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Aplicação e alcance do instituto trazido pelo parágrafo único do art. 944 do novo Código Civil

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Agenda 13/03/2017 às 09:10

O art. 944, parágrafo único do Código Civil possibilitou a condenação à indenização equitativa, uma figura jurídica que ainda causa grande celeuma no meio jurídico. Saiba quais são os aspectos mais relevantes sobre o tema e as polêmicas que a doutrina erigiu em seu entorno.

1 INTRÓITO

O novo Código Civil de 2002, em seu art. 944, parágrafo único, trouxe a lume uma nova figura jurídica que vem causando grande celeuma no meio jurídico. Os doutos do direito vêm se digladiando na busca por respostas às intrincadas questões que surgem de sua análise, parecendo não haver consenso entre a doutrina no que concerne aos pontos mais importantes do novel instituto.

A despeito da originalidade da figura, a literatura existente sobre o tema é parca, e, na maioria das vezes, de pouca qualidade. A maioria dos textos encontra-se pulverizada em páginas virtuais, dificultando enormemente o trabalho de pesquisa. Como se não bastasse, poucos autores de renome se interessaram pelo assunto, sendo a bibliografia formada predominantemente por artigos de escasso valor científico e que pouco contribuem para o debate.

Dentre os escritores que se aventuraram a pesquisar a matéria, poucos foram os que propuseram alternativas hermenêuticas que tornassem viável a aplicação da figura jurídica de modo a compatibilizá-la com os ditames da Magna Carta. Muitos preferiram trilhar o caminho da crítica vazia, sentenciando à morte um instituto que acabara de nascer. O pessimismo generalizado não contribuiu, em nenhum aspecto, para o aprofundamento das discussões em torno das intrigantes questões que pululam quando da análise do tema.

Pablo Stolze Gagliano, não vislumbrando meios para a sua operacionalização, concluiu que:

Acontece que o Código Civil recém-aprovado altera profundamente o tratamento da matéria, ao permitir, em seu parágrafo único do art. 944, que o juiz possa, por equidade, diminuir a indenização devida, se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano. Ora, tal permissivo, subvertendo o princípio de que a indenização mede-se pela extensão do dano, permite que o juiz investigue culpa para o efeito de reduzir o quantum debeatur. É o caso, por exemplo, de o magistrado constatar que o infrator não teve intenção de lesionar, embora haja causado dano considerável. Será que a vetusta classificação romana de culpa (leve, grave e gravíssima), oriunda do Direito Romano, ressurgiu das cinzas, tal qual Fenix? Não sei até onde vai a utilidade da norma, que, sem sombra de dúvida, posto possa se afigurar justa em determinado caso concreto, rompe definitivamente com o princípio de ressarcimento integral da vítima1.

Ora, o papel dos doutos da área jurídica é justamente procurar saídas interpretativas e modos de operacionalização para, através de técnicas hermenêuticas, atribuir máxima eficácia às regras jurídicas. O que se constata, entretanto, é que boa parte dos estudiosos do direito civil que trataram do tema resolveram percorrer o caminho mais fácil, criticando o instituto sem indicar meios e soluções para a sua adequada utilização, sentenciando à morte a figura jurídica.

A hermenêutica constitucional, em seu desenrolar histórico, desenvolveu diversas regras de interpretação, tendo por escopo auxiliar o árduo e persistente trabalho de descoberta do conteúdo das normas. Dois desses princípios nos interessam de perto: o da máxima efetividade ou da eficiência e o da interpretação conforme a Constituição.

Segundo a regra interpretativa da máxima efetividade, o operador do direito deve extrair da norma o maior número de conseqüências jurídicas possíveis, desde que não afrontem a Carta Maior (interpretação conforme). Destarte, consoante anota Gomes Canotilho, “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê2”.

O princípio da eficiência pode e deve ser utilizado na interpretação infraconstitucional. Não há dúvidas que ao intérprete, na busca sequiosa pelo conteúdo normativo, cumpre a tarefa de sugar do texto legal a maior quantidade de efeitos, tornando útil cada palavra inserta na norma.

O presente trabalho propõe-se, dentro do possível, a enriquecer a frugal literatura existente sobre o assunto, colacionando novos argumentos e levantando novos questionamentos essenciais à correta interpretação e aplicação do instituto. Fugindo das lucubrações negativistas de parte da doutrina, o que se tem por escopo neste artigo é apresentar soluções, ainda que não definitivas, para a real aplicação da figura jurídica trazida pelo art. 944, em seu parágrafo único.

