1 BREVE SÍNTESE DO PROBLEMA
É certo que o objetivo do capitalismo é o lucro, sendo que um dos maiores símbolos desse modelo de política econômica é a atividade comercial desenvolvida pelo conglomerado bancário.
As instituições financeiras, para continuarem na vanguarda daquilo que o capitalismo entende como necessário à sobrevivência das companhias, utilizam-se de toda espécie de atrativo para captar clientes e venderem seus mais diversos serviços.
Noutra ponta dessa relação jurídica está o consumidor que, frequentemente, rende-se às ofertas publicitárias dos bancos e assemelhados, seja para uma simples abertura de conta corrente, seja para adquirir serviços creditícios a juros, ou ainda serviços correlatos, a exemplo da previdência privada ou de seguros.
Tal relação não está imune dos conflitos entre esses dois setores da sociedade, consumidores e bancos. Na verdade, as ações contra os bancos encabeçam a lista do Conselho Nacional de Justiça.
Como é do espírito dos bancos maximizar seus lucros, acabam eventualmente incidindo em práticas agressivas, práticas de ágio fácil, para angariar o máximo de clientes e mantê-los constantemente adquirindo seus produtos e serviços.
Essas práticas nada amistosas por parte das instituições financeiras acabam empurrando o consumidor ao endividamento excessivo ou ao endividamento perpétuo, pelos infindáveis programas de refinanciamento das instituições financeiras.
Em razão disso, o trabalho desenvolvido tem como problemática, uma reflexão sobre a possibilidade ou não, de revisão jurídica dos contratos bancários tendo como fundamento principal o superendividamento do consumidor.
2 DA RELAÇÃO DE CONSUMO E O CONSUMIDOR DE SERVIÇOS BANCÁRIOS
O consumidor recebeu tutela especial do legislador, pelo advento do Código de Defesa do Consumidor, para proteger este do capitalismo predatório das indústrias e de outras entidades que visam o lucro, incluindo-se aqui as instituições financeiras.
Sabe-se que, de forma sintética, a relação de consumo necessita que haja uma relação jurídica entre as partes, ou responsabilidade civil de uma delas, e que estas partes se conformem ao conceito de consumidor e fornecedor insculpido nos arts. 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor.
Especificamente, Almeida (1982, p.142), entende que “na prática, ter-se-á que presumir que as operações de crédito se destinam ao consumo sempre que o beneficiário seja uma pessoa física cuja atividade principal não tenha natureza comercial ou profissional”, ou seja, o “consumidor bancário” utiliza o “crédito” como consumidor “final”. Isto significa dizer que ser “consumidor final” (CDC, art. 2º) de serviço bancário é aquele que utiliza o crédito para uso pessoal, e não de forma profissional.
Utilizar o crédito de forma profissional, para fins de conceituação de consumidor ou fornecedor, significa que o tomador deste crédito irá utilizá-lo para emprestar a juros à outrem – como se fosse uma cadeia produtiva – no desenvolvimento de atividade comercial ou à ela equiparada, visando lucro (ágio decorrente dos juros cobrados) sobre o empréstimo, como se instituição financeira fosse.
Seguindo esse raciocínio, Casado (2000, p. 31), entende que tal interpretação pode se prestar para as pessoas jurídicas, “desde que não destinada ao fomento mercantil (factoring) ou seja instituição autorizada pelo CMN a operar com o fornecimento de crédito”.
Dessa forma, conclui Casado (2000, p. 32) que:
“O banqueiro que concede crédito é fornecedor de um produto consumível (juridicamente, com certeza) pelo mutuário, na qualidade de destinatário final, visto que ele irá utilizá-lo para suprir-lhe alguma utilidade pessoal”, sendo que “utilidade pessoal” do consumidor significa sua utilização como destinatário final, podendo ser “o pagamento de contas de uma pessoa física, ou a compra de maquinário para uma empresa”.
Verificado sinteticamente o conceito de fornecedor e das instituições financeiras como fornecedores, deve-se agora verificar a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às Instituições Financeiras.
Nelson Nery Júnior (apud CASADO, 2000, p. 31) ensina que:
Analisando o problema da classificação do banco como empresa e de sua atividade negocial, tem-se que é considerado pelo art. 3º, caput, do CDC como fornecedor, vale dizer, como um dos sujeitos da relação de consumo. O produto da atividade negocial do banco é o crédito; (…) O aspecto central da problemática da consideração das atividades bancárias como sendo relações jurídicas de consumo reside na finalidade dos contratos realizados com os bancos. Havendo a outorga do dinheiro ou do crédito para que o devedor utiliza como destinatário final, há a relação de consumo que enseja a aplicação dos dispositivos do CDC. Caso o devedor tome dinheiro ou crédito emprestado do banco para repassá-lo, não será destinatário final e portanto não há que se falar em relação de consumo. Como as regras normais de experiência nos dão conta de que a pessoa física que empresta dinheiro ou toma crédito de banco o faz para a sua utilização pessoal, como destinatário final, existe aqui a presunção hominis, juris tantum, de que se trata de relação de consumo, quer dizer, de que o dinheiro será destinado ao consumo.
