído". Nesta perspectiva, passando-se a uma ordenação tipológica, admitir-se-iam formas fluidas transitáveis intratipos ou intertipos. Assim, mamíferos ou ovíparos seriam unidades de sentido constituídas de características renunciáveis e que permitiriam que realidades fossem ordenadas com características de ambas. No mesmo exemplo ventilado acima, a mamífero e ovíparo corresponderiam tipos; ao ornitorrinco por sua vez, não caberia uma nova classe, distinta das até então existentes, mas sim a admissão de que se está diante, no caso, de uma forma mista que transita entre os tipos existentes. Sobre este assunto, vejamos as insubstituíveis palavras da professora Misabel DERZI (1988: 52-53):

"O tipo é, pois, uma unidade dotada de sentido, ao mesmo tempo, uma abstração mais concreta do que o conceito abstrato classificatório, estruturado de forma flexível, aberta e graduável.

O método tipológico, através da comparação entre uma e outra nota de tipos diversos, descobre as formas mistas, aquelas que se aproximam mais de um do que de outro. Assim, também, no interior de um mesmo tipo, pode estabelecer gradações entre o mais e o menos típico. Isso só é possível quando se supõe a flexibilidade, a graduabilidade e a renunciabilidade das características de um tipo, normativamente posto.

O pensamento tipológico é útil, então, à ordenação do pensamento em escala gradativa, tanto inter, como intratipos.

Diante do fato jurídico, Shopping Center, será utilizado o método tipológico, se o jurista não tender a classifica-lo, segundo notas clássicas e rígidas que, conceitualmente, se atribuam a uma espécie jurídica, mas, ao contrário, concebe-lo como misto de locação e sociedade, p. ex., ou administração de condomínio, ou, ainda, dentro do tipo, locação, gradua-lo como menos típico ou representativo.

O método utilizado não será o tipológico, mas o classificatório conceitual, se o analista não admitir as transições fluidas entre os tipos ou a graduabilidade das notas intratipo; nesse caso, ele tenderá a concentrar em uma ou duas notas fixas e rígidas, irrenunciáveis, as características de cada tipo, assim como a excluir a espécie que não se subsumir ao conceito. E excluída, passará a formar uma nova espécie, dentro do gênero negócio jurídico." (p. 52-53)

A professora citada (1988: 75) aduz ainda:

"A teoria do tipo distingue entre tipificar e classificar.

Tanto o tipo como a classe são formas ordenadoras que repartem os indivíduos abrangidos por um conceito. A classe, porém, não se confunde com o tipo, como visto.

(...)

Conceitos jurídicos e classificações não são, por sua própria natureza, imutáveis, eternos, mas sempre ligados às lentas mutações de significações ou às alterações legislativas. O sistema jurídico é histórico e aberto.

(...)

Quando se passa do tipo à classe, as notas caracterizadoras enrijecem-se em número reduzido, tornando-se irrenunciáveis. A classe se fecha em um número delimitado de espécies e até subespécies esgotantes do conceito. Dá-se a delimitação rigorosa de uma espécie a outra, através de um critério diferencial, dito diferença de espécie, sem possibilidade de formas mistas e transições."

Eduardo MANEIRA (2002: 55-56) também traz valiosos subsídios sobre tal tema, ressaltando que

"o tipo, como forma de pensamento, recebeu recentemente nova roupagem doutrinária com a chamada ‘teoria dos conjuntos difusos’ (fuzzy sets theory) desenvolvida por Lotfi A. Zadeh e A. Kaufmann. Confiram-se as lições de Pedro Pais de Vasconcelos sobre o tema:

‘A lógica difusa permite ultrapassar a singeleza do sistema binário tradicional verdadeiro/falso, tributário do princípio da identidade, e distinguir graus e modos de verdade. Em relação ao conceito de ‘pássaro’, Lakoff ordena os seguintes animais: pardais, águias, galinhas, patos e gansos, pingüins e pelicanos, morcegos e vacas. Os pardais são tipicamente pássaros. As águias sendo predadores, são menos típicas. As galinhas, os patos e os gansos são bastante menos. Os pingüins e os pelicanos ainda menos. Os morcegos só muito dificilmente. As vacas não são.

Numa lógica difusa, LAKOF ordena os graus de verdade desta série proporcional:

a)o pardal é um pássaro. (verdadeiro)

b)a galinha é um pássaro. (menos verdade que ‘a’)

c)o pingüim é um pássaro. (menos verdadeiro que ‘b’)

d)o morcego é um pássaro. (falso, ou pelo menos muito longe da verdade)

e)a vaca é um pássaro. (completamente falso)

Essa graduabilidade da verdade das proposições permite fazer a distinção entre centro e periferia. Assim, em relação à categoria ‘pássaro’, o pardal ocupa uma posição central; enquanto que as galinhas, os patos e os gansos ocupam uma posição periférica; os pingüins e os pelicanos, ainda mais periférica; os morcegos estão fora, embora perto; e as vacas claramente fora.