Em razão da pouca idade normativa do Novo Código e, por conseguinte, do instituto, os julgados que tratam do tema são raros. Deste modo, os operadores do direito não possuem qualquer referência sobre o assunto, cabendo assim ao estudioso estabelecer nortes hermenêuticos que venham a ser utilizados quando do aparecimento de casos práticos.

Intentaremos revelar a natureza jurídica do novo instituto, sendo este estudo de fulcral importância em razão das incontáveis conseqüências que dessa escolha podem ser extraídas. Sem sombra de dúvida, trata-se do ponto mais controverso na doutrina, existindo incontáveis teorias que visam trazer a solução definitiva para a questão. Analisaremos, uma a uma, as hipóteses levantadas pelos doutrinadores nacionais, refutando-as e demonstrando os seus pontos vulneráveis.

Como não poderia deixar de ser, traremos à tona, após minuciosa análise, a tese que entendemos ser a mais equilibrada e a mais consentânea com os preceitos da Lex Legum. Cuidadoso estudo será realizado com o fito de demonstrarmos que o novel instituto é aplicável uma vez adotada a teoria propugnada neste trabalho.

Feitas essas considerações preliminares, mas de suma importância para o deslinde do estudo, passaremos a analisar aspectos relevantes para a correta aplicação da norma.

Em síntese, o presente trabalho, que não pretende esgotar o assunto ou revolucionar o tema, tem por escopo analisar a natureza jurídica e a aplicação dessa novel figura jurídica, que, por constituir mais um modo de concretização do princípio - de magnitude constitucional - da função social da propriedade, desponta com grande importância no ordenamento jurídico brasileiro.

Visa-se, deste modo, emprestar a maior efetividade possível ao instituto sob análise, de modo a torná-lo aplicável, materializando assim a disposição constitucional que trata da função social da propriedade.


2 APLICABILIDADE E INTERPRETAÇÃO

2.1 FUNDAMENTOS DE ELABORAÇÃO DA NORMA

A modificação que culminou com a adição do parágrafo único ao art. 944, consoante lembra Luiz Roldão de Freitas, foi introduzida por Agostinho Alvim, que assim a justificou na Exposição de Motivos do Projeto:

Do mesmo modo, em face do Código Civil, o fato de ser leve a culpa, ou levíssima, não exclui a responsabilidade, salvo casos expressos em lei; e, sobretudo não vale nunca como atenuante. Todavia não parece justo que, no caso de culpa leve, e dano vultoso, a responsabilidade recaia inteira sobre o causador do dano. Um homem que economizou a vida toda para garantir a velhice pode, por uma leve distração, uma ponta de cigarro atirada ao acaso, vir a perder tudo o que tem, se tiver dado origem a um incêndio. E não só ele perde, mas toda a família. Notam os autores que acontecimentos trazem em si uma dose de fatalidade. E a fatalidade está em que a distração é uma lei inexorável, à qual nunca ninguém se furtou. É justamente por reconhecer isso que o legislador manda indenizar no caso de acidente do trabalho, embora ele ocorra, quase sempre, por motivo de descuido, negligência, imprudência, enfim culpa do empregado. Por estas razões é que o projeto faculta ao juiz, sem impor, que reduza a indenização. Ele o fará usando da eqüidade individualizadora, tendo em vista o caso concreto e as suas circunstâncias5.

O parágrafo, como noticia Miguel Kfouri Neto, foi intensamente debatido na Câmara dos Deputados pelos deputados Tancredo Neves, Cleverson Teixeira, Siqueira Campos, Fernando Cunha, dentre outros, com cerca de cinco emendas. O primeiro deles, que mais tarde acabou por assumir a Presidência da República, chegou a afirmar que “a indenização deve ser plena, de modo a propiciar a integral reparação do prejuízo” (Emenda 539). O Relator Geral, deputado Ernani Satyro, recusou todas as emendas, com apoio do plenário6.

Como se vê, a polêmica acompanha o dispositivo desde a época do Projeto do Código Civil, quando o mesmo ainda tramitava na Câmara dos Deputados.