Ademais, o Pretório Excelso pacificou a questão ao julgar a ADIN 2.591, reconhecendo a constitucionalidade do § 2º do artigo 3º do Códex Consumerista, confirmando a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às instituições financeiras.
Tal entendimento já se encontrava sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme insculpido na Súmula 297: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”.
Ao bem da verdade, não vislumbramos campo para questionamentos ou dúvidas acerca da aplicação do Código de Defesa do Consumidor às instituições financeiras, em especial no que concerne às pessoas físicas adquirentes dos serviços e produtos bancários, sejam empréstimos, sejam operações transacionais de crédito, abertura de conta corrente, dentre outros.
3 DOS PRINCÍPIOS GERAIS DOS CONTRATOS
A legislação civilista que rege os contratos enumerou, de forma exemplificativa, condições e circunstâncias mínimas que devem ser observados na formação do negócio jurídico.
A definição de contrato, segundo Venosa (2009, p. 353), está inserida dentro do conceito de negócio jurídico, como se “negócio jurídico” fosse gênero e “contrato” sua espécie, a saber:
Quando o ser humano usa de sua manifestação de vontade com a intenção precípua de gerar efeitos jurídicos, a expressão dessa vontade constitui-se num negócio jurídico.
[…]
Portanto, para qualquer negócio jurídico, e não apenas aos contratos, aplicam-se as regras sobre capacidade do agente, forma e objeto, assim como em relação às normas sobre os vícios de vontade de vícios sociais. O Código (CC 2002) mantém tal estrutura, sob o título “negócios jurídicos”.
O renomado jurista Clovis Beviláqua (1916, p. 245) entende que contrato é “o acordo de vontade de duas ou mais pessoas com a finalidade de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direito”.
Ainda, vale conferir os ensinamentos de Orlando Gomes (2007, p. 10), o qual assinala que “contrato é, assim, o negócio jurídico bilateral, ou plurilateral, que sujeita as partes à observância de conduta idônea à satisfação dos interesses que regularam”.
Contudo, os contratos somente serão válidos quando respeitados os princípios que norteiam a regular formação destes. Venosa (2009, p. 365 e seguintes) demonstra que os princípios gerais que regem o direito contratual são: (a) a autonomia da vontade, (b) a força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda), (c) a relatividade dos contratos, (d) a boa-fé, (e) a função social do contrato. No mesmo sentido entende Rizzardo (2008, p. 18 e seguintes) e ainda acrescenta também a necessidade de observância do princípio da supremacia da ordem pública.
Calha comentar especialmente três destes princípios: a autonomia da vontade, o pacta sunt servanda, e a boa-fé contratual.
Acerca do princípio da autonomia da vontade, Rizzardo (2008, p. 19) sustenta que “a autonomia da vontade está ligada à liberdade de contratar, que se submete, no entanto a limites, não podendo ofender outros princípios ligados à função social do contrato […]”.
Assim, o princípio da autonomia da vontade está ligado à liberdade de contratar, seja de querer ou não a concretização de determinada relação jurídica, seja da escolha da espécie contratual que desejam as partes celebrarem, porém, tal liberdade de contratar sofrerá limitações de ordem pública, conforme bem se observa na determinação legal dos arts. 421 e seguintes e arts. 104 e seguintes do Código Civil.
O princípio do pacta sunt servanda se traduz na “força obrigatória do contrato”, isto significa que as partes deverão cumprir com aquilo que foi avençado no contrato.
Rizzardo (2008, p. 24) ensina que:
[…] o acordo de vontades, logo depois de declaradas, tem valor de lei entre os estipulantes, e impõe os mesmo preceitos coativos que esta contém. É certo que essa vontade não é mais aquela que se enquadrava na concepção filosófica da teoria clássica, quando igualou o contrato à lei, mas é a concepção moderna da autonomia da vontade como expressão social de tudo aquilo que vem inserido na lei, conceito certo de onde se origina a fonte criadora de todos os direitos subjetivos, pelo simples acordo das vontades humanas, quando livremente manifestadas.
Em suma, uma vez entabulado o contrato, este faz lei entre as partes e delas se espera a mútua cooperação para o bom andamento ou conclusão do negócio jurídico avençado (boa-fé objetiva).