LAKOF introduz ainda o conceito de ‘hedge’, com o sentido de limite de correspondência impreciso e vago (p. ex. ‘sort of’ e ‘more or less’, entre muitas outras), como a expressão coloquial portuguesa ‘mais ou menos’, ou ‘quase’. Reordenando a série utilizada, ter-se-á:

a)o pardal é quase um pássaro. (falso: é mesmo um pássaro)

b)a galinha é quase um pássaro. (verdadeiro, ou muito perto)

c)o pingüim é quase um pássaro. (verdadeiro, ou perto)

d)o morcego é quase um pássaro. (falso, ou muito perto de falso)

e)a vaca é quase um pássaro. (falso)

Os ‘hedges’ são modificadores de atributo que enriquecem a equivalência simples ‘e’introduzindo-lhe um modo de ser. A expressão ‘mais ou menos’ introduz imprecisão na equivalência, enquanto que a expressão ‘quase’ a modifica no sentido da aproximação. Em lógica difusa, algo pode ser muito, pouco, mais ou menos, quase; pode ser igual, diferente, semelhante, muito ou pouco semelhante, análogo, etc.

A lógica difusa não sente dificuldade na operação com as fronteiras fluidas dos tipos e, ao admitir a graduação e a modificação do juízo de correspondência, designadamente entre o caso e o tipo, abre novos caminhos em matéria de qualificação e de concretização. A lógica difusa, ao contrário da lógica formal, consegue trabalhar com a diferenciação entre o centro e a periferia do tipo, com os juízos de menor ou maior tipicidade, de quase tipicidade e de quase atipicidade e, acima de tudo, é particularmente adequada para operar com a semelhança e a analogia. Nesta perspectiva, os tipos são ‘fuzzy sets’."

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Vistas as diferenças entre os métodos de ordenação classificatório ou tipológico, passemos a procurar identificar, de forma panorâmica, como são eles aplicados em ramos diversos do Direito.

2.1.2. Dos Tipos no Direito Civil e no Direito Tributário. Razões do movimento classificatório ou tipológico.

Em nenhum ramo do Direito pode ser constatada a presença exclusiva de tipos ou de conceitos. Contudo, a tendência a um movimento tipológico ou classificatório depende de fatores político-sociais, pré-jurídicos. Explica-se: valores pré-jurídicos acolhidos pelo legislador é que determinam a tendência classificatória ou tipológica de certas partes do ordenamento jurídico. Em geral, quando se quer maior segurança jurídica caminha-se em direção a um movimento classificatório. A contrario sensu, quando o que é buscado é uma maior proximidade à realidade, uma maior concreção, as formas tipológicas são as mais indicadas, eis que são mais aptas a captar com maior fidelidade mutações no tráfego jurídico, permitindo que, entre suas formas fluidas e concretas, surjam novas formas mistas que transitam entre os tipos.

Quando se fala de tipos no Direito, sempre se pensa, em um primeiro momento, no Direito Civil, mais especificamente no Direito das Obrigações. Por outro lado, quando se pensa em conceitos e metodologia classificatória, vem à mente, necessariamente, os Direitos Penal, Tributário, bem como, dentro do Direito Civil, os Direitos Reais.

A presença de tipos no Direito das Obrigações é patente. Com efeito, estabelece o Código Civil certas formas contratuais, ditas típicas. Entre essas formas já existentes, pode a criatividade humana criar novas formas que transitem entre as já existentes. A professora Misabel DERZI (1988: 52) cita o exemplo do fato jurídico Shopping Center, forma mista entre locação e sociedade, por exemplo. Pode-se também lembrar de contratos como o de arrendamento mercantil, forma mista visível que transita entre os contratos de locação e compra e venda. E o Direito das obrigações adota a metodologia tipológica em virtude, como já ressaltado, de valores pré-jurídicos. É que a vida negocial é caracterizada sobremaneira pelo seu caráter dinâmico, apto por natureza a criar novas formas jurídicas propiciadoras de dar viabilidade normativa à circulação de bens e serviços no seio da sociedade.

O mesmo Direito Civil, quando se está a falar do subsistema dos Direitos Reais, apresenta movimento inverso. Com efeito, a necessidade de segurança no trato da propriedade, ou, em outras palavras, a necessidade premente de se saber quem é dono de algo e quem não o é, impõe a adoção de uma metodologia classificatória. Assim, só podem os direitos reais serem criados por lei, não se admitindo quaisquer formas mistas novas que transitem entre as já existentes. Sendo claro: não pode alguém instituir, através de um negócio jurídico, nova forma de garantia real, mistura da hipoteca com o usufruto, por exemplo.

No Direito Penal, a garantia de segurança jurídica atinge, paralelamente ao que ocorre com o Direito Tributário, e será adiante demonstrado, ares de segurança máxima dentro do ordenamento jurídico. É notório que o regime nazista, por exemplo, quando quis expandir a criminalização de condutas, em evidente prejuízo para a segurança jurídica, utilizou-se de formas fluidas. Com efeito, sob o pálio de um Estado Democrático de Direito, a segurança jurídica em matéria penal se impõe inarredavelmente. Ninguém deve ser punido por ter cometido conduta mista, que transita entre dois crimes existentes. Para que seja apenado pela prática de tal conduta inédita, mista de dois crimes já existentes, deve o sujeito sofrer os influxos de um novo conceito a ser estabelecido em lei, que constituiria um novo crime até então inexistente. É como o já referido ornitorrinco. Se se estiver a adotar uma metodologia classificatória, impõe-se que se crie para ele uma nova classe.