O legislador, entretanto, de forma ousada e inovadora, ao criar a nova figura jurídica, fundamentou-a na idéia de que o dano causado nessas hipóteses decorre muito mais de uma fatalidade, algo que todas as pessoas estão sujeitas a suportar numa sociedade de riscos, do que da culpa com que obrou o causador do dano. Uma desgraça não se compensa com outra, ainda mais quando resultante de culpa levíssima, que mesmo o homem cauteloso e diligente pode vir a incorrer7.

Sílvio Rodrigues, citado por Milton Paulo de Carvalho Filho, em obra magnífica sobre o tema, traz a lume exemplo que aclara a mens legis:

Pessoa que distraidamente se encosta na vidraça, no vigésimo andar de um prédio, e esta se desprende para cair na rua e matar um chefe de família. Segundo ele, aquela pessoa, que teve apenas uma inadvertência, poderá ser condenada ao pagamento de uma enorme indenização, capaz de consumir toda a economia de sua família8.

Assim, acidentes de vastas proporções são causados muitas vezes por mero descuido ou mesmo por uma fatalidade, obrigando aquele que perpetrou o ato a despender enormes quantias, prejudicando a si e a sua família9.

Corre-se o risco ainda de o juiz, num caso desses, sentir-se compelido a negar a culpa com o fito de impedir uma condenação demasiada que não comporta meio-termo. Não tendo o magistrado qualquer arbítrio ao fixar a indenização, não poderão ser evitados os julgamentos por sentimentalismo, impropriamente ditos por equidade, como bem anota Milton Paulo de Carvalho Filho10.

Aduz Arruda Alvim, com muita argúcia, que, se a vítima acabou perdendo, poderia ter perdido igualmente, sem ter a quem recorrer, caso o dano tivesse sido causado por um raio ou obra de um malfeitor desconhecido. Trata-se de uma fatalidade a que todas as pessoas estão sujeitas, vez que inseridas em um meio social repleto de riscos. Assim, uma simples inadvertência poderia consumir o patrimônio de toda uma família, sem que o causador do dano tivesse agido com uma culpa tão grave e censurável11.

A equidade surge, portanto, como núcleo central e fundamento maior da norma, evitando, deste modo, uma decisão injusta e desproporcional no caso concreto.

O recurso à equidade é coisa extremamente comum no direito pátrio, podendo ser encontrada em diversos dispositivos legais. Tarefa árdua, entretanto, é conceituá-la, e muito mais, aplicá-la12.

A sua função, diz grande parte da doutrina, é adaptar à norma ao caso concreto, constituindo a justiça do caso particular13. Os romanos a tratavam como uma espécie de caridade, misericórdia, visão esta que resta absolutamente ultrapassada. Segundo Mário Bigotte Chorão, a equidade nada mais é do que um modo particular de aplicar a norma aos casos concretos:

Adquire especial saliência, apoiada numa vetusta e prestigiosa tradição cultural, a concepção da equidade como justiça do caso concreto, isto é, uma forma de justiça que, superando a mera justiça legal, se adequa às circunstâncias da situação singular. Nesta acepção, a equidade é como que mediadora entre o princípio abstrato da justiça legal e as exigências dos casos singulares e concretos. Ela é, pode-se dizer, a justiça enquanto concretizada na solução de cada caso. (...) Segundo uma tal concepção, a equidade é, em suma, uma realidade essencialmente jurídica, embora, translegal, que serve para a mais plena realização da justiça (e do direito). Por meio dela se consegue, diz-se, ‘sortir de la légalité pour rentrer dans le droit’ (Sertillanges14).

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Esta função de aplicação da norma ao caso concreto, sempre com tempero e moderação, é atribuída ao magistrado. É ele quem irá aplicar a justiça no conflito particularizado15. Não é por outro motivo que se costuma afirmar que o novo Código Civil atribuiu enormes podres ao juiz, conferindo-lhe extensa discricionariedade.

As suas faculdades, entretanto, não são ilimitadas. O magistrado não pode criar o direito com base na equidade, mas deve extraí-lo do sistema jurídico em vigor. As circunstâncias de que se valerá para formar o seu convencimento devem ter base legal, vez que, como alerta o professor Arruda Alvim, a solução não pode ser arbitrariamente desenvolvida. Nas palavras sempre precisas do ilustre autor, o juiz deverá se pautar por informes que “tenham valor perante o direito, circunstâncias que o legislador levaria em consideração, se legislasse para o caso em apreço16”.

