RESUMO
O presente trabalho visa apresentar o fundamento do princípio da boa-fé objetiva, que estabelece deveres de lealdade e honestidade nos negócios jurídicos, o Nemo potest venire contra factum proprium, ao proibir a prática de comportamentos contraditórios que causem prejuízos, é aplicável no direito brasileiro, como forma de equilíbrio entre as partes, apesar de não estar previsto em nosso ordenamento jurídico. Para tanto, utilizou-se do método dedutivo, através da pesquisa doutrinária na seara civilista, bem como consultas na jurisprudência, demonstrando aplicabilidade do citado instituto.
PALAVRAS-CHAVE: boa-fé objetiva, proibição de comportamento contraditório, Direito brasileiro.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. A BOA-FÉ OBJETIVA. 2.1. RELAÇÕES DO DIREITO PRIVADO BRASILEIRO COM A BOA-FÉ. 3. NEMO POTESTOS VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. 3.1 SUPRESSIO. 3.2. SURRESSIO. 3.3. TU QUOQUE. 4. APLICAÇÃO DO NEMO POTESTOS VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM NO DIREITO BRASILEIRO. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Introdução
O princípio da boa-fé objetiva nasce com o surgimento do Estado democrático de Direito, trazendo para as relações contratuais ideais de ética, honestidade e confiança entre aqueles que pretendem pactuar.
No Brasil, o princípio da boa-fé objetiva, primeiramente foi aplicado na lei 8078/90, que é o nosso código de Defesa do Consumidor, diante da necessidade de proteger o hipossuficiente, ou seja, a parte mais fraca da relação de consumo.
O Código Civil de 2002 consagra definitivamente a boa-fé objetiva como princípio estruturante do Direito Privado Brasileiro, impondo às relações contratuais a noção de honestidade e lealdade entre as partes contratantes.
Porém, não basta a previsão expressa de tal princípio no ordenamento jurídico, é necessário viabilizar a sua eficaz aplicação. Faz-se necessário então a utilização de mecanismos jurídicos que venham garantir essa aplicação, sendo um desses mecanismos o Nemo potest venire contra factum proprium.
Como o Nemo potest venire contra factum proprium tem origem germânica, a sua aplicação no Direito Brasileiro não é inequívoca, o que torna imperativo questionarmos se é ou não possível a sua aplicação no direito nacional.
O princípio da boa-fé objetiva reza que as relações jurídicas contratuais, mais do que respeito ao pacta sunt servanda, o qual afirma que o contrato faz lei entre as partes, devem estar pautadas na moral, na ética, na lealdade e na confiança entre as partes que pactuaram.
Com base na proteção do princípio da boa-fé objetiva o instituto alemão supracitado deve sim ser aplicado sempre que houver o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento que fora anteriormente assumido.
Para demonstrar a aplicação de tal instituto o aplicador deve se libertar de uma visão restritiva do direito, pois apesar de se tratar de um instituto alienígena, a sua utilização tem um único propósito de proteger o nosso ordenamento jurídico.
Porém, não basta afirmarmos a real possibilidade de aplicarmos o Nemo potest venire contra factum proprium em nosso País, devemos, pois, trazer argumentos que provem sem deixar sombra de dúvidas essa aplicação.
Primeiramente, deve-se fazer um estudo da boa-fé objetiva, entender a sua aplicação, e verificar as funções que tal princípio exerce no direito brasileiro.
Para que se possa evidenciar a aplicação do nemo potest venire contra factum proprium no ordenamento nacional, devemos explicar sua origem, defini-lo, demonstrar as suas subespécies, assim como verificar as hipóteses de sua incidência no direito brasileiro.
O tema é de grande relevância nos dias atuais, pois, com os avanços tecnológicos pelos quais vem passando a sociedade moderna, fizeram surgir outros meios além dos tradicionais, para celebração de contratos.
Com o advento da internet e do telemarketing, houve um aumento substancial de contratos celebrados a distância, fato este que exige uma maior regulação por parte da máquina jurídica estatal.
1. A BOA-FÉ OBJETIVA
Em termos jurídicos, a primeira vez que se ouviu falar o termo boa-fé foi no Direito Romano, porém a sua aplicação mostrava-se bastante limitada, já que era aplicada apenas em casos nos quais se fazia necessário a proteção da posse, nos negócios contratuais e nas relações de clientela. Tratava-se de boa-fé subjetiva, levando em consideração o estado de consciência do cidadão romano, se ele estava ou não agindo de forma correta.
A boa-fé subjetiva, ainda é de extrema importância no Direito brasileiro, pois é a regra no código civil de 2002, tendo uma ampla aplicação no que tange os direitos reais.
Foi no Direito Germânico que se introduziu o aspecto objetivo da boa-fé quando acrescentado a este instituto palavras como lealdade e confiança inspirados nos ideais cavalheirescos da idade média.
Neste sentido, leciona Judith Martins:
Com efeito, para além das manifestações amorosas, políticas e militares, os ideais cavalheirescos englobados no juramento de honra prendem-se, no direito, a uma questão ética: a garantia da manutenção do cumprimento da palavra dada, garantia esta, contudo, não vinculada a uma perspectiva subjetivista – o olhar sobre a pessoa do garante – mas a uma perspectiva objetiva ligada a confiança geral, estabelecida a nível de comportamento coletivo. (2000, p. 125).