O Direito Tributário, assim como o Penal, foi soerguido, sob a égide da Carta Magna de 1988, sobre o pilar axiológico da segurança jurídica. Na imposição fiscal prevalece, pois, a classificação, o conceito, em prejuízo do tipo e das formas semânticas fluidas. A necessidade de segurança assim o determina. Portanto, formas mistas de tributos, criadas pelo gênio humano em desvio do caminho do Congresso, das Assembléias e das Câmaras, não são permitidas. Ou se cobra de acordo com as formas impositivas até agora existentes ou não se cobra. Não se pode criar, sem se estabelecer um novo conceito em lei, uma prestação mista entre imposto de renda e o ICMS. Ou é um, ou é outro; não há meio termo. Assim, no Direito Tributário, assim como no Penal, predominam conceitos, classificações, tudo em homenagem à segurança jurídica, que se impõe como um vetor principiológico de estatura constitucional.

2.1.3. Dos resíduos tipológicos no Direito Tributário.

Mas há, no Direito Tributário, no dizer da Professora Misabel DERZI (1988), "resíduos tipológicos". Como já dito acima, não há ramos onde existem apenas tipos ou conceitos. No Direito Tributário, obviamente, não é diferente.

Com efeito, em pontos do sistema tributário nacional onde necessidades pré-jurídicas reclamam maior proximidade da realidade, sobrevêm ordenações tipológicas. O exemplo maior é o dos impostos regulatórios, onde predominam funções extrafiscais. É o casos dos impostos de exportação e importação, onde a gradação das alíquotas dá-se por ato administrativo segundo uma metodologia tipológica. Estes resíduos, ressalte-se, compaginam-se perfeitamente com a necessidade de agilidade existente no exercício da política de regulação do comércio internacional.

Todavia, não se deve afastar da noção de que no Direito Tributário predominam, de forma acachapante, conceitos, e não tipos, como já exposto acima.

2.2. Do conceito de tributo e da metodologia classificatória na sua divisão em espécies.

2.2.1. Considerações iniciais.

O tributo é, e sempre foi, um conceito. Com efeito, dispõe o art. 3º do Código Tributário Nacional que "Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada."

Paulo de Barros CARVALHO (1993), em passagem de sua obra sempre lembrada pela literatura jurídico-tributária brasileira, demonstra, de forma impressionante, a existência de vários conceitos de tributo identificáveis na legislação nacional. Entre eles, vale lembrar, à guisa de mero exemplo, indica aquele positivado no art. 9º da lei nº 4320/64, que classifica o tributo como sendo a receita derivada instituída pelas entidades de direito público. Todavia, em que pese a aparente polissemia do termo, deduzida, em primeiro momento, da prodigalidade e da impressionante disposição do ordenamento jurídico pátrio em estabelecer definições sobre a realidade jurídica ora enfocada – o tributo – certo é que a verdadeira conotação do termo é aquela posta no art. 3º do CTN. Admitem-no, inclusive, como sendo o correto, até mesmo juristas que se opõem energicamente aos esforços que o legislador por vezes empreende em estabelecer definições. Geraldo ATALIBA (1995), por exemplo, conquanto critique a existência do art. 3º do Código Tributário Nacional, por entender que o conceito de tributo está implícito no texto constitucional, e de lá deve ser extraído pelo doutrinador, e não pelo legislador, sempre esteve de acordo com seu conteúdo. Werther Botelho SPAGNOL (2002), abstraindo temporariamente as severas críticas que são feitas por inúmeros doutrinadores ao conceito de tributo positivado na lei nº 5172/66 [3], traz à lume suas evidentes qualidades, in verbis:

"Entendemos, com Sacha Calmon e Geraldo Ataliba, tratar-se de excelente conceito, permitindo a definição exata de uma exação com de natureza tributária. (...) Em que pese a autoridade da argumentação contrária ao art. 3º do Código Tributário Nacional, entendemos, como dito de início, que o Código define tributo de forma adequada."

Pois bem, considerando o conceito de tributo implícito na Carta Magna, bem explicitado no art. 3º do CTN, sempre se debruçaram doutrinadores sobre a árdua tarefa de desdobrá-lo em tais ou quais espécies.

BECKER (1972) afirmava existirem apenas duas espécies de tributos: impostos e taxas.

ATALIBA (1995), e outros, dentre os quais Sacha Calmon Navarro COÊLHO (1982), entendem serem três as espécies tributárias: impostos, taxas e contribuições.

Até aqui, levou-se em consideração para classificar as espécies tributárias apenas o critério vinculação, não-vinculação, do fato gerador a uma atividade estatal. No caso, os impostos formariam aquela categoria em que o aspecto material da hipótese de incidência independe da atividade estatal. Nas taxas o aspecto material da hipótese de incidência seria uma atividade estatal diretamente referida ao contribuinte. Finalmente, nas contribuições, comporia o fato gerador também a atividade estatal, só que agora caracterizada pela referibilidade indireta com relação ao contribuinte.

Werther Botelho SPAGNOL (2002), Marco Aurélio GRECO (2000), a maioria dos Ministros do Supremo Tribunal federal (ADC nº 01), entre outros autores e julgadores, entendem serem as contribuições e os empréstimos compulsórios espécies tributárias apartadas das taxas, dos impostos e da contribuição de melhoria.