Nunca é demais lembrar que o magistrado, ao utilizar a equidade como forma de resolver o caso concreto, deve tomar como orientação os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, vetores hermenêuticos de fulcral importância na aplicação do direito ao caso em particular.

A utilização da equidade, entendida na acepção de justiça no caso concreto, como fundamento para mitigar o multissecular princípio da restitutio in integrum é uma tendência que vem se afirmando nas legislações modernas17.

A indenização por equidade encontra-se disciplinada no § 829 do Código Civil alemão:

Quem, em um dos casos assinalados nos §§ 823 a 826, não for, com fundamento nos §§ 827 e 828, responsável por um dano por ele causado, terá, não obstante, sempre que a indenização do dano não possa ser exigida de um terceiro com dever de vigilância, de indenizar o dano, desde que a eqüidade, de acordo com as circunstâncias, particularmente, de acordo com as relações entre os interessados, exigir uma compensação, e a ele não sejam tirados os meios dos quais necessita para sua manutenção conveniente, assim como para a realização das suas obrigações legais de alimentos18.

O Código Civil argentino, em seu art. 1.069, traz dispositivo semelhante, a saber:

O dano compreende não apenas o prejuízo efetivamente sofrido, senão também a ganância de que foi privado o danificado pelo ato ilícito, e que neste Código se designa com as palavras perdas e interesses. Os juízes, ao fixar as indenizações pelos danos, poderão considerar a situação patrimonial do causador, atenuando-a se for eqüitativo; mas não será aplicável esta faculdade se o dano for imputável a dolo do responsável19.

A gravidade da culpa também serve de critério para a fixação da indenização no Código Federal Suíço das Obrigações, como menciona Miguel Kfouri Neto:

Art. 43 (III. Fixação do Dano) (1) O modo e a extensão da indenização pelo dano causado, estabelece o juiz que, no caso, tem de considerar não só as circunstâncias como a gravidade da culpa. (...) Art. 44 (IV. Motivos de redução) (1) Se o lesado concordou com o ato danoso, ou se circunstâncias, pelas quais deve ele responder, atuaram para criar ou aumentar o dano ou agravaram, de outro modo, a situação do obrigado à indenização, poderá o juiz minorar a obrigação de indenização ou, inteiramente, não a reconhecer. (2) Se o obrigado à indenização que não causou o dano nem intencionalmente nem por negligência grave, ficar, pela prestação da indenização, reduzido a estado de necessidade, poderá o juiz, também por esse motivo, minorar a obrigação de indenizar20.

Por fim, o art. 1.103 do Código Civil espanhol permite que os Tribunais, na seara da responsabilidade contratual e aquiliana, amenizem a indenização, “segundo los casos”. Yzquierdo Tolsada, porém, não acredita que o Codex espanhol tenha restabelecido o sistema de gradação de culpas21.

Mesmo aqueles que se opõem de maneira ferrenha às mudanças implementadas pelo parágrafo único do art. 944 admitem que, em certos casos, de forma restritiva e excepcional, a equidade seja utilizada como critério para a redução da indenização. É o caso, por exemplo, de Rui Stoco que, tecendo severas críticas à restauração do tradicional sistema de gradação de culpa, sugere que se estabeleça a proporcionalidade entre quem dá e quem recebe22.

Diante de todas as ponderações aqui realizadas, pode-se chegar facilmente à conclusão de que o legislador infraconstitucional, buscando inspiração no direito alienígena, teve por escopo, ao enxertar o parágrafo único no art. 944, formar um sistema poroso e permeável às vicissitudes que grassam diariamente no meio social, tomando como fundamento e norte hermenêutico os princípios da equidade e da justiça no caso concreto.

2.2 REQUISITOS

O parágrafo único do art. 944 traz em seu bojo alguns requisitos que devem ser observados para que o magistrado possa, equitativamente, reduzir a indenização.

Em uma leitura rápida e superficial, pode-se chegar à conclusão precipitada de que o supramencionado artigo exige apenas a presença de dois elementos para a sua configuração, quais sejam, uma menor gravidade da culpa e um dano de grande extensão, evidenciando excessiva desproporção entre os mesmos.