O princípio da boa-fé objetiva nasce de uma nova perspectiva aplicada nas relações contratuais, onde o contrato não é mais auto-suficiente, devendo, portanto, ser analisado de acordo com a realidade social, tendo como meta uma sociedade mais justa.
Neste diapasão, aduz Anderson Schreiber:
Com efeito, ao impor sobre todos um dever de não se comportar de forma lesiva aos interesses e expectativas legítimas despertadas no outro, a tutela da confiança revela-se, em um plano axiológico-normativo, não apenas como principal conteúdo da boa-fé objetiva, mas também como forte expressão da solidariedade social, importante instrumento de reação ao voluntarismo ainda amalgamados no direito privado como um todo. (2007, p. 95).
A definição de boa-fé em seu caráter objetivo varia de acordo com o autor que a concebe, mas o significado não se altera. Então a boa-fé pode ser conceituada como um princípio do Direito que impõe as partes um comportamento adequado a um modelo ético, de confiança e lealdade, com respeito absoluto as expectativas que foram criadas na outra parte, e até mesmo em terceiros, evitando atos abusivos que podem causar danos.
A boa-fé objetiva diverge da boa-fé subjetiva, pois nesta leva-se em consideração o caráter psicológico do agente, quais suas convicções, e as suas verdadeiras intenções ao assinar o contrato. É neste aspecto subjetivo que se pode conferir se a parte agiu com intenções outras, que não seja o normal desenvolvimento de relação contratual, em outras palavras, se agiu com má-fé.
O princípio da boa-fé objetiva não possui apenas um sentido negativo, sentido este que está diretamente ligado a questão da lealdade, objetivando evitar que qualquer das partes use da deslealdade para se beneficiar. Possui também um sentido positivo, ao obrigar os contratantes a atuarem com harmonia, para que o contrato atinja a finalidade originariamente desejada.
A boa-fé objetiva, é o que irá dar as bases para que se possa falar em responsabilidade civil objetiva, pois, entendeu o legislador que a partir do momento em que uma relação de confiança foi estabelecida entre as partes, não há porque se exigir daquele que alega ter sofrido um prejuízo, que prove a culpa ou o dolo do outro agente.
Segundo Elias (2008), a boa-fé objetiva caracteriza-se por uma norma de comportamento leal, principalmente na consideração por interesses alheios. A boa-fé objetiva, então, deve ser compreendida como uma norma de conduta fundamentada na confiança, lealdade e retidão, sendo uma efetiva forma de controle das cláusulas abusivas, acumulando a função de limitar os interesses individuais próprios das celebrações dos contratos.
A boa-fé objetiva exerce funções importantes dentro das relações obrigacionais, sendo tais funções pacificadas na doutrina e na jurisprudência. De acordo com Schreiber (2007), não há qualquer dúvida entre os doutrinadores, ao estabelecerem a boa-fé objetiva três funções fundamentais, sendo elas: a função interpretativa do negócio jurídico, a função acessória a obrigação principal, e por último a função de restringir o exercício de direitos.
A função interpretativa do princípio da boa-fé objetiva pode ser vista como um meio adicional na busca por uma interpretação justa dos negócios jurídicos. Significa que se houver qualquer dúvida ou desacordo a respeito do conteúdo das cláusulas existentes no contrato, e se houver a necessidade do julgador utilizar-se de técnicas de interpretação para resolver a disputa, as cláusulas contratuais deverão ser analisadas sob a luz da boa-fé objetiva.
Ao tratar da função interpretativa da boa-fé objetiva, ensina Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
O magistrado verificará a vontade objetiva do contrato, ou seja, a vontade aparente do negócio jurídico, de acordo com o que as pessoas honestas e leais – do mesmo meio cultural dos contratantes – entenderiam a respeito do significado das cláusulas postas em divergência. ( 2010).
O código civil de 2002 em seu artigo 113 prevê esta função da boa-fé objetiva, ao determinar que os negócios jurídicos serão sempre interpretados levando em consideração a boa-fé e os usos do local onde ocorreu a celebração.
A boa-fé objetiva, na sua função de atribuir ao contrato deveres anexos ou secundários, significa que o contrato não irá produzir apenas aquelas obrigações que constam de forma expressa no mesmo, mas cria também outros deveres.
Esses deveres anexos irão impor às partes uma forma de comportamento voltada a honestidade e a retidão, e tem como fundamento principal evitar que danos possam ser provocados, por essa razão, tais deveres estão implícitos em todas as fases do contrato, e até mesmo após o seu término, já que nada impede que mesmo após o fim daquela relação contratual prejuízos possam ser causados por uma falhas não visíveis a época da vigência contratual. O dever de informação, de cooperação, de sigilo, e o de cuidado são, dentre outros, exemplos desses deveres reflexos.
Desse modo, leciona Carlos Roberto Gonçalves:
Esses deveres anexos ou secundários excedem o dever de prestação e derivam diretamente do princípio da boa-fé objetiva, tais como os deveres laterais de esclarecimento (informações sobre o uso do bem alienado, capacitações e limites), de proteção (como evitar situações de perigo), de conservação (coisa recebida para experiência), de lealdade (não exigir cumprimento de contrato com insuportável perda de equivalência entre as prestações), de cooperação (prática de atos necessários à realização plena dos fins visados pela outra parte). (2014)
O dever de informação surge com o código de defesa do consumidor, que em vários dos seus dispositivos o privilegiou. A título exemplificativo, podemos mencionar o artigo 30, que reza que toda informação e publicidade feita de forma clara, irá gerar obrigação e fará parte, ainda que de forma implícita do contrato.