Admitem, estes autores, a finalidade como elemento capaz de apartar as contribuições das demais espécies tributárias. Como já salientado ut supra, parte o presente ensaio de tal ponto. Todavia, fez-se agora referência às teorias tricotômicas e dicotômicas do tributo para demonstrar que a doutrina sempre esteve imbuída de intuito ordenador classificatório das espécies tributárias, principalmente, como será esclarecido adiante, aqueles adeptos da teoria tricotômica. E de tal esforço também se abeberaram os doutrinadores que entenderam serem as contribuições e os empréstimos compulsórios espécies autônomas relativamente às taxas, aos impostos e às contribuições de melhoria. Fizeram-no, parece-me, inspirados sempre no propósito de construir uma disciplina sólida e segura para o Direito Tributário, sintonizada com o baluarte da segurança jurídica.

Ocorre que o legislador constituinte derivado reformador vem, seguidamente, ‘pregando peças’ e gerando perplexidade a todos os doutrinadores, estudiosos e profissionais que militam no campo do Direito Tributário.

2.2.2. Da finalidade como elemento configurador de novas espécies tributárias e das formas mistas constitucionais.

2.2.2.1. Da finalidade como elemento distintivo entre espécies.

Admitindo-se, por motivos de conveniência, que a afetação ao cumprimento de uma finalidade constitucionalmente eleita é capaz de dar identidade às contribuições frente aos impostos, às taxas e às contribuições de melhoria, tendo sido, pois, apenas parcialmente recepcionado o art. 4º do CTN [4], deve-se também reconhecer que a distinção do conteúdo dos escopos a serem atingidos é passível de viabilizar uma subdivisão da espécie contribuição em diferentes subcategorias, quais sejam: contribuições sociais, corporativas e de intervenção no domínio econômico.

A importância reconhecida às finalidades prestigiadas constitucionalmente no regime jurídico das contribuições é de tal envergadura que, Misabel Abreu Machado DERZI (2001: 598-599), ao discorrer sobre a questão relativa à destinação do produto arrecadado por meio das contribuições (e, por conseguinte, sobre o cumprimento das finalidades buscadas com a sua criação), aduz, ainda, que a tamanha importância da afetação de tais valores - legitimadora da competência para a instituição destas exações – induz a que o sujeito passivo da relação tributária, em verificando o desvio do numerário entregue aos cofres públicos, pode recusar-se a continuar adimplindo as obrigações relativas a tais tributos, in verbis:

"A Constituição de 1988, pela primeira vez, cria tributos finalisticamente afetados, que são as contribuições e os empréstimos compulsórios, dando a destinação que lhes é própria relevância não apenas do ponto de vista do Direito Financeiro ou Administrativo, mas igualmente do Direito Tributário.

Somente a União tem competência para criar contribuições ou empréstimos compulsórios, conforme estabelecem os arts. 148 e 149. Mas enquanto o Texto Magno proíbe que o legislador vincule a arrecadação de impostos a órgão, fundo ou despesa (art. 167, IV), a afetação do produto a certas despesas ou serviços é requisito necessário para o exercício da competência federal, no que tange às contribuições e aos empréstimos compulsórios. Tais despesas estão definidas na Constituição Federal (...).

(...)

A destinação passou a fundar o exercício da competência da União. Sem afetar o tributo às despesas expressamente previstas na Constituição, falece competência à União para criar as contribuições. (...) Assim, a destinação assume relevância não só tributária como constitucional e legitimadora do exercício da competência federal.

O contribuinte pode opor-se à cobrança de contribuição que não esteja afetada aos fins constitucionalmente admitidos; igualmente poderá reclamar a repetição de tributo pago, se, apesar da lei, houver desvio quanto à aplicação dos recursos arrecadados. É que, diferentemente da solidariedade difusa ao pagamento de impostos, a Constituição prevê a solidariedade do contribuinte no pagamento de contribuições e empréstimos compulsórios e a conseqüente faculdade outorgada à União de institui-los, de forma direcionada e vinculada a certos gastos. Inexistente o gasto ou desviado o produto arrecadado para outras finalidades não autorizadas na Constituição, cai a competência do ente tributante para legislar e arrecadar."

Ressalte-se que não só o desvio efetuado no plano da própria lei que cria a contribuição, mas também aquele que é efetuado à margem própria lei - que, em princípio, destina os recursos arrecadados ao fito prestigiado na Carta Magna -, no plano dos fatos, legitima a resistência do contribuinte.

A Constituição Federal permitiu a criação das contribuições sociais e interventivas em hipóteses, em princípio, restritas. Podem elas ser instituídas apenas para atender a tais finalidades previstas na lei maior. Deu esta o direito e, noutro giro, previu a forma de seu custeio. As finalidades, quando sociais, legitimam a imposição de contribuições sociais; quando interventivas, possibilitam a exigência de CIDE’s. É, portanto, pelo conteúdo do escopo a ser cumprido pela espécie que se pode distinguir entre uma e outra espécie de contribuição. A forma de ordenação, portanto, continuaria sendo a classificatória, apenas com o aditivo de se admitir o elemento finalidade como critério distintivo entre as classes. Todavia, vejamos alguns exemplos de formas mistas tirados da Carta Magna.

