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Lei 10.050/2000: direito real de habitação.

O novo §3º do artigo 1611 do Código Civil

Agenda 01/02/2001 às 00:00

1. Introdução.

No dia 14 de novembro de 2000, foi sancionada, pelo Excelentíssimo Presidente da República, a Lei nº 10.050/00 que acrescentou novo parágrafo ao artigo 1611 do Código Civil.

O artigo 1611 do Código Civil, antes da lei em questão, tinha o seguinte teor:

"Art. 1611. À falta de descentes ou ascendentes será deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente, se, ao tempo da morte do outro, não estava dissolvida a sociedade conjugal.

§1o . O cônjuge viúvo, se o regime de bens do casamento não era o da comunhão universal, terá direito, enquanto durar a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houver filhos, deste ou do casal, e à metade, se não houver filhos embora sobrevivem ascendentes do de cujus.

§2o. Ao cônjuge sobrevivente, casado sob o regime de comunhão universal, enquanto viver e permanecer viúvo, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar."

Com a vigência da nova lei, foi acrescentado o seguinte parágrafo que tomou o número de terceiro.

"§3o. Na falta do pai ou da mãe, estende-se o benefício previsto no §2o ao filho portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho."

O objetivo do presente trabalho é interpretar o conteúdo deste novo parágrafo do art. 1611 do Código Civil e concluir a possibilidade de sua aplicação, diante da Constituição da República.


2. A finalidade do direito real de habitação.

Oriundo do direito romano, no qual era considerado direito pessoal, o direito real de habitação está previsto a partir do art. 746 do Código Civil. É um direito real que limita o titular (habitador) a usar o bem (casa alheia) com a exclusiva finalidade de sua moradia e de sua família (1). Na definição de Orlando Gomes (2), "o direito real de habitação é o uso gratuito de casa de morada". É um direito personalíssimo (inalienável) que não admite transferência de titularidade e que tem finalidade certa, pois o titular não pode utilizar a coisa para fim diverso da moradia.

Ao direito real de habitação é aplicável, no que couber, o previsto para o direito real de usufruto, por expressa determinação do art. 748 do Código Civil. Por esta razão, pode-se sustentar que o direito real de habitação tem a mesma finalidade do direito real de usufruto, qual seja, beneficiar alguém, garantindo-lhe o mínimo para sua subsistência que é gratuitamente morar em imóvel alheio. O direito real tem função assistencial, alimentar.

Esta é a opinião, dentre outros, de Clóvis Beviláqua (3) Orlando Gomes (4), Darcy Bessone (5) e Maria Helena Diniz (6).


3. O direito real de habitação previsto no § 2o do artigo 1611 do Código Civil.

O artigo 1611 disciplina o direito sucessório do cônjuge sobrevivente, por ocasião da morte de seu consorte.

Inicialmente, quando o Código Civil foi publicado, o art. 1611 não tinha os §§ 1o e 2o (7), tendo a inclusão ocorrido com o advento da Lei nº 4.121/62 – chamada de Estatuto da Mulher Casada. Assim, antes do acréscimo advindo, o único direito sucessório do cônjuge sobrevivente (desde que vigente a sociedade conjugal) era ser chamado a suceder na herança, na falta de descendentes e ascendentes. Nessa época, entendia-se que a lei deveria ser mais generosa com o cônjuge sobrevivente e, por isso, foram bem recebidos os parágrafos trazidos pelo Estatuto.

Os §§ 1o e 2o do art. 1611 do Código Civil trouxeram maior proteção para o cônjuge, prevendo direitos concorrentes com a existência de descendentes ou ascendentes.

O primeiro direito, cabível quando o regime de bens do casamento não é o da comunhão universal, é o chamado usufruto vidual. Este usufruto é condicional e temporário, entendendo muitos autores que sua natureza jurídica é de legado ex lege. Está previsto no § 1o do art. 1611 do Código Civil. Em que pesem as diversas controvérsias doutrinárias oriundas desse parágrafo, não podem ser apreciadas aqui em tão breve trabalho, inclusive porque nos afastaríamos do tema que pretendemos discutir.