Outro dever reflexo, que devido a sua importância podemos destacar, é o dever de cuidado, que visa impedir danos a integridade das partes que celebraram o contrato, e danos a terceiros. A integridade que se protege não se restringe a integridade física, a integridade patrimonial também é protegida.
A terceira função deste princípio é a de restringir o exercício de direitos, que está diretamente ligado ao venire contra factum proprium. Significa que se qualquer das pessoas envolvidas no contrato adotar uma determinada postura, não poderá ela agir em contradição a sua conduta original.
Esta função da boa-fé objetiva tem grande importância na questão do abuso de direito, até em nível constitucional o legislador previu a possibilidade de sua ocorrência. O mandado de segurança é uma ação que visa justamente combater o abuso cometido por autoridade pública.
Sobre a função de restringir o exercício de direitos, e ao mesmo tempo nos dando um exemplo da aplicação da boa-fé objetiva na fase pré-contratual, assevera Jorge Cesar Ferreira da Silva:
Foi entendida contra a boa-fé a conduta do sujeito que, antes do nascimento do vínculo (com expressas declarações de vontade), rompe injustificadamente as negociações tão fortemente encabuladas com a outra parte ao ponto de gerar nesta, fundada expectativa na conclusão das negociações. (2002, p.48).
O que se quer evitar com essa função é a mudança de atitude da parte conforme seus interesses, o que poderá causar danos a outra parte, que já tinha criado certas expectativas a respeito daquele negócio jurídico contratual.
A boa- fé objetiva é um princípio que vem legitimar todas as cláusulas contratuais, até mesmo na fase pré-contratual, atingindo, por fim, as conseqüências da aplicação dessas cláusulas, sempre pautadas nos ideais de lealdade, confiança e respeito entre as partes.
É bastante razoável a aplicação da boa-fé objetiva na fase pré-contratual, ou seja, na fase em que acontecem as primeiras tratativas com o intuito de fechar o negócio. Destarte, seria por demasiadamente imprudente firmar um contrato eivado de vícios, posto que um dos contratantes poder-se-ia empregar artifícios que lhe dessem vantagens, prejudicando, assim, a outra parte da relação jurídica. Uma vez chegado a um acordo em relação às cláusulas contratuais, devem, pois, cumpri-las de forma integral.
Já na fase pós-contratual, admite-se a aplicação do princípio da boa-fé, já que as situações acordadas pelas partes, mesmo que o contrato já tenha se aperfeiçoado e sido executado, têm reflexo direto naquilo que fora pactuado anteriormente e principalmente nos efeitos que se pretendeu fossem extraídos das cláusulas contratuais. Assim, qualquer ato despido de boa-fé, que iniba aqueles objetivos e efeitos pretendidos com a avença antes pactuada, terá sua licitude posta em dúvida, podendo gerar o dever de indenizar, mesmo na fase pós-contratual.
A boa-fé objetiva mostra-se como um importante instrumento, na medida em que auxiliará o julgador na busca pela justiça nas relações contratuais. O juiz ao analisar o caso concreto deverá verificar se as partes contratantes, ao pactuarem, direcionaram a sua conduta no sentido da lealdade e honestidade, e, ainda, se essa conduta estabeleceu uma relação de confiança mútua. Se este for o caso, o contrato estará sob a luz do princípio da boa-fé.
Assim, diante do exposto, a boa-fé objetiva tem como finalidade estabelecer entre os contratantes uma relação de honestidade e lealdade, inibindo a prática de atos contraditórios àqueles estabelecidos na relação. A boa-fé objetiva mostra-se como um importante instrumento da tutela da confiança, que é o fundamento do Nemo potest venire contra factun proprium, que será estudado em tópico próprio.
2.1 RELAÇÕES DO DIREITO PRIVADO BRASILEIRO COM A BOA-FÉ:
O uso do termo boa-fé, na realidade, é antigo em nosso ordenamento jurídico, pois já constava tanto do Código Comercial de 1850, quanto do Código Civil de 1916. Contudo, o seu uso não dizia respeito ao caráter objetivo, e sim ao subjetivo onde se analisava a ausência de vícios e da má-fé nas relações jurídicas contratuais.
Antes da publicação do Código Civil de 2002 a Lei 8.078/90, que é o nosso Código de Defesa do Consumidor - CDC, já previa a aplicação da boa-fé nas relações de consumo, mas agora, com uma visão objetiva pautada na lealdade e honestidade entre os contratantes.
Conforme ensina Sérgio Cavalieri:
Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, o termo boa-fé passou a ser utilizado com a nova e moderna significação, para indicar valores éticos que estão à base da sociedade organizada e desempenham função de sistematização da ordem jurídica. É a chamada boa-fé objetiva que, desvinculada das intenções íntimas do sujeito, indica o comportamento objetivamente adequado aos padrões de ética, lealdade, honestidade e colaboração exigíveis nas relações de consumo. (2014).
O legislador estabeleceu de forma expressa a boa-fé como princípio norteador de toda relação contratual. O Código Civil de 2002, em seu art. 422, prescreve que os contratantes devem seguir os princípios da probidade e da boa-fé, tanto na conclusão quanto na execução dos contratos.
A teoria kelseniana do direito, que consagrou a idéia ilustrativa da pirâmide onde no topo está a lei maior, a Constituição Federal, no patamar, logo abaixo, vem as leis ordinárias e complementares, e na sua base as portarias, diretrizes, instruções, estabelece que às normas infraconstitucionais devam se aplicar uma interpretação sempre à luz dos ditames constitucionais, caso contrário, se tornariam inválidas. Dessa forma, deve-se interpretar a boa-fé sempre à luz dos ditames Constitucionais.