2.2.2.2. Das formas mistas na Constituição Federal.

A Constituição Federal, em alguns de seus dispositivos, promove verdadeira miscelânea entre as espécies tributárias que ela própria, em um primeiro momento, estabelece em seu texto. A partir de agora, passaremos a indicar quais são estas formas híbridas, encontradas ao longo do texto da Carta Magna.

Em primeiro lugar, vejamos o que se passa com a contribuição ao PIS:

"Art. 239. A arrecadação decorrente das contribuições para o Programa de Integração Social, criado pela Lei Complementar nº 7, de 7 de setembro de 1970, e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público, criado pela Lei Complementar nº 8, de 3 de dezembro de 1970, passa, a partir da promulgação desta Constituição, a financiar, nos termos que a lei dispuser, o programa do seguro-desemprego e o abono de que trata o § 3º deste artigo.

§ 1º - Dos recursos mencionados no "caput" deste artigo, pelo menos quarenta por cento serão destinados a financiar programas de desenvolvimento econômico, através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, com critérios de remuneração que lhes preservem o valor."

Da leitura do dispositivo acima extrai-se a seguinte conclusão: a contribuição ao PIS consagra, dentre as finalidades que através dela devem ser atingidas, uma de natureza social e outra de natureza interventiva.

Outros casos de figuras híbridas podem ser encontrados ao longo da Constituição. É o que se vê após o advento das Emendas nº 27/2000 e 39/2002, que modificaram a redação do art. 76 do ADCT e introduziram o art. 149-A no corpo da CF:

"Art. 76. É desvinculado de órgão, fundo ou despesa, no período de 2000 a 2003, vinte por cento da arrecadação de impostos e contribuições sociais da União, já instituídos ou que vierem a ser criados no referido período, seus adicionais e respectivos acréscimos legais.

§1º. O disposto no caput deste artigo não reduzirá a base de cálculo das transferências a Estados, Distrito Federal e Municípios na forma dos arts. 153, §5º; 157, I; 158, I e II; e 159, I, a e b, e II, da Constituição, bem como a base de cálculo das aplicações em programas de financiamento ao setor produtivo das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste a que se refere o art. 159, I, c, da Constituição.

§2º. Excetua-se da desvinculação de que trata o caput deste artigo a arrecadação da contribuição social do salário-educação a que se refere o art. 212, §5º, da Constituição."

"Art. 149 – A. Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviços de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III.

Parágrafo único. É facultada a cobrança da contribuição a que se refere o caput, na fatura de consumo de energia elétrica."

Ora, se vinte por cento de uma contribuição social, ou interventiva, é desvinculado de qualquer finalidade especial, o que se tem, ao menos aparentemente, é uma espécie mista, híbrida, de imposto com contribuição. Mesclando-se o primeiro exemplo, relativo à contribuição para o PIS, com a desvinculação de 20% das contribuições sociais operadas pela Emenda nº 27/2000, chega-se à uma figura que, no mínimo, desperta a curiosidade de qualquer jurista: trata-se de uma espécie composta de características das contribuições interventivas, das contribuições sociais e dos impostos.

Também gera perplexidade o tributo introduzido no art. 149-A da Carta Magna: está-se, com efeito, diante de um misto de taxa e imposto, ou trata-se efetivamente de uma nova contribuição, possuidora das características das taxas, dos impostos e das demais contribuições que existiam até então?

Tributos possuidores de tal morfologia híbrida não são da tradição de nosso Direito Tributário. Como ressaltado e demonstrado acima, sempre quando se falou na divisão dos tributos em espécies, o que, no mínimo, buscou-se, foram as formas ordenadoras classificatórias, propiciadoras de espécies puras. Assim, taxa era taxa, impostos era imposto. Ao surgir uma figura com aparentes características mistas – contribuição de melhoria – BECKER (1972) classificava-a ou como taxa, ou como imposto, dependendo da configuração do fato gerador, e ATALIBA (1995) concebia-a como uma terceira espécie, distinta das anteriores. Da exposição de Eduardo MANEIRA (2002: 142-143), a seguir colacionada, nota-se que a classificação pura, de uma ou outra forma, sempre foi o fim último do esforço doutrinário de classificar os tributos em espécies. Veja-se:

"Toda controvérsia e torno da classificação dos tributos em espécie parte, pois, da escolha de critérios distintos para orienta-la. Há, por exemplo, a corrente doutrinária liderada por Dino Jarach que classifica os tributos com base na causa jurídica que fundamenta a obrigação tributária, o que leva a uma classificação tripartite: imposto, cuja causa estaria na capacidade contributiva; a causa da taxa estaria na contraprestação, e a da contribuição, no benefício da mais-valia imobiliária.

Outra corrente, predominante na doutrina, utiliza por critério de classificação a hipótese e incidência, concluindo também pela existência de três espécies: o imposto como tributo cuja obrigação não se vincula a atuação estatal, e a taxa e a contribuição de melhoria como tributos vinculados a uma atuação do Estado, que se diferenciam entre si pelo fato de a contribuição exigir um benefício decorrente da realização de obras públicas. Utilizando-se do mesmo critério, qual seja, a classificação pela análise da hipótese de incidência, outra corrente verifica apenas duas espécies: imposto e taxa. É que, para esta corrente, a base de cálculo integra a hipótese de incidência, sendo o seu aspecto nuclear. Assim, a contribuição de melhoria seria imposto se fosse calculada sobre a mais-valia imobiliária e taxa se fosse calculada pelo valor da obra.

