A sociedade moderna se caracteriza por uma profunda alteração no quadro dos direitos e na sua forma de atuação. De um lado, verifica-se a modificação substancial no perfil dos direitos desde sempre conhecidos, que assumem contornos completamente renovados, e, de outro, a ampliação do próprio rol dos direitos, reconhecendo-se uma série de novos deles, tipicamente vinculados à sociedade de consumo e à economia de massa, padronizada e globalizada. Estes últimos costumam ser tratados como direitos de terceira geração, os quais são ditos de solidariedade e marcados por sua “transindividualidade”, pertencendo não mais apenas ao indivíduo, considerado como tal, mas sim a toda a coletividade. O surgimento dessa nova categoria de direitos – assim como o novo perfil atribuído a direitos antigos determinou em outra frente – exigiu a adaptação do Direito Processual Civil aos “novos conflitos”, para que então pudesse oferecer respostas adequadas às necessidades advindas da sociedade contemporânea (MARINONI; ARENHART, 2003, p. 749).
O estudo dos interesses supraindividuais surgiu e floresceu na Itália, na década de 1970. Denti, Cappelletti, Proto Pisani, Vigoriti e Trocker anteciparam o Congresso de Pavia de 1974, que discutiu seus aspectos fundamentais, destacando com precisão as características que os distinguem: indeterminados pela titularidade, indivisíveis com relação ao objeto, colocados a meio caminho entre os interesses públicos e os privados, próprios de uma sociedade de massa e resultado de conflitos de massa, carregados de relevância política e capazes de transformar conceitos jurídicos estratificados, como a responsabilidade civil pelos danos causados no lugar da responsabilidade civil pelos prejuízos sofridos, como a legitimação, a coisa julgada, os poderes e a responsabilidade do juiz e do Ministério Público e o próprio sentido da jurisdição, da ação e do processo. Em pouco tempo, tornou-se clara a dimensão social desses interesses. Surgia uma nova categoria política e jurídica, estranha ao interesse público e ao privado. O primeiro, entendido como aquele que se faz valer em relação ao Estado, de que todos os cidadãos são partícipes (interesse à ordem pública, à segurança pública, à educação) e que suscita conflitos entre o indivíduo e o Estado. O último, de que é titular cada pessoa individualmente considerada, na dimensão clássica dos direitos subjetivos, pelo estabelecimento de uma relação jurídica entre credor e devedor, claramente identificados. Ao contrário, os interesses sociais são comuns a um conjunto de pessoas, e somente a estas. Interesses espalhados e informais à tutela de necessidades coletivas, sinteticamente referíveis à qualidade de vida. Interesses de massa, que comportam ofensas de massa e que colocam em contraste grupos, categorias ou classes de pessoas. Não mais se trata de um feixe de linhas paralelas, mas de um leque de linhas que convergem para um objeto comum e indivisível. Aqui se inserem os interesses dos consumidores, ao meio ambiente equilibrado, dos usuários de serviços públicos, dos investidores, dos beneficiários da Previdência Social e de todos aqueles que integram uma comunidade, compartilhando suas necessidades e seus anseios (GRINOVER, 2000, p. 9).
A necessidade de estar o direito subjetivo sempre referido a um titular determinado, ou ao menos determinável, impediu por muito tempo que os interesses pertinentes a toda uma coletividade e a cada um dos membros dela pudessem ser havidos por juridicamente passíveis de proteção. Era a estreiteza da concepção tradicional do direito subjetivo, marcada profundamente pelo liberalismo individualista, que obstava essa tutela jurídica. A distinção doutrinária que veio sendo feita entre interesses simples e interesses legítimos permitiu um pequeno avanço, com a outorga de tutela jurídica a estes últimos. Hoje, com a concepção mais larga do direito subjetivo, abrangente também do que outrora se tinha como mero interesse na ótica individualista então predominante, ampliou-se o espectro de proteção jurídica e jurisdicional. Agora, é a própria Constituição Federal que, seguindo a evolução da doutrina e da jurisprudência, usa os termos “interesses” (art. 5º, inciso LXX, alínea b) e “direitos e interesses coletivos” (art. 129, inciso III) como categorias amparadas pelo Direito. Essa evolução é reforçada, no plano doutrinário, pela tendência bastante acentuada de se interpretarem as disposições constitucionais, na medida do possível, como atributivas de direitos, e não como singelas metas programáticas ou enunciações de intenções. E, no plano legislativo, com a edição de leis ordinárias que procuram amparar tanto os interesses como os direitos, como a que disciplina a ação civil pública (Lei n. 7.347/1985), está definitivamente consolidada a evolução (WATANABE, 2001, p. 740).