Ocorre que parte da doutrina, lastreando seus argumentos no direito alienígena, vem sustentando a necessidade de se atentar para a situação econômica do ofensor, como uma espécie de terceiro requisito a ser preenchido. Carvalho Filho, mais uma vez, em obra imprescindível para a correta compreensão do tema, enumera de forma clara e concisa os elementos que se fazem obrigatórios para que o instituto possa ser aplicado:

[...] os requisitos objetivos que devem ser satisfeitos para que o causador do dano tenha direito à redução de que trata o parágrafo único do art. 944 do novo Código Civil seriam os seguintes: “(1) a menor gravidade da culpa – conduta menos reprovável do agente; (2) a ocorrência de um dano de grande extensão que autorize reconhecer a excessiva desproporção entre ele e a gravidade da falta, e (3) permitir a situação econômica do lesante, que não poderá ser reduzido ao estado de necessidade37.

Passamos a analisar, então, cada um desses requisitos mais detidamente.

2.2.1 Menor gravidade da culpa

A regra no direito brasileiro é de que apenas recaia o dever de indenizar sobre alguém que haja obrado com culpa. Assim, a mera imputabilidade do agente não é suficiente para que reste configurada a sua responsabilidade. Nem todo comportamento, destarte, é apto a gerar o dever de ressarcir, apenas aquele que estiver revestido de certas características previstas no ordenamento jurídico38.

Para melhor compreensão do tema, deve-se apartar, como o faz acertadamente Sérgio Cavalieri Filho, os conceitos de vontade e intenção39.

Nas palavras do renomado autor, a conduta voluntária “é sinônimo de conduta dominável pela vontade, mas não necessariamente por ela dominada ou controlada, o que importa dizer que nem sempre o resultado será querido40”. Há, portanto, na vontade, um mínimo de participação subjetiva, limitada à conduta. Afasta-se do conceito, assim, resultados puramente mecânicos, em que a vontade não intervém de alguma forma, os chamados atos reflexos, como, por exemplo, os casos de sonambulismo, hipnose e coação física absoluta41.

Na intenção, por sua vez, “é a vontade dirigida a um fim determinado. É a bússola da vontade, seu elemento finalístico, que a norteia para o objetivo eleito42”. Aqui, a vontade volta-se a um escopo querido, desejado, perseguido.

Em face de tais definições, pode-se chegar ao conceito de culpa “lato sensu” como sendo a violação de um dever jurídico, seja em razão de uma conduta intencionalmente dirigida a um determinado resultado (dolo), seja em conseqüência de uma conduta voluntária, sem que haja qualquer deliberação em transgredir um dever (culpa stricto sensu43).

O parágrafo único do art. 944, ao tratar da redução eqüitativa de indenização, menciona apenas a “desproporção entre a gravidade da culpa e o dano”. Deve-se ler o signo culpa em seu sentido estrito, excluindo-se o dolo da aplicação do dispositivo, quando então o ressarcimento deverá ser integral. Neste sentido, o escólio do sempre lembrado Sérgio Cavalieri Filho:

O Código inovou neste ponto, permitindo ao juiz reduzir equitativamente a indenização se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano (art. 944, parágrafo único). O dispositivo só fala na culpa; logo, quando a responsabilidade fundar-se no dolo – hipótese em que o laço que prende o fato à vontade do agente é mais forte – o montante da indenização terá que corresponder sempre ao valor do dano, não podendo o juiz arbitrar indenização inferior44.

Nesse caso, portanto, não há que se falar em mera fatalidade45 ou acidente, vez que o agente desejou o resultado, empreendendo os esforços necessários à sua consecução. Aplica-se, destarte, o princípio da restituição integral, regra geral da responsabilidade civil.

Com o desiderato de limitar de forma precisa o alcance do dispositivo sob comento, mister se faz reviver classificação tripartida praticamente abandonada pela doutrina, vez que em desuso em sede legislativa e jurisprudencial. Trata-se do enquadramento da culpa em grave, leve ou levíssima, categorização que deve renascer das cinzas, tal qual fênix, para auxiliar na correta aplicação do instituto trazido pelo parágrafo único do art. 944.

Nos dizeres sempre abalizados de Sérgio Cavalieri Filho, “a culpa será grave se o agente atuar com grosseira falta de cautela, com descuido injustificável ao homem normal, impróprio ao comum dos homens46”. A culpa grave é equiparada, em muitas hipóteses, ao dolo, como, por exemplo, nos artigos 247, 272, I, e 278, I, do Código Brasileiro de Aeronáutica47. O STF, em enunciado de número 229 de sua jurisprudência dominante assentou que “a indenização acidentária não exclui a do direito comum em caso de dolo ou culpa grave do empregador”. O STJ trilhou o mesmo caminho ao afirmar, na súmula 145, que no “transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave”.