Temos ainda doutrinadores que defendem a existência de quatro espécies, fazendo incluir as contribuições que não as de melhoria, como é o caso do Professor Werther Botelho Spagnol, para quem a autonomia das contribuições como espécie como espécie decorre do fato de elas serem instituídas em função de uma determinada finalidade, que deve ser explicitada no mandamento da norma tributária, e ainda outros autores que admitem cinco espécies, somando-se às outras quatro os empréstimos compulsórios"

Agora o direito positivo impõe aos cientistas dogmáticos do Direito um novo desafio. Seria a contribuição ao PIS, por exemplo, uma nova espécie, dotada dos traços acima explicitados, ou seria ela uma forma mista, que transita entre as características de outras figuras. Em suma, quando se fala em divisão dos tributos em espécies, nos dias de hoje, há como fincar o debate apenas em torno de classificações, ou, noutro giro, pode-se afirmar que, tendo em vista o texto da Constituição, está-se esboçando um movimento tipológico no que concerne a tal assunto? Pensamos, sem ainda valorar tal tendência, que não há como negar, ao se deitar os olhos sobre o direito positivo, que está-se diante de formas mistas que transitam entre as demais, formando o esboço de uma ordenação tipológica. Se por um lado é certo que não se pode criar novas formas mistas fora do texto constitucional, por outro não há como negar que o poder constituinte reformador as esteja construindo.

Nesse contexto, é interessante notar que, se se pretendesse proceder a uma classificação dessas formas mistas, ao invés de uma tipologia, ter-se-ia que admitir, por exemplo, que a contribuição ao PIS forma uma única espécie, sem que haja nenhuma outra no ordenamento com características idênticas às dela. Em princípio, formaria um conjunto unitário a nova classe criada para abrigar o PIS, sem negar-se que, em eventualmente surgindo uma nova figura mista de impostos, contribuições sociais e interventivas, poderia esta vir a ser também enquadrada em tal categoria. É o mesmo dilema em que, no exemplo retro ilustrado, encontra-se o biólogo frente ao ornitorrinco e tem que tomar uma decisão entre classificar ou tipificar.

Nestes casos, forçoso é admitir que a insistência em classificar pode resultar na própria inutilidade da classificação. É possível se imaginar, na divisão dos tributos em espécie, uma nova classe que abrigue tributos com as características da contribuição ao PIS? Ao que parece, não. Deve-se reconhecer que a complexidade do objeto de investigação pode chegar ao ponto de inviabilizar classificações em benefício de tipologias.

2.3. Do movimento tipológico no sistema constitucional tributário e da segurança jurídica.

Em que pese o reconhecimento da existência de formas mistas na Constituição Federal, vale lembrar que tais realidades não são bem aceitas pelo sistema constitucional tributário. Tanto é assim que não podem ser criadas por lei, devendo estar previstas na própria Carta Magna. Não pode o legislador complementar ou, o ordinário, por exemplo, ao pretexto de se tornar a arrecadação mais prática, instituir tributo misto entre o imposto de renda e a contribuição social sobre o lucro. Não: só o constituinte pode criar figuras mistas como o PIS.

É pelo fato de não serem as figuras híbridas bem aceitas pelo sistema que os doutrinadores nunca procuraram caminhar na direção de uma tipologia das espécies tributárias, mas sim de uma classificação. Fizeram-no, ressalte-se, sempre tendo em vista o direito positivo até então existente, e, sobretudo, considerando o princípio da segurança jurídica, baluarte e um dos pilares axiológicos do Direito Tributário. Este sempre impôs que o jurista refletisse tal ramo do conhecimento jurídico quase que como inteiramente formado por classes, e não por tipos.

A tipologia, com suas formas fluidas, sempre traz insegurança. O Fechamento dos tipos e a conceitualização, por sua vez, promovem a segurança [5]. É o que afirma Pedro PAIS DE VASCONCELOS (in MANEIRA, 2002: 55):

"O legislador, quando define os tipos, fechando-os, actua geralmente por preocupações de segurança e de rigor, com o intuito de proporcionar exactidão ao exercício jurídico, certeza à aplicação do Direito. Isto é particularmente claro na definição rigorosa dos tipos de crimes no Código Penal e dos tipos de direitos reais no Código Civil. O princípio ‘nullum crimen sine lege’ exige um grande rigor na delimitação do que é e do que não é crime. O princípio da tipicidade dos direitos reais cristaliza os tipos e afectações reais para, por um lado, estabelecer fronteiras claras entre o que é e o que na é real e, por outro lado, para permitir a aplicação subsuntiva e firme do direito legal, injuntivo ou dispositivo, aos tipos de direitos reais. Ao fechar os tipos contratuais legais, definindo-os na lei, o legislador visa possibilitar a subsunção, como modo de possibilitar certeza e aplicação do direito do tipo."