Segundo Negreiros (1998) a teoria dos contratos, mais precisamente, as suas mudanças ao longo da história, está diretamente ligada a situação dos indivíduos em determinada época. Sendo assim, ao analisar tais mudanças é imperativo considerar as circunstâncias econômicas, sociais e políticas, no entanto, tais mudanças, que são aplicadas no direito privado, devem ser recepcionadas pela lei maior.
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu art. 1º que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos objetivado pela República Federativa do Brasil, e, em seu art. 3º, determina os objetivos da República, encontrando-se entre eles a redução das desigualdades sociais. Esses, pois, são mandamentos que devem ser seguidos pelo direito privado, já que ele deve estar em consonância com a nossa Carta Magna, refletindo isso, o pensamento de Teresa Negreiros.
Como vimos, a boa-fé objetiva, de forma direta e clara, vem exigir que, ao se realizarem contratos, devam as pessoas demonstrar em seu comportamento, desde a fase inicial até a sua conclusão, um agir baseado na retidão. Assim sendo, evidenciando a lealdade, honestidade e padrão ético que deve orientar as relações contratuais, a fim de gerar confiança e segurança entre as partes envolvidas, quer seja em uma relação de consumo, nos negócios contratuais, nas transações patrimoniais, ou mesmo, nas extracontratuais.
2. NEMO POTEST VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
O princípio nemo potest venire contra fctum proprium, significa a proibição de comportamento contraditório, onde as partes devem agir de acordo com a boa-fé objetiva, seguindo padrões de ética baseados na honestidade e lealdade, e tem como seu principal fundamento a tutela da confiança, pois a conduta inicial produziu na outra parte uma expectativa de que o negócio seguiria como acertado até o fim da relação.
Desta forma, ensina Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro:
venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro- o factum proprium- é, porém, contrariado pelo segundo. Esta fórmula provoca, à partida, reações afectivas que devem ser evitadas.(2007).
A proibição do venire contra factum proprium é um princípio que não está expressamente previsto no ordenamento no ordenamento jurídico, para invocá-lo é necessário verificar no caso concreto se a confiança que se estabeleceu entre as pessoas, foi em algum momento atingido por um ato de deslealdade.
A partir desta ideia, podemos constatar que por não ter uma previsão legal, esta conduta contraria ao que foi anteriormente acertado, é em regra lícita, pois se for ilícita não haverá a necessidade de invocar nemo potest venire contra factum proprium, pois a sua ilicitude o enquadrará em abuso de direito, com previsão legal expressa no Código Civil de 2002, em seu artigo 187.
Em posição contrária ao pensamento acima exposto, Martins (2007), enquadra o venire contra factum proprium na teoria dos atos próprios, ao afirmar que, não é lícito que uma pessoa se utilize de uma prerrogativa sua, se ela agiu de forma contraria a sua conduta anterior.
O nemo potest venire contra factum proprium não tem como objetivo principal preservar o que foi pactuado originalmente, mas sim, proteger a pessoa que depositou todas as suas expectativas na concretização do que foi anteriormente pactuado.
Neste sentido, leciona Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro:
A proibição de venire conta factum proprium representa um modo de exprimir a reprovação por exercícios inadmissíveis de direitos e posições jurídicas. Perante comportamentos contraditórios, a ordem jurídica não visa a manutenção do status gerado pela primeira actuação, que o Direito não reconheceu, mas antes a proteção da pessoa que teve por boa, com justificação, a actuação em causa (2007).
Um problema que se apresenta em relação a proibição do venire contra factum proprium, é da impossibilidade de o Direito regular todas as formas de contradição, pois o homem é por essência um ser contraditório, o que ele deseja em um determinado período da sua vida, não será necessariamente o mesmo desejo em um momento posterior.
Se o Direito tivesse a pretensão de abarcar todas as formas de contradição, estaria na realidade punindo toda a raça humana, pelo simples fato de agirem exatamente como seres humanos.
Neste diapasão, explica Judith Martins:
A proibição de toda e qualquer conduta contraditória seria, mais que uma abstração, um castigo. Estar-se-ia a enrijecer todas as potencialidades da surpresa, do inesperado e do imprevisto na vida humana. Portanto, o que o princípio proibe como contrário ao interesse digno de tutela jurídica é o comportamento contraditório que mine a relação de confiança recíproca minimamente necessária para o bom desenvolvimemto do tráfico negocial. (2007).
Para que se possa utilizar o princípio do nemo potest venire contra factum proprium no caso concreto, é necessário que alguns pressupostos estejam presentes, pois, como a função deste princípio é a proteção da confiança que foi gerada em um negócio jurídico, e esta confiança em nenhum momento foi atingida, não seria lógico invocá-lo, posto que não mereceria a chancela do Direito.
O primeiro pressuposto é o factum proprium, que é a conduta inicial, conduta esta que não tem previsão legal, pois se já houvesse tal proteção, não seria necessário recorrer ao princípio do nemo potest venire contra factum proprium no sentido de tutelar a confiança.
Esta conduta não se enquadra na definição técnica de ato jurídico, pois se houver uma contradição a um ato jurídico, o próprio ordenamento estará prevendo uma responsabilidade obrigacional.