Vê-se, portanto, que a culpa grave em muito se assemelha ao dolo, não subsistindo razões para a aplicação do dispositivo legal quando da ocorrência de negligência, imperícia ou imprudência extrema, criminosa48. Mesmo porque não vislumbramos como possa haver grave desproporção entre a culpa e o dano, a reduzir proporcionalmente a indenização, quando a agente atua de forma inconseqüente, omitindo os cuidados mais elementares, descuidando da diligência mais pueril, ignorando os conhecimentos mais comuns49.

A culpa será leve se “a falta puder ser evitada com atenção ordinária, com o cuidado próprio do homem comum, de um bonus pater famílias50”.

Miguel Kfouri Neto, desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná, discorrendo sobre as fases de aplicação da norma em cogito, aduz que “caso reconhecida culpa leve – ou levíssima – passará à quarta fase, que consistirá na indicação, fundamentada, do percentual ou valor da redução, aplicável a cada uma das parcelas integrantes da indenização, deferidas à vítima51”.

Ousamos discordar do ilustre magistrado. A culpa leve, demonstração de desídia e falta de cuidado, não deve ensejar a redução equitativa da indenização, sob pena de a norma jurídica servir como proteção aos seres pouco diligentes, dando azo a uma diminuição injusta ao patrimônio da vítima. Deve-se sempre ter em mente, como já exaustivamente repetido, que a norma insculpida no art. 944, parágrafo único, tem aplicação restrita e excepcional, tendo como um dos seus fundamentos de criação a não-penalização de certas condutas que muito se assemelham a uma mera fatalidade.

O princípio da restitutio in integrum, erigido a patamar constitucional, não pode ser desprezado e afastado quando o sujeito, agindo sem a diligência que se espera de um bom pai de família, vem a causar dano injusto a outrem, que não tem a obrigação de suportar tal ônus. A não reintegração ao status quo ante deve se limitar a casos extremos, em que se vislumbra grande injustiça no ressarcimento integral à vítima, justamente porque o evento em muito se assemelha ao caso fortuito ou força maior.

A culpa leve, ao revés, revela comportamento não esperado de um homem normal, ordeiro e cuidadoso52. Portanto, não se afigura justo que a vítima deva sofrer as conseqüências de um ato anormal e desidioso. Como bem advertiu Ramon Daniel Pizarro, citado pelo eminente Rui Stoco, “indenizar pela metade é responsabilizar a vítima pelo resto53”. Inaplicável, destarte, o instituto quando o agente obrar com culpa leve.

Por derradeiro, caracteriza-se a culpa levíssima pela “falta de atenção extraordinária, pela ausência de habilidade especial ou conhecimento singular54”. É erro de conduta a qual todos os indivíduos estão expostos55, não se afigurando justo ou correto que aquele que agiu com diligência ordinária responda integralmente por dano de vastas proporções.

Equipara-se a culpa levíssima à mera fatalidade, não merecendo tal conduta censura grave ou radical, razão pela qual deve incidir, em tais casos, a aplicação da equidade na mensuração da indenização. Mais uma vez torna-se importante a utilização do exemplo aventado por Sílvio Rodrigues e oportunamente lembrado por Carvalho Filho, em que “pessoa distraidamente se encosta na vidraça, no vigésimo andar de um prédio, e esta se desprende para cair na rua e matar um pai de família56”.

Como um acontecimento trágico, similar ao acima narrado, pode ser ocasionado por qualquer pessoa, mesmo aqueles de diligência ordinária, nada mais justo do que a socialização dos riscos existentes em abundância na sociedade contemporânea. A tendência, em sede de responsabilidade civil, como já assinalado alhures, é que os riscos usuais sejam distribuídos por toda a comunidade, de modo a não sobrecarregar um único indivíduo exacerbadamente, concretizando, assim, um dos pilares do constitucionalismo hodierno, qual seja, o princípio da solidariedade.

Assim, e concluindo, entendemos cabível a aplicação do parágrafo único do art. 944 apenas nos casos em que o agente obrou com culpa levíssima, evitando-se, deste modo, o sacrifício da teoria da restituição integral e, de outro lado, materializando o postulado constitucional da solidariedade entre as pessoas.