O segundo direito, cabível quando o regime de bens do casamento é o da comunhão universal (8), é o chamado direito real de habitação que tem por objeto o imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único direito dessa natureza a inventariar. É um direito vitalício (pois termina com a morte do beneficiário), personalíssimo (pois é intransferível) e condicional (pois extinto pleno iure com o fim da viuvez) (9). Está previsto no § 2o do art. 1611 do Código Civil.

Autores, como Caio Mário da Silva Pereira (10), criticam a interpretação literal do parágrafo acima, pois "pode ser deturpado nos seus objetivos, como no caso do monte compreender volume considerável de bens de outra natureza, e se atribuir ao viúvo ponderável fortuna, e ao mesmo tempo o direito real de habitação sobre a casa de residência, em detrimento dos herdeiros. É totalmente gravoso se for o único imóvel do espólio".

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De fato.

Como a morte põe termo ao casamento e, logo, a seus efeitos, é extinto o regime de bens e o cônjuge sobrevivente tem direito de meação. Além, pelo § 2o do art. 1611 do Código Civil, tem o direito real de habitação.

Se por ventura o cônjuge sobrevivente for herdeiro testamentário ou legatário (11), não perderá seu direito real de habitação.

Terá, também, o direito real de habitação, ainda que no acervo hereditário exista grande quantidade de bens móveis. Desde que haja apenas um imóvel e sirva de residência, subsistirá o direito.

O direito só fica prejudicado se, existindo no acervo hereditário mais de um bem imóvel, mais de um imóvel servir de residência.

Como o direito real de habitação recai sobre bem imóvel, sua constituição decorre de registro (art. 676 Código Civil).

Deve ser destacado que o direito real de habitação era instituto em evidente desuso, tendo sua previsão como direito hereditário para o cônjuge sobrevivente reacendido, de certo modo, sua importância. Quando o legislador o instituiu como direito sucessório do cônjuge sobrevivente, o fez visando o fim próprio do direito real de habitação que é amparar, proteger.


4. As dúvidas oriundas da redação do § 3o do art. 1611 do Código Civil.

A) O novo direito sucessório.

O novo parágrafo do art. 1611 do Código Civil criou um novo direito sucessório decorrente da sucessão legítima para o filho, quando for aberta a sucessão de seu pai ou de sua mãe.

É um direito sucessório do filho, pois a palavra "falta" usada pelo novo parágrafo deve ser interpretada como "morte".

Trata-se de direito sucessório decorrente da sucessão legítima, pois o novo parágrafo foi colocado no art. 1611 do Código Civil que está inserido no Capítulo I do Titulo II do Livro IV do Código Civil e que rege a ordem da vocação hereditária da sucessão legítima.

Este direito sucessório será recebido pelo filho, quando for aberta a sucessão de seu pai ou de sua mãe, pois a redação prevê "falta do pai ou da mãe".

B) O titular do direito real de habitação.

A redação do § 3o do art. 1611 não é clara e suscita algumas dúvidas.

A primeira dúvida é sobre a titularidade do direito real de habitação.

Inicialmente, pareceu que o titular do direito real de habitação é o cônjuge sobrevivente, mesmo quando o de cujus deixar filho portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho. A razão desse entendimento é que o § 2o do art. 1611 do Código Civil já estabelecia o direito real de habitação para o cônjuge sobrevivente (14) e ele podia receber esse direito mesmo quando havia filhos sucedendo no direito real de propriedade. Por isso, pareceu que o novo § 3o quis conceder este direito real de habitação ao filho portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho, apenas quando o falecido não deixar cônjuge sobrevivente.

Sustentando a idéia de que a titularidade inicial é do cônjuge sobrevivente, é lógico que se esse não preencher os requisitos para receber o direito, esse será deferido àquele filho. Tal hipótese ocorreria se, morrendo o pai e deixando cônjuge sobrevivente, fossem casados pelo regime da comunhão parcial.

Todavia, o filho não sucederá se o cônjuge sobrevivente receber o direito e, posteriormente, vier a perdê-lo, pois, por exemplo, contraiu novas núpcias. A única hipótese em que a lei admitiu ordem sucessiva de beneficiários na sucessão foi no instituto do fideicomisso. Como este instituto é afeto à sucessão testamentária e o art. 1611 do Código Civil está no contexto da sucessão legítima, não poderíamos aplicar a sucessividade. Até porque, tal hipótese ocorrendo, traria um novo gravame para a legítima dos herdeiros necessários – que entendemos só pode receber os previstos no art. 1723 do Código Civil.