Portanto, podemos chegar a conclusão de que este comportamento inicial só adquire relevância quando gera a confiança de que este comportamento será mantido.
O segundo pressuposto está diretamente ligado ao factum proprium, que é a legítima confiança, significando que não basta o ato que deflagrará o negócio jurídico entre as partes, é necessário que tenha gerado um espírito de confiança entre elas. E essas pessoas que pactuaram, devem ser pessoas que possam discernir a amplitude e as consequências dos seus atos.
É certo que esta legítima confiança, não é algo palpável, que a simples previsão legal tenha o condão de torná-la eficiente, já que não é algo que possa simplesmente ser utilizado indiscriminadamente em todo e qualquer caso.
A sua visualização, depende da aplicação de um princípio que guia os magistrados, que é o do livre convencimento do juiz, pois, só ele, dependendo do caso que se apresenta, terá a capacidade de verificar se essa legítima confiança foi criada.
Outro elemento que deve estar presente para que se possa falar na aplicação do nemo potest venire contra factum proprium, é o ato de contradição ao que foi inicialmente estabelecido.
Segundo Schreiber (2012), esta conduta poderá até ser lícita, que só irá merecer a tutela jurídica, a partir do momento em que esta contradição vá de encontro a confiança que nasceu no relacionamento, e atente contra a boa-fé objetiva.
O último pressuposto necessário para que se possa utilizar o princípio da proibição do comportamento contraditório é o dano, que pode ser efetivo, ou seja, aquele que já foi causado, ou a possibilidade da ocorrência de um prejuízo.
Esse pressuposto é essencial, já que não faria sentido que alguém exercendo o seu direito de ação, mobilizasse toda a máquina estatal, visando uma reparação se nenhum mal lhe foi causado, até porque não estaria presente uma condição da ação que é o interesse de agir.
A aplicação do nemo potest venire contra facum proprium gera dois efeitos, o primeiro e principal deles é impedir que a conduta contraditória seja cometida. O segundo surge, justamente, quando o primeiro é cometido, é a obrigação de reparar o dano causado.
Em relação a consequência de impedimento da conduta contraditória, é correto afirmar que ela tem caráter de prevenção, já que é coerente imaginar que se o dano pode ser evitado, porque esperar que ele aconteça para só então se buscar a reparação.
Nesta linha de pensamento, aduz Anderson Schreiber:
E, de fato, é mais eficiente, sob o ponto de vista da composição de conflitos de interesse e da tutela da confiança, impedir, com anterioridade, o venire contra factum proprium, que impor o posterior ressarcimento dos prejuízos resultantes da conduta incoerente.(2012).
É com esse intuito de primeiramente tentar evitar um dano, que o Direito admite tanto em nível de Direito processual como no âmbito do poder judiciário, o pedido de antecipação de tutela, que se revela como meio eficaz de prevenção, a partir do momento em que a lentidão do judiciário em julgar de forma definitiva as lides, pode ser a causa direta do prejuízo.
A segunda consequência e, por certo, a mais óbvia, é a de reparação do dano causado pela conduta contraditória, a pessoa que foi lesada por esta conduta tem direito a ser indenizada, já que foi vítima de um abuso de direito que feriu a sua confiança.
A responsabilidade civil daquele que cometeu o ato lesivo é objetiva, pois a parte lesada não terá que provar que o outro agiu culposa ou dolosamente, bastando provar que o dano foi causado por essa conduta contraditória, e que feriu a sua legítima confiança.
O princípio do nemo potest venire contra factum proprium, tem força vinculante, pois obriga àqueles que pactuaram a estarem ligados àqueles atos praticados até o momento em que eles não produzam mais efeitos.
As partes estão ligadas por este forte laço, mesmo que o ordenamento jurídico, em nenhum de seus dispositivos exija este efeito de vinculação entre as partes do negócio jurídico.
Uma grande discussão decorre deste efeito vinculante da proibição do comportamento contraditório, e diz respeito a identidade dos sujeitos do ato, pois, poderia se entender de que a proibição só seria aplicada se as condutas forem praticadas por um mesmo sujeito, e atingam um mesmo sujeito, ou seja, apenas aqueles que estão diretamente envolvidos na relação.
Porém, Schreiber (2012), leciona que a confiança que é gerada alcança não apenas as pessoas que por livre e espontânea vontade resolveram criar uma relação contratual entre elas, mas também a terceiros fora da relação contratual.
O autor nos brinda com um exemplo que nos dá a dimensão correta da amplitude da proibição do venire contra factun proprium.
Ele nos dá o exemplo de um fabricante de automóveis que tem por prática trocar os veículos que apresentam defeitos, durante o período de dois anos contados da data de fabricação. Confiando nesta prática reiterada do fabricante, um sujeito compra um carro, que em dois anos apresenta problemas mecânicos graves. E ao procurar o fabricante para que este efetuasse a troca, ele se recusa, sob o argumento de que o contrato só o obriga a efetuar a troca no primeiro ano de fabricação.
Por este exemplo acima citado, podemos concluir que não há necessidade de que o sujeito passivo seja o mesmo. Neste caso o comprador poderia invocar o nemo potest venire contra factum proprium, pois gerou nele também um espírito de confiança, já que ao saber que o fabricante adotava tal prática em vários casos, sentiu-se seguro para efetuar o negócio.
A mesma lógica se aplica no caso do sujeito ativo, ou seja, aquele que pratica a conduta contraditória, este também está coberto pelo nemo potest venire contra vactum proprium.