2.2.2 Dano de grande extensão

Sérgio Cavalieri Filho, com precisão matemática, define o dano como sendo

a subtração ou diminuição de um bem jurídico, qualquer que seja a sua natureza, quer se trate de um bem patrimonial, quer se trate de um bem integrante da própria personalidade da vítima, como a sua honra, a imagem, a liberdade etc. Em suma, dano é lesão de um bem jurídico, tanto patrimonial como moral, vindo daí a conhecida divisão do dano em patrimonial e moral57.

O parágrafo único do art. 944 do novel Código Civil traz como requisito elementar à aplicação do instituto a existência de excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano.

Como é intuitivo, não é qualquer espécie de dano que pode dar ensejo à redução equitativa da indenização, mas somente aquele que, em cotejo com a gravidade da culpa, mostre-se excessivamente desproporcional. Neste sentido, com grande dose de acerto, leciona Miguel Kfouri Neto:

Nesta última fase, a par do grau de culpa, deve-se evidenciar a excessiva desproporção entre a culpa e o dano – ou seja, o prejuízo ocasionado pela mínima negligência, v.g., deve assumir grande vulto. Nessa apuração, como o dano é o requisito de maior visibilidade, dentre os que integram a responsabilidade civil, uma vez fixado o grau da culpa, não haverá dificuldade para se identificar a ocorrência ou não da desproporção a que alude o parágrafo único do art. 94458.

Em face de um Estatuto Civil recheado de conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais, mostra-se de fulcral importância a participação do operador do direito na construção das normas jurídicas. O estudo do caso concreto adquire especial relevo, moldando-se o dispositivo de lei à questão particularizada, individualizada59.

Assim é que o intérprete conciliará as noções de culpa levíssima e dano excessivamente desproporcional, edificando a regra a partir da situação concretamente apresentada, tendo sempre como parâmetro hermenêutico os princípios constitucionais da restituição integral, de um lado, e, de outro, os postulados da justiça social e da solidariedade. Qualquer definição apriorística ou abstrata mostrar-se-ia em descompasso com a regra da operabilidade, tão cara ao idealizador da nova codificação, Miguel Reale, adepto incondicional do culturalismo jurídico60.

2.2.3 Situação econômica do lesante e do lesado

Milton Paulo Carvalho Filho vislumbrou um requisito implícito no dispositivo em cogito, exigindo que, para fazer jus à redução equitativa, mister se faz atentar para “a situação econômica do lesante, que não poderá ser reduzido ao estado de necessidade61”.

Conquanto coberto de razão o ilustre jurista, entendemos que não apenas a situação econômica do lesante deva ser levada em consideração no momento da mensuração da indenização, mas também a do lesado. Filiamo-nos, neste ponto, ao pensamento sempre lúcido de Rui Stoco, in verbis:

A objeção que fazemos, por força de outros princípios que esse mesmo Estatuto adotou e que se mostram em contradição com a referida exceção, é no sentido de que a redução da indenização – que deveria corresponder ao efetivo dano material sofrido pela vítima – não deveria estar condicionada à gravidade da culpa. Poderia ser estabelecida essa proporcionalidade entre a condição e possibilidade econômica e financeira da quem dá e de quem recebe, o que se mostra muito mais adequado e pertinente, circunstâncias essas objetivas e ligadas aos sujeitos da relação jurídica, posto que aspectos subjetivos, ligados ao sujeito ativo da ação, melhor servem ao Direito quando aplicados para identificar e caracterizar o ato ilícito, considerando que a equidade nada mais é do que a busca do justo e do equilíbrio. Não custa lembrar que o Código Civil de 1916, agora revogado, continha previsão que dá foros de legitimidade a nossa posição, pois no antigo §2° do art. 1.538, que tratava da lesão corporal, estabelecia a reparação à mulher solteira ou viúva “segundo as posses do ofensor, as circunstâncias do ofendido e a gravidade do defeito62”.