Mas, após certa reflexão, concluímos que o novo parágrafo conferiu o direito real de habitação ao filho portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho junto com o cônjuge sobrevivente, ou seja, de modo simultâneo.

Se considerarmos o significado da palavra "estende-se", a interpretação que emerge é essa. O novo parágrafo contempla um direito sucessório para o filho portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho, porém, para recebê-lo, não é necessário que inexista o cônjuge sobrevivente. Como "estender" significa "ampliar", parece que, falecendo o pai ou a mãe, o filho receberá a propriedade como direito sucessório e, se for portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho, receberá, junto com o cônjuge sobrevivente, o direito real de habitação, como outro direito sucessório.

Recebendo ambos, extinguindo-se o direito real de habitação paro o cônjuge sobrevivente, seu quinhão não passará para o filho portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho. Forçosa esta conclusão diante dos arts. 748 c/c 740 do Código Civil, pois, como ao direito real de habitação são aplicadas, no que couberem, as regras do direito de usufruto, lembramos que no usufruto, não há como regra, e só por expressa determinação, o direito de acrescer.

Mas se o cônjuge sobrevivente não fizer jus, quando da abertura da sucessão, ao direito real de habitação, o filho portador de deficiência receberá o direito sozinho.

C) O significado da expressão "filho portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho".

Existem várias espécies de deficiências. Como o legislador não limitou às deficiências a umas ou outras, seguindo a regra, não pode o intérprete limitar. Assim, qualquer deficiência, mental (exemplo do portador de paranóia), física (exemplo do tetraplégico) ou até social (exemplo da mulher que tenha filhos doentes que requeiram sua exclusiva e direta atenção, até porque não dispõe de recursos financeiros para transferir a outrem esta tarefa), é suficiente para ser aceita com deficiência. Só que o filho não deve apenas ser portador de deficiência para ter o direito de ser habitador. A lei exige a comprovação de que a deficiência o impossibilite de trabalhar.


5. A igualdade constitucional entre os filhos

Durante longos e árduos anos, os filhos foram tratados de modos diferentes conforme suas origens. Mas, aniquilando qualquer possibilidade de discriminação entre eles no que tange a direitos, a Constituição da República de 1988 previu a igualdade entre os filhos (12). Assim, resta induvidoso que todos os filhos devem ser tratados da mesma maneira pelo ordenamento jurídico.

Todos os filhos têm direito de serem registrados perante o Registro Civil em nome de seus pais e avós, de conviver com eles, recebendo os alimentos de que deles necessitem (13), sendo pelos pais guardados e educados, inclusive por estarem protegidos, durante a menoridade, através do pátrio-poder.

Todos os filhos têm direitos sucessórios.

É este último direito que queremos destacar neste trabalho.

Os artigos de lei que concediam mais direitos sucessórios a um filho do que a outro, ou que negavam ou reduziam direitos sucessórios a um filho, em razão de sua origem, não foram recepcionados pela nova ordem constitucional que se estabeleceu, perdendo automaticamente vigência.

Assim, não pode haver para um filho um direito sucessório que não exista para o outro. Se os direitos sucessórios não podem ser diferenciados pelo simples fato de terem os filhos origens diferentes, conclui-se que não podem também os direitos sucessórios ser diferenciados para filhos de mesma origem. E conclui-se mais. Os direitos sucessórios não podem ser diferenciados por ter um filho uma condição particular diversa da dos demais, seja esta condição de ordem física, mental, cultural ou social.

Nada justifica que a um filho seja dada maior proteção sucessória do que a outro, se a lei constitucional garante a igualdade de direitos entre os filhos.

É certo que o "filho portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho" precisa de maior proteção do que os demais filhos. Mas, para atender a esta necessidade de proteção, já estão previstos em lei institutos como o da curatela, o da obrigação alimentar, a possibilidade de permanecer no imóvel residencial alugado por seu(s) pai(s) locatário(s), após a morte dele(s).