Vimos que o nemo potest enire contra factun proprium, visa a tutela da confiança, e que possui uma grande amplitude, por esse motivo tal princípio pode ser invocado também a todas as espécies e formas de contradição, sendo utilizado também no caso de supressio, de surressio, e de tu quoque, que passamos a estudar a seguir.
3.1 SUPRESSIO:
O termo supressio decorre da palavra alemã Verwirkung, que na língua portuguesa significa supressão, ou seja, a não possibilidade do exercício de um direito por omissão da parte por um período razoável de tempo.
A respeito do tema assevera Anderson Schreiber:
Na Verwirkung, a inadmissibilidade do exercício do direito vem como conseqüência de ter a conduta omissiva – a inatividade, o retardamento – do titular deste direito gerado em outrem a confiança de que aquele direito não seria mais exercido. O que se tutela é também na versão hoje mais aceita da Verwirkung, a confiança no comportamento coerente daquele que se retardou em fazer valer o seu direito. Trata-se, portanto, de uma subespécie de venire contra factum proprium, caracterizada pelo fato de a conduta inicial ser um comportamento omissivo, um não exercício de uma situação jurídica subjetiva. (2012)
Não se deve confundir o instituto do supressio com a prescrição,que é um prazo legal previsto expressamente no ordenamento jurídico, o que se perde com a prescrição é a pretensão de exigir o direito. Já o que ocorre na supressio, é uma inércia tão grande da parte no exercício de um direito, que exigi-lo posteriormente irá contra as expectativas que foram criadas com a celebração do contrato.
Gagliano e Pamplona Filho (2014), ao tratarem do tema, reconhecem que o instituto da supressio e o da prescrição são bastante semelhantes, porém guardam diferenças fundamentais, pois na prescrição enquanto a perda da pretensão do direito se submete apenas a fluência do prazo legal, no supressio irá depender da verificação no caso concreto de que aquele exercício de direito, tardiamente exigido, não seria mais possível por ferir o princípio da boa-fé.
A despeito do que pensam alguns doutrinadores em relação a autonomia do instituto da supressio, Schreiber (2012), defende que mesmo no caso de conduta omissiva este comportamento irá gerar uma sensação de confiança entre as partes, e que ir de encontro a essa confiança, através de um ato contraditório, é em essência uma espécie de venire contra factum proprium.
3.2 SURRESSIO:
No instituto da surressio, o que ocorre é uma ampliação do conteúdo que foi originalmente pactuada.
Desta forma, leciona Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
Supressio é o fenômeno de perda, supressão de determinada faculdade jurídica pelo decurso do tempo, ao revés da surrectio que se refere ao fenômeno inverso, isto é, o surgimento de uma situação de vantagem para alguém em razão do não exercício por outrem de um determinado direito, cerceada a possibilidade de vir a exercê-lo posteriormente. (2010).
Na lição de Gagliano e Pamplona Filho (2014), na surressio gera-se a exigibilidade de um direito, devido ao comportamento de um dos contratantes que gerou na outra parte uma expectativa que a priori não constava no contrato.
Para se caracterizar como surressio é necessária a passagem de um determinado período de tempo, que irá variar de acordo com o caso concreto. É necessário, também, que no próprio contrato, não conste nenhuma clausula que impeça a configuração do surressio.
3.3 TU QUOQUE:
O tu quoque também reflete um comportamento contraditório, o qual irá colocar uma das partes do negócio jurídico em clara desvantagem.
Este instituto guarda uma relação direta com a expressão muito utilizada no meio jurídico, que afirma “que ninguém poderá se beneficiar alegando sua própria torpeza”.
Basicamente, o tu quoque significa que se alguém, ou melhor, se uma das partes que celebrarem o contrato, violar uma determinada norma jurídica, não poderá ela depois querer se beneficiar juridicamente invocando, justamente, esta mesma norma que não respeitou.
Conforme leciona Elias (2008), o tu quoque não reflete apenas no âmbito da boa-fé objetiva, na medida em que busca evitar que a parte que cometeu o erro se beneficie dele, mas também na questão da justiça contratual, visando restabelecer o equilíbrio entre as obrigações.
O código civil de 2002, em alguns artigos, prevê tal situação. O artigo 150, por exemplo, afirma que se as partes agirem dolosamente, elas não poderão alegar este ato visando anular o negócio ou buscar indenização. O artigo 180 é outro exemplo da aplicação do tu quoque na Legislação Civilista Brasileira, o qual afirma que o menor impúbere, aquele entre 16 e 18 anos, não poderá livrar-se da obrigação invocando a sua idade, se de forma premeditada a ocultou ou declarou-se maior de idade quando da prática do ato jurídico.
Como acontece em relação a supressio, Schreiber (2012), refuta a teoria de alguns doutrinadores que afirmam que o tu quoque teria uma função mais punitiva do que propriamente um caráter de tutela da confiança, assim sendo, descaracterizaria o tu quoque como uma subespécie de venire contra factum proprium. O autor defende a sua posição afirmando que o tu quoque como proteção da confiança, estará mais de acordo com as preocupações sociais que emergiram com o surgimento do estado democrático de direito e do Estado Social, deixando claro, desta forma, que apesar da opinião revés de renomados autores, o tu quoque é sim uma subespécie de venire contra factum proprium.
3. Aplicação do nemo potest venire contra factum proprium no Direito brasileiro.
Para que se possa afirmar sem deixar sombra de dúvidas, ou margem para possíveis questionamentos a respeito da possibilidade da aplicação do nemo potest venire contra factum proprium no Direito brasileiro, é imperativo apresentar de forma clara os fundamentos que corroboram com tal afirmação.