Aguiar Dias, mesmo antes do advento do novo Codex, já sublinhava a importância da aplicação da equidade com fundamento nas posses do responsável, alegando que

esse princípio está hoje vitorioso na maioria dos países cultos e atende aos princípios fundamentais da responsabilidade civil. O Direito existe para servir aos homens. Se, como acreditamos, continua a prevalecer a definição de CELSO, que nos legou a máxima jus est ars boni et aequi, o Direito não pode perder de vista a eqüidade. Daí também decorre que uma legislação cuidadosa ou, em sua falta, a própria jurisprudência, não pode deixar de atender a circunstâncias que, depois do julgamento definitivo sobre a liquidação, alterem de forma acentuada a situação da vítima ou do responsável, relativamente ao quantum fixado. Assim, a agravação das lesões corporais que no juízo da liquidação tenham sido consideradas leves e vice-versa, as que, reputadas graves, não justifiquem o prognóstico formulado naquela ocasião. Por essas e outras causas, deve admitir-se o direito à revisão da condenação. Ela dificilmente se legitimaria, entretanto, no caso de alteração do custo de vida63.

Logo, verificando o juiz tratar-se de culpa levíssima, e constatando a ocorrência de dano excessivamente desproporcional, deverá perquirir e investigar a condição econômica do lesante, bem como a do lesado, a fim de, ponderando com proporcionalidade, decidir se é aplicável ou não a redução equitativa da indenização.

Como bem gizou Carvalho Filho64, observando pelo lado do lesante, o ressarcimento do dano não pode reduzi-lo ao estado de necessidade. Obrando com culpa levíssima e sendo possuidor de parcos recursos, não deve o causador do dano sacrificar toda a economia de sua família65 para efetuar o pagamento da indenização.

Como já anotado, porém, a situação econômica do lesado também deve ser examinada com cautela. Assim, a vítima possuidora de poucos bens materiais não deverá sofrer um desfalque em seu patrimônio em virtude da atuação de outro sujeito, mesmo que agindo com culpa levíssima. Ora, a norma em comento fundamenta-se justamente na aplicação dos princípios constitucionais da justiça social e da solidariedade. Não se coaduna com ditos postulados a redução à miséria daquele que, comportando-se segundo os padrões ordinários de conduta, acaba por causar um dano inesperado a outrem.

Questão interessante é a de saber se aplicável a redução equitativa quando tanto o lesante quanto a vítima forem carecedores de recursos financeiros ou ambos forem possuidores de fortuna considerável.

Entendemos que não. Como bem destacou Rui Stoco66, em trecho acima colacionado, deve haver uma desproporção entre os patrimônios para que se faça aplicável o parágrafo único do art. 944. Verificando a paridade de condições econômicas, não deve o magistrado reduzir a indenização, mesmo tendo o agente causador do dano obrado com culpa levíssima, prevalecendo o princípio da restituição integral que, como já exaustivamente assinalado, só pode ser afastado em hipóteses extremas e excepcionais.

Assim, pugnamos por uma aplicação restrita do instituto estudado, limitando-o às hipóteses em que, além de preenchidos os requisitos da culpa levíssima e do dano excessivamente desproporcional, houver desequilíbrio entre os patrimônios do lesante e do lesado, de modo que os recursos deste superem sensivelmente os daquele.

Por último, vale a ressalva feita por João Casillo de que há de prevalecer o in dúbio pro creditoris, uma vez que, na “dúvida, a atenção do julgador deve voltar-se para a vítima, ainda que se corra o risco de que, por um excesso, o ofensor indenize mais do que era devido. O risco inverso de a vítima receber menos do que teria direito é que não pode ser admitido67”. Logo, não sendo realizadas nos autos provas, cujo ônus é daquele que alega a redução, que certifiquem a existência de uma desproporção entre os respectivos patrimônios, deve a indenização ser completa e integral, de modo a reintegrar a vítima ao estado de coisas anterior.

2.3 ALCANCE DA NORMA

2.3.1 Aplicação do dispositivo aos danos morais

Não vislumbramos qualquer argumento que possa justificar a não aplicação do artigo cogitado em sede de danos morais. A lei em nenhum momento faz qualquer discriminação, como bem lembra Carvalho Filho:

Por fim, ressalte-se que a lei não faz distinção quanto à natureza do dano que autoriza a redução do valor da indenização, que poderá ser material ou moral. Isso significa que poderá ocorrer a hipótese em que a mitigação se dará apenas na fixação da indenização na espécie de um dos danos causados. Seria o caso em que, por exemplo, a culpa leve do agente tenha causado danos morais elevados e materiais de pequena monta. Nesta hipótese, como estaria presente a desproporção exigida pela lei apenas em relação aos danos morais, somente estes autorizariam a redução eqüitativa da indenização80.

Da mesma opinião comunga Kfouri