Um dos mais importantes princípios que devem ser observados em todas as fases do negócio jurídico (pré-contratual, durante sua vigência, e pós-contratual) é o princípio da boa-fé contratual.
Sobre o tema, Venosa (2009, p. 368) ensina que para se verificar o princípio da boa-fé nos contratos faz-se necessário o exame do elemento subjetivo de cada contrato, junto da conduta objetiva dos contraentes:
A parte contratante pode estar já, de início, sem a intenção de cumprir o contrato, antes mesmo de sua elaboração. A vontade de descumprir pode ter surgido após o contrato. Pode ocorrer que a parte, posteriormente, veja-se em situação de impossibilidade de cumprimento. Cabe ao juiz examinar em cada caso se o descumprimento decorre de boa ou má-fé. Ficam fora desse exame o caso fortuito e a força maior, que são examinados previamente, no raciocínio do julgador, e incidentalmente podem ter reflexos no descumprimento do contrato.
Assim, devem as partes guardar, antes, durante e após a vigência do contrato celebrado entre as partes, a boa-fé e a probidade, conforme determina o art. 422 do Código Civil: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
Orlando Gomes (apud RIZZARDO, 2008, p. 33) diz que o princípio da boa-fé “significa que o literal da linguagem não deve prevalecer sobre a intenção manifestada na declaração de vontade, ou dela inferível. Ademais, subentendem-se, no conteúdo do contrato, proposições que decorrem da natureza das obrigações contraídas, ou se impõem por força de uso regular e da própria equidade”.
Dessa forma, as partes devem guardar a boa-fé nos negócios jurídicos, sob pena de nulidade ou revisão judicial.
Na sequência, serão tratados a relativização do pacta sunt servanda, a revisão contratual sob a luz do Códex Consumerista e a possibilidade da revisão contratual com base no superendividamento do consumidor.
4 O FENÔMENO DO SUPERENDIVIDAMENTO
O fim almejado pela revisão judicial dos contratos é a relativização do princípio do pacta sunt servanda, isto é, a mitigação da lei entre as partes que havia se firmado anteriormente.
Contudo, para que tal fim seja alcançado, necessita-se de pressupostos que autorizem a possibilidade dessa relativização. Neste sentido, poder-se-ia trabalhar com inúmeros temas que dariam azo à relativização proposta, porém, iremos nos concentrar apenas no tema proposto, o superendividamento.
É notório que cada vez mais se verifica o fenômeno do superendividamento, pois com a facilidade de acesso ao crédito, fomentado inclusive pelo governo, institui-se uma política de incentivo ao consumo dos serviços creditícios das instituições financeiras, consubstanciando-se em verdadeira “sociedade do endividamento” que, conforme observa Costa (MARQUES e CAVALLAZZI, coord., 2006, p. 231), “nela, o crédito ao consumo promove um colossal crescimento da produção, mas gera o flagelo social do superendividamento do consumidor”.
Ainda Costa (MARQUES e CAVALLAZZI, coord., 2006, p. 231), indica com precisão as mazelas da facilidade do crédito e do incentivo ao consumo desse tipo de serviço:
Na economia do endividamento, tudo se articula com o crédito. O crescimento econômico é condicionado por ele. O endividamento dos lares funciona como ‘meio de financiar a atividade econômica’. Segundo a cultura do endividamento, viver a crédito é um bom hábito de vida. Maneira de ascensão ao nível de vida e conforto do mundo contemporâneo, o crédito não é um favor, mas um direito fácil. Direito fácil, mas perigoso. O consumidor endividado é uma engrenagem essencial mas frágil da economia fundada sobre o crédito.
Então, onde reside a verdadeira culpa, ou a verdadeira responsabilidade pelo endividamento do consumidor? Única e exclusivamente do consumidor? Do governo e sua política de incentivo ao consumo? Das instituições financeiras, que pregam a ideologia do capitalismo predatória e por manipular interesses por meio de lobby?
Lopes (1996, p. 111) aponta que:
Em geral, a questão, do ponto de vista do direito, é tratada como um problema pessoal (moral, muitas vezes) cuja solução passa apenas pela execução pura e simples do devedor. Esquece-se que o endividamento depende de que o consumidor tenha tido acesso ao crédito (responsabilidade do credor), que tenha sido estimulado e incentivado a consumir e a consumir a crédito, que tenha sido vítima, em certos casos, de uma força maior social, qual seja, uma recessão, uma onde de desemprego […].
Observa-se que o problema do superendividamento não se trata tão-somente de um problema pessoal, mas de um flagelo social e político, ante a sociedade de consumo pautada na política do endividamento.