É inequívoco que tais fundamentos existem, e não só aqueles já positivados pelo Direito, ou seja, aqueles que podemos encontrar em nosso ordenamento jurídico, encontraremos alicerces também na área da Filosofia e na Teoria Geral do Direito.
Para que qualquer estudo na área do Direito seja válido e respeitado, faz-se mister inciar com bases constitucionais, pois, por ser a expressão máxima de um ordenamento jurídico, todos os outros ramos do Direito devem estar sob sua orientação, e nenhuma discussão a respeito do Direito será relevante se não seguir os ditames da carta suprema.
Como já foi abordado em tópico anterior o princípio do nemo potest venire contra factum proprium, surge como um instrumento que tem por finalidade equilibrar as relações entre os indivíduos.
Busca proteger aqueles que por estarem em uma camada social menos privilegiada, ou em situação de desvantagem em uma relação jurídica, mostram-se fragilizadas, e tal instituto é m meio apto para disseminar a justiça social.
A nossa Constituição Federal de 1988 consagrou em seu artigo terceiro, inciso I, que é objetivo primordial da República a contrução de uma sociedade justa pautada na solidariedade social.
Assim, com esteio na lição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
De mais a mais, é preciso observar que a solidariedade social, contemplada no artigo terceiro da carta constitucional, apresenta-se, por igual, como fundamento da proibição do comportamento contraditório por impor o respeito e consideração aos interesses de terceiros, impedindo comportamentos egoísticos.(2010).
O nemo potest venire contra factum proprium, foi idealizado justamente com a função de promover esta solidariedade social, na medida que ao proibir a prática de um comportamento contraditório àqueles que se espera de uma pessoa honesta, e que pode causar danos, muitas vezes irreparáveis, revelou-se como importante mecanismo para concretizar este ideal de soldariedade.
Trazendo a discussão para o Direito privado, devemos focar as nossas atenções no Código Civil de 2002, que é a norma principal no que diz respeitp as relações entre particulares.
Se fizermos uma interpretação literal dos artigos do Código Civil, seria extremamente difícil chegamos a uma conclusão a respeito da possibilidade da proibição do venire contra factum proprium, pois o CC/02 comete justamente o que o nemo potest venire contra factum proprium visa cmbater, que são posições contraditórias.
O código em várias diposições proibe o comportamento contraditório, enquanto em outros não só permite como parece incentivar.
O artigo 476, acena com a possibilidade da aplicação do nemo potest venire contra factum proprium, ao vedar aos contratantes, que qualquer das partes possa exigir do outro o cumprimento da obrigação, se ele mesmo não adimpliu a sua. É a teoria do exceptio non adimpleti contractus.
Da mesma forma podemos citar o artigo 491 do CC/02, que regula a compra e venda, e expressamente prevê que o vendedor não está obrigado a entregar a coisa, se o comprador ainda nào pagou.
A respeito do conteúdo desses artigos, aduz Anderson Schreiber:
Em todas essas normas específicas, apesar das inúmeras diferenças entre elas, pode-se vislumbrar uma preocupação subjacente comum em evitar as consequências de uma inesperada mudança de comportamento, de uma incoerência, de uma contradição com uma conduta anterior adotada pela mesma pessoa. Seria possível falar, assim, em um princípio implícito de proibição ao venire contra factum proprium.(2012).
Em posição contrária, ou seja, acenando com a possibilidade de cometer atos contraditórios, temos os artigos 428 e 1.969, que permite que a pessoa que fez uma proposta para a celebração de um contrato, possa desistir caso se retrate em tempo hábil, e permite a revogação do testamento respectivamente.
Assim leciona Anderson Schreiber:
Como se vê, também aqui as hipóteses contempladas são diversasentre si, mas, de uma análise semelhantea que se fez anteriormente, podemos concluir que o legislador, nestes e em outros casos, autoriza expressamente o venir contra factum proprium, a contradição a próprio comportamento.(2012)
Diante da dúvida gerada pela possibilidade ou não da aplicação do nemo potest venire contra factum proprium nas relações contratuais, o próprio Código Civil de 2002 nos oferece uma resposta definitiva. O artigo 422, diz que os contratantes são obrigados a seguir em qualquer fase do contrato a boa-fé e a probidade.
A própria lei de introdução ao código civil em seu artigo quarto, prevê a utilização dos princípios gerais do Direito, e por certo que a boa-fé objetiva assim como o nemo potest venire contra factum proprium, exercem a função de auxiliar o juiz em suas decisões.
A esse respeito Reale (2000), ao atribuir a boa-fé objetiva, e consequentemente ao nemo potest venire contra factum proprium caráter de princípio geral do Direito, ou seja, uma premissa lógica que ajuda a entender a ciência jurídica passando a integrá-la, não deixa dúvida a respeito de sua utilização.
É o nemo potest venire contra factun proprium atuando com o objetivo de proteger a boa-fé objetiva na sua função interpretativa, auxiliando o juiz na busca por decisões que venham contemplar a justiça.
O mesmo autor esclarece sobre a utilização do nemo potest venire contra factum proprium, com a sua função de proteger a boa-fé objetiva no Direito nacional, o afirmar que em um mundo globalizado é insustentável ter um ordenamento jurídico preso a limites territoriais, pois, mesmo países com realidades diferentes devem comparitlhar suas soluções jurídicas.