Exemplo da barafunda instalada no sistema tributário pode ser visto ao se retomar um dado que foi explicitado acima, concernente à possibilidade de o contribuinte resistir a contribuições que estão sendo desviadas de seu rumo. No caso do nosso pisado e repisado PIS, como se daria tal controle? Ou seja, se tal exação fosse desviada apenas de seus fins sociais, mantidos os demais, em que parte poderia o contribuinte resistir? A fluidez de tal resposta, qualquer que seja ela, evidentemente dificulta o controle. Além disso, pela redação do art. 76 do ADCT nota-se que apenas as contribuições sociais podem ser desvinculadas em vinte por cento pela União. Mas o PIS também cumpre papel interventivo. Ao fim, quanto do montante total do PIS pode ser desviado em vinte por cento pela União?

Ora, tais dificuldades configuram provas cabais da inaptidão do Direito Tributário de conviver com movimentos tipológicos e, por conseguinte, com a insegurança jurídica.

James MARINS (in MANEIRA, 2002: 60) expõe sua concepção da relação que existe entre a segurança jurídica e o Direto Tributário, ressaltando que este princípio alberga, impregna, todo o sistema tributário:

"Segurança material consistente na plena previsibilidade das regras de tributação, o que se logra tão-somente através da observância formal e material da reserva absoluta de lei, do princípio da estrita legalidade que se desdobra na tipicidade em matéria tributária (art 150 e seus diversos parágrafos e incisos, da CF/88). Segurança formal que se expressa no modus operandi administrativo revelado pelo procedimento de fiscalização e lançamento. Segurança processual revelada pela qualidade do procedural due process of law que baliza a atuação dos julgadores administrativos e judiciais para a lide fiscal (art. 5º, diversos incisos, da CF/88).

Nesse contexto é que costumamos afirmar que o fenômeno tributário é governado por um regime de especial segurança constitucional. Além da proteção matricial à liberdade e à propriedade em seu choque tributário, o panorama próprio de operatividade fiscal cria a demanda de especial segurança, por exemplo, quando constatamos a tríplice função do Estado em matéria fiscal a que se referia Valdés Costa: 1) o Estado cria a norma ensejadora da obrigação da qual será sujeito ativo (legisla); 2) o Estado aplica por meio da auto-tutela as normas tributárias (fiscaliza e lança); 3) o Estado resolve com foro de definitividade os eventuais conflitos advindos da lei ou de sua aplicação (julga)"

Assim, quando a Constituição cria formas tributárias mistas, dá oportunidade a que ocorra um desvirtuamento do próprio sistema constitucional. Por exemplo, parece-me que o processo de desvirtuamento das contribuições, iniciado com a quebra da parafiscalidade necessária daquelas que são destinadas ao custeio da seguridade social, desaguou de forma definitiva na desvinculação parcial de suas receitas, procedida pela Emenda Constitucional 27/2000. Tal desvio de recursos, apenas validado perante o ordenamento jurídico nacional, apenas referenda o processo de cada vez maior promiscuidade que se desenvolveu ao longo da década de noventa entre os impostos e as contribuições. As finalidades que legitimam a criação dessa última espécie de tributos, em tese absolutamente passíveis de serem harmonizadas ao restante do Texto Maior, não há como negar, tornaram-se um conveniente pretexto para a criação de verdadeiros impostos. Tal legitimação transversa das contribuições sempre esteve amparada em concepções que nunca destacaram, de forma nítida, os lindes entre elas e os impostos. A D.R.U., antes que uma novidade, é a expressão clara de que as duas figuras se casaram, estão juntas como irmãos siameses, tanto que puderam ser harmonizadas. Houvesse segurança jurídica efetiva, tal situação não teria acontecido, pois a mistura entre contribuições e impostos se abebera justamente em um substrato de inexatidão e incerteza no tocante à divisão dos tributos em espécies, base esta que, queiram os doutrinadores ou não, já contaminou todo o sistema.

A divisão dos tributos em espécies, por vezes ignorada sob o ponto de vista da segurança, não pode ficar em segundo plano. Ela é o pilar teórico de todo o sistema. Se ela estiver desorganizada, misturada, fluida, o sistema se auto-reproduz de forma absolutamente desordenada, à moda dos tumores.

Com exceção da contribuição ao PIS, as demais formas indefinidas foram trazidas ao ordenamento pelo poder constituinte derivado reformador. Exemplos são, como já relatado acima, todas as contribuições sociais, após a D.R.U., e a recente contribuição para iluminação pública veiculada pela Emenda Constitucional nº 39/2002, prevista no art. 149-A da CF.

Ora, tais mutilações da organização normativa original da Constituição estão levando, sem dúvida, a um afastamento das técnicas de tributação dos demais princípios fundantes da República. É o que se passará a demonstrar.

2.4. Direito Tributário, insegurança e ilegitimidade do sistema tributário

A Constituição confere validade e legitimidade ao ordenamento jurídico.

Uma das bases da legitimidade do sistema tributário é a segurança jurídica, cuja definição dos tributos em espécies bem definidas, como já explicitado, é mero reflexo. Ante tal constatação, há que se perguntar: são as modificações introduzidas no Texto Maior pelo constituinte reformador válidas e legítimas, ou seriam elas apenas válidas? Traduzindo em outras palavras, será que a introdução de formas mistas de tributos na Constituição, em direção oposta às diretivas que se extrai do princípio da segurança jurídica, estaria em sintonia com a legitimidade que a Carta Magna busca dar ao ordenamento?