Com efeito, a concepção tradicional de relação jurídica enfoca o Direito como uma forma de proteger direitos subjetivos individuais, tendo sido o supedâneo para o desenvolvimento de todo o Direito Processual Civil moderno. Essa circunstância tem levado a inúmeros problemas relativamente às ações coletivas, pois, quando se trata de tutela jurisdicional coletiva, aquela concepção é absolutamente inadequada para enfrentar as questões existentes, o que induz, consequentemente, a inadequação dos conceitos e institutos processuais tradicionais para solucionar os litígios de índole coletiva. Com a sociedade de massa, é necessária outra perspectiva para encarar as situações jurídicas, em que a preocupação não é propriamente estabelecer normas que protejam os direitos subjetivos de pessoas individualizadas, mas sim que preservem certos bens ou valores que interessam a um grupo (determinado ou indeterminado) de pessoas, estatuindo deveres jurídicos de respeito a esses bens ou valores e conferindo a entes da sociedade o poder de acionar a jurisdição para fazer cumprir tais deveres. Nessa ótica, não se têm em vista os direitos subjetivos individuais das pessoas envolvidas, embora ela não os exclua. Ao contrário, as duas perspectivas convivem, como dois mecanismos que se dedicam a um mesmo fenômeno, porém tentando controlá-lo com ferramentas diferentes e de eficácia diversa. Uma visa a proteger os direitos subjetivos, tutelando-os individualmente; a outra objetiva preservar interesses do grupo social mediante a imposição de deveres jurídicos gerais de abstenção de condutas que violem tais interesses. Esta última encara a situação jurídica de forma objetiva e coletiva (BELINETTI, 2000, p. 125-126).
Além da necessidade de um modelo processual civil apto a dar conta desses direitos transindividuais, percebeu-se que ele também deveria se voltar aos direitos que podem ser lesados em face dos conflitos próprios à sociedade de massa. A sociedade moderna abre oportunidade a situações em que certas atividades podem trazer prejuízo aos interesses de grande número de pessoas, fazendo surgir problemas antes ignorados nas demandas individuais. O risco de tais lesões, que afetam simultaneamente inúmeros indivíduos ou categorias inteiras de pessoas, constitui fenômeno cada vez mais amplo e frequente na sociedade contemporânea, visto que, se ela é caracterizada por ser de produção e consumo de massa, é natural que passem a surgir conflitos de massa e que os processualistas estejam cada vez mais preocupados em configurar um adequado “processo civil coletivo” para tutelar tais controvérsias emergentes (MARINONI; ARENHART, 2003, p. 749-750).
Esse “processo”, embora fundamental, é bastante complexo. Em primeiro lugar porque, tratando-se de direitos transindividuais, a legitimação para a causa, tradicionalmente fundada na “titularidade” do direito invocado, deve ser pensada de forma diversa, uma vez que, como é óbvio, não é possível dizer que uma pessoa determinada é “titular” do direito à higidez do meio ambiente (por exemplo), o que também exige outra maneira de se compreender a coisa julgada material, pois a eventual sentença de tutela desses direitos certamente beneficiará a coletividade, e não mais ficará limitada, como acontece em demandas individuais, aos “titulares” do direito em litígio. De se observar ainda que, no caso de lesões em massa, o prejuízo patrimonial sofrido por cada um dos indivíduos da coletividade é, via de regra, pequeno, podendo não justificar, em certa conjuntura (tempo, despesas com advogado e custas processuais), a busca pelo Poder Judiciário. Contudo, esses fatores, embora graves, não podiam impedir a configuração de um efetivo “processo civil coletivo”. Assim, era imprescindível que se concebessem mecanismos adequados de proteção das situações de direito substancial inerentes à sociedade contemporânea, sob pena de se eliminar do sistema a própria categoria dos “novos direitos” (MARINONI; ARENHART, 2003, p. 750).