Com essa mesma linha de raciocínio, porém se referindo a antiga lei de introdução ao código civil, assevera Carlos Maximiliano:
O artigo sétimo da LICC, abrange não só as idéias básicas da legislação nacional, mas também os princípios filosóficos, fundamentais do Direito sem distinção de fronteiras. Emboraavance passo a passo, justamente receoso das generalizações preciptadas e trenhes de perigos, o executor da lei poderá afinal atingir a universalidade da ciência jurídica. As perquerições não se restringem a órbita do Direito positivo.(2007).
Portanto é inadmissível imaginar um ordenamento jurídico auto-suficiemte, já que nenhum é completo o bastante para cobrir todas as situações do cotidiano das pessoas.
No Direito brasileiro a proibição ao comportamento contraditório, e a consequente utilização do nemo potest venire contra factim proprium, tem-se demonstrado ampla e irrestrita, atingindo todas as áreas do Direito. A jurisprudência dos nossos tribunais tem contemplado tal aplicação.
Nas relações de consumo, a aplicação do nemo potest venire contra factum proprium, é ainda mais importante, a situação de hipossuficiência do consumidor impõe por parte do Estado uma maior proteção.
A boa-fé objetiva, que primeiro figurou em nosso ordenamento jurídico com o surgimento do Código de Defesa do Consumidor, devido a sua importância, revela-se como contra-peso, equilibrando as relações entre consumidores e fornecedores.
Ao falar sobre a importância da boa-fé objetiva em seu livro programa de direito do consumidor, leciona Cavalieri Filho:
Se no plano constitucional o princípio da dignidade da pessoa humana é o mais importante, tanto assim que consagrado como um dos fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito, no plano infraconstitucional esse papel cabe ao princípio da boa-fé. (2014).
A boa-fé em seu contorno objetivo, foi previsto expressamente em dois artigos do Código de Defesa do Consumidor. O artigo 4º prevendo justamente o equilíbrio nas relações de consumo. E o artigo 51, que proíbe o estabelecimento no contrato de cláusulas abusivas.
Aqui, vemos a boa-fé objetiva exercendo visivelmente as suas três funções. Os deveres anexos, próprios das relações de consumo, dever de informação, de segurança, de cuidado, entre outros.
A função interpretativa direcionada ao juiz e a função de evitar abusos, são fundamentos óbvios para a aplicação inconteste do mesmo potest venire contra factum proprium nas relações de consumo.
O tribunal de Justiça do Rio de Janeiro no processo número (2009/0151461-0) definiu de forma clara, a aplicação do nemo potest venire contra factum proprium. Assim:
Direito do consumidor. Responsabilidade Civil. Furto de motocicleta estacionada no lado externo do banco. Sentença de improcedência. Apelação cível. Pedido de reforma de sentença. Motocicleta do apelante furtada em frente a agência bancária do apelado, durante o periodo em que o primeiro realizava movimentções financeiras. Percebe-se que a motocicleta estava estacionada dentro da área de segurança da apelada. Aplica-se a teoria da venire contra factum proprium, pois a apelada está realizando um comportamento contraditório que frustra a expectativa de confiança do consumidor que estaciona o veículo dentro de suas dependências. Violaçao da boa-fé objetiva e seus deveres anexos de informação, cooperação e proteção.
Diante deste acórdão, podemos mais uma vez concluir, que a proibição do comportamento contraditório está enraizada em nossos tribunais, quando a lide diz respeito a relação de consumo.
Portanto, sem haver qualquer possibilidade de questionamentos, o nosso poder judiciário, seja na primeira ou na segunda instância, e até mesmo os nossos tribunais superiores, tem consagrado a utilização do nemo potest venire contra factum proprium, com o objetivo de auxiliá-los na eterna busca pro decisões que venham contemplar a justiça.
4. Considerações finais.
O Direito deve acompanhar a evolução da sociedade, como forma de torná-la mais justa e igualitária, por isso, meios devem ser criados para que os juízes possam colocar em prática este ideal de justiça.
A Constituição Federal de 1988, com sua preocupação dispensada à dignidade da pessoa humana, inaugura uma nova visão de justiça social. O código civil de 2002, segue essas diretrizes impostas pela carta magna, e antes dele o código de defesa do consumidor.
O princípio da boa-fé objetiva é um princípio apto a espalhar por toda a sociedade esse ideal, sendo aplicado diretamente dentro das relações privadas, protegendo até mesmo aqueles que não se encontram diretamente ligados a esta relação.
O nemo potest venire contra factum proprium, que tem como fundamento a boa-fé objetiva, pois, visa a tutela da confiança, que é gerada entre as pessoas, ao proibir comportamentos contraditórios entre si, transporta para a vida prática a supremacia da ética, da moral e da lealdade.
Este instituto germânico tem-se mostrado como uma importante arma, que é utilizada pelo judiciário como forma de estabelecer comportamentos que estejam de acordo com a ética que deve imperar dentro das relações jurídicas.
As jurisprudências citadas neste estudo, além da opinião de ilustres doutrinadores, comprovam que não há limites para utilização do nemo potest venire contra factum proprium no nosso Direito.
Conclui-se, então, que quando se trata de fazer justiça, trazendo equilíbrio ao sistema, o Direito deve se libertar do positivismo nacionalista, e utilizar-se do que for possível juridicamente para transformar uma sociedade que historicamente sempre privilegiou as classes dominantes, em uma sociedade verdadeiramente justa e equilibrada socialmente.
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