O regime nazista, ancorado nas concepções normativistas, positivou e validou anti-semitismo e o regime político totalitário. Sobre o enfoque apenas da validade, o ordenamento jurídico alemão nacional-socialista era como qualquer outro. Mas perplexidades geradas pela segundo grande conflito mundial conduziram as mentes a um retorno às reflexões sobre a legitimidade do próprio conteúdo do ordenamento. É neste contexto que impende seja lembrado que, incorporado ao conceito de Constituição, não está apenas a sua tarefa de dar validade ao ordenamento jurídico, mas também a de dar legitimidade.

E a legitimidade do sistema tributário se encontra na segurança jurídica, na capacidade contributiva, em suma, em todos os princípios postos na Constituição Tributária, e em outros que se encontram topograficamente localizados em outras partes da Carta Magna, mas que também guardam íntima relação com a fenomenologia da imposição fiscal. E aqui não se faz menção apenas, por exemplo, aos direitos fundamentais previstos no art. 5º da CF, como é curial, e deveras necessário, fazer-se. Vai-se além. Quer-se lembrar que o sistema tributário deve guardar harmonia com a Constituição inteira, organicamente considerada em seus valores, princípios e regras. Sistema tributário legítimo não é aquele que se mantém fiel apenas à igualdade e à legalidade. Assim o era já durante o Estado de Direito. Não: o Estado Democrático de Direito impõe de forma cogente a adoção de uma tributação sintonizada, por exemplo, com os princípios da Constituição Econômica, ou seja, que não represente entravo à promoção do pleno emprego, que dê tratamento favorecido à pequena empresa, que apóie a promoção do direito ao consumo, principalmente dos gêneros de primeira necessidade, que incremente ao direito ao trabalho, e que todo isto se dê em um contexto de mais absoluta segurança para o contribuinte. Observe-se que os clamores sociais, diuturnamente divulgados pela mídia, são exatamente no sentido da realização dos princípios acima indicados. Ninguém, em um primeiro momento, está preocupado com questões puramente acadêmicas. Todavia, estas são fundamentais no serviço de proceder a uma interpretação do texto constitucional de forma a captar sua essência, alimentando, por conseguinte, uma jurisprudência sólida que efetivamente concretize os valores normativos fundamentais da sociedade. Atento à necessidade de uma compreensão do sistema tributário sintonizada com os corolários do Estado Democrático de Direito, ressalta o professor Werther Botelho SPAGNOL (2002: 18) o seguinte:

"A tributação moderna não está mais adstrita ao orçamento fiscal – ou seja, não é simplesmente um meio de obter recursos para o Estado - e sim constitui, hoje, um dos principais instrumentos de repartição de riqueza e desenvolvimento econômico, tal como alertava Klaus Tipke ao comentar o sistema tributário alemão:

‘O Moderno direito tributário está concebido com uma dupla finalidade, já que não se destina, exclusivamente, à obtenção de recursos. Ao mesmo tempo, procura dirigir a economia e a redistribuição de renda.’

Dessa forma, não se pode conceber o Estado Democrático de Direito dissociado de uma tributação com finalidades amplas, que não se resumam na mera fiscalidade."

Portanto, a segurança jurídica é baluarte do Direito Tributário. Note-se que assim sempre foi, tendo inclusive a declaração francesa de direitos do homem e do cidadão de 1789, em um esforço empreendido no sentido da superação definitiva da insegurança da tributação medieval, previsto, dentre seus dezessete artigos, cláusulas de limitação [6] ao Poder de Tributar. O que se buscava? Segurança. E conquanto seja herança de concepções liberais, o sistema tributário adequado ao princípio do Estado Democrático de Direito a ela deve observância, eis que, como afirma o professor Werther:

"O Presente momento histórico pode ser definido como um período de síntese, em que os ideais de liberdade e igualdade jurídica devem estar legitimados por uma política de orientação social. Em outras palavras, impende resgatar, no Estado de Direito, os ideais liberais assentados sob uma base de igualdade social.

(...)

O Estado Democrático de Direito é, destarte, o corolário de toda uma evolução jurídico-política relativa à organização da sociedade. Procura-se, por meio dele, garantir a liberdade de livre iniciativa econômica (Estado Liberal) em um contexto de igualdade de oportunidades (Estado Social)." (SPAGNOL, 2002: 16-17)

A introdução de leve movimento tipológico na divisão dos tributos em espécies, promovendo a formação de formas mistas, com os prejuízos práticos já indicados acima, posto que não represente a ruína do sistema tributário, do ponto de vista de sua segurança, é indubitavelmente um arranhão que se lhe faz, com evidentes contribuições para a perda de legitimidade do ordenamento fiscal. Pode-se afirmar, inclusive, que a segurança jurídica, como expressão da liberdade, é o fundamento último de qualquer tributação submetida ao Direito, e que a concessão e flexibilização de tal pilar representa, seja na interpretação da lei, seja dentro da própria lei, antes que um ganho, um prejuízo para a sociedade.

Sobre o autor
Luís Fernando Belém Peres

Advogado em Belo Horizonte/MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PERES, Luís Fernando Belém. As espécies mistas previstas na Constituição como elementos sintomáticos da crise de legitimidade do sistema tributário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 397, 8 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5559. Acesso em: 19 dez. 2024.

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