Foi nesse contexto que se delinearam as chamadas ações coletivas, com base nas class actions surgidas na Inglaterra medieval (em especial, a Bill of Peace) e desenvolvidas no Direito norteamericano do século XIX. Trata-se de instrumentos especificamente destinados à proteção dos direitos transindividuais, bem como dos direitos individuais que podem ser lesados em massa, contando com várias características peculiares, que os fazem radicalmente distintos dos atinentes à tutela individual (e de toda a filosofia que a inspira). É preciso, por conseguinte, para bem operar com as ações coletivas, despir-se de velhos preconceitos (ou “pré-conceitos”), evitando recorrer a raciocínios aplicáveis apenas à tutela individual para solucionar questões respeitantes à tutela coletiva. Os institutos que presidem a primeira, ao menos em sua grande maioria, são incompatíveis e inaplicáveis à última, simplesmente porque concebidos para operarem em outro ambiente (MARINONI; ARENHART, 2003, p. 751).
Conquanto de forma tímida, a ação popular, regida pela Lei n. 4.717/1965, foi o primeiro instrumento moderno para a tutela jurisdicional dos interesses difusos no ordenamento jurídico brasileiro. Sua abrangência foi alargada pelo art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal de 1988, diante da inclusão do meio ambiente como direito tutelável por essa via, bem como ficou explícita a possibilidade de defesa da moralidade pública também por meio dela. Para promover a ação popular somente está legitimado o cidadão, isto é, o eleitor que se encontra no gozo dos direitos políticos, com plena capacidade política ativa (NERY JR.; NERY, 1999, p. 1504).
Contornando as insuficiências da ação popular, sobreveio em 1985 a Lei n. 7.347, conhecida como Lei da Ação Civil Pública, que inicialmente regulava apenas as demandas tendentes à tutela do meio ambiente, do consumidor e de bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, mas que atualmente, em face de alterações introduzidas em seu art. 1º., pode ser utilizada para a defesa de qualquer interesse difuso ou coletivo, inclusive por infração à ordem econômica. A esse diploma legal se agregou o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990), passando a formarem um sistema integrado. Isto porque o CDC, em seu art. 90, determina a aplicação, às ações ajuizadas com base nele, das regras insculpidas na Lei da Ação Civil Pública e no Código de Processo Civil, naquilo que forem compatíveis, ao passo que, por outro lado, o art. 21 da LACP estatui serem aplicáveis, às ações por esta disciplinadas, as disposições processuais existentes no CDC. O sistema de proteção dos direitos transindividuais é complementado por leis esparsas, relativas a situações específicas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990, artigos 208 e seguintes) (MARINONI; ARENHART, 2003, p. 752-753).
O Código de Defesa do Consumidor procurou disciplinar mais pormenorizadamente as demandas coletivas, por vários motivos. Primeiramente, em vista da história e da experiência mais recentes de nosso Direito no campo delas, tal qual ressaltado acima. O legislador claramente percebeu que, na solução dos conflitos que nascem das relações geradas pela economia de massa, quando essencialmente de natureza coletiva, o processo deve operar também como instrumento de mediação dos conflitos sociais neles envolvidos, e não apenas de resolução de lides. A estratégia tradicional de tratamento das disputas tem sido de fragmentar os conflitos de configuração essencialmente coletiva em demandas-átomo. Já a solução dos conflitos na dimensão molecular, por intermédio de demandas coletivas, além de permitir o acesso mais fácil à justiça, pelo seu barateamento e quebra de barreiras socioculturais, tende a evitar a sua banalização, que decorre da fragmentação, e a conferir peso político mais adequado às ações destinadas à solução desses conflitos coletivos (WATANABE, 2001, p. 729).
REFERÊNCIAS
BELINETTI, Luiz Fernando. Ações coletivas – um tema a ser ainda enfrentado na reforma do processo civil brasileiro – A relação jurídica e as condições da ação nos interesses coletivos. Revista de Processo, São Paulo, v. 25, n. 98, 2000.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Significado social, político e jurídico da tutela dos interesses difusos. Revista de Processo, São Paulo, v. 25, n. 97, p. 9-15, jan. 2000.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil comentado: e legislação processual civil extravagante em vigor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
WATANABE, Kazuo. Disposições gerais. In: ______ et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. tít. III, cap. 1, p. 722-784.