É louvável e merece aplausos a iniciativa do legislador de criar outros mecanismos jurídicos para proteger este filho, como parece ter sido sua intenção ao criar o§ 3o para o art. 1611 do Código Civil.

Como analisado, o direito real de habitação tem finalidade assistencial e foi previsto como direito sucessório do cônjuge sobrevivente para oferecer-lhe esta garantia. Assim, concedido o direito real ao filho portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho, ele teria mais um mecanismo de proteção. Todavia, não pode o legislador ordinário proteger um filho, garantindo-lhe um direito sucessório (cuja aquisição é a título gratuito) que desiguala os filhos, quando a ordem constitucional impõe a eles a igualdade de direitos.

Interpretando-se, por esta ótica, deve-se concluir que o novo parágrafo do art. 1611 do Código Civil é inconstitucional, não devendo ser aplicado.


6. Conclusões

Apesar de ser simpática a idéia de que o legislador está preocupado em garantir maior proteção para os portadores de deficiência, a maneira como foi instituído o § 3o do art. 1611 do Código Civil, não foi feliz.

Primeiro porque o parágrafo trouxe uma redação de difícil interpretação e segundo porque desrespeitou limites constitucionais.

Entendemos, assim, que o direito real de habitação concedido aos filhos portadores de deficiência não pode ser aplicado por sua flagrante inconstitucionalidade que desiguala os filhos, concedendo aos que forem portadores de deficiência que impossibilite para o trabalho um direito sucessório incabível para os demais filhos.


NOTAS

1. Entendo que o titular do direito real de habitação pode ter entre os moradores da casa pessoas que não são da sua família, desde que a moradia concedida a elas não seja remunerada.

2. GOMES, Orlando. Direitos Reais. 12a edição atualizada por Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1996. Página 309.

3. BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. 11a edição atualizada por Achilles Beviláqua e Isaias Beviláqua. Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo Ltda, 1958.

4. Obra já citada, página 294.

5. BESSONE, Darcy. Direitos Reais. São Paulo: Editora Saraiva, 1988. Página349.

6. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – 4o volume: Direito das Coisas. 4a edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1987.

7. Destaca-se que, primitivamente, o artigo 1661 do Código Civil previa o seguinte: "... se ao tempo da morte do outro não estavam desquitados". A Lei nº 6.515/77 – conhecida como "Lei do Divórcio" – alterou a redação do artigo para abranger o divórcio.

8. Como destaca Maria Halena Diniz, in Curso de Direito Civil Brasileiro – 5o volume: Direito de Família (12a edição; São Paulo: Editora Saraiva, 1997, página 183), Orlando Gomes entende que o direito real de habitação deve ser ampliado para o cônjuge sobrevivente casado pelo regime de bens da comunhão parcial, se não há outro imóvel residencial a partilhar e o imóvel residencial foi adquirido na constância do casamento. De certo. Na hipótese da lei há situação semelhante a proposta pelo jurista.

9. Em que pese a literalidade do parágrafo determinar que a condição que resolve o direito é deixar de ser viúvo, entendo que, hoje, apesar da união estável não criar um estado civil, diante dos direitos concedidos aos conviventes pela Lei nº 8.971/94 e pela Lei nº 9.278/96, o direito resolve com o estabelecimento dessa união.

10. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – volume VI. 1a edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1990. Página 102.

11. Esta é a opinião defendida inclusive por José da Silva Pacheco, in Inventários e Partilhas, na sucessão legítima e testamentária. (8a edição; Rio de Janeiro: Editora Forense, 1994, página 206).

12. Estabelece o § 6o do art. 227 da Constituição da República: "Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação".

13. Aliás, enquanto os pais forem detentores do pátrio-poder, terão o dever de educá-los, guardá-los e sustentá-los (art. 22 da Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente).

14. Deve ser lembrado que o parágrafo único do art. 7o da Lei 9.278/96, que regulamentou o § 3o do art. 226 da Constituição da República, concedeu ao convivente sobrevivente o direito real de habitação.

Sobre a autora
Lucia Glioche

promotora de Justiça do Rio de Janeiro, palestrante da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GLIOCHE, Lucia. Lei 10.050/2000: direito real de habitação.: O novo §3º do artigo 1611 do Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 49, 1 fev. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/559. Acesso em: 18 dez. 2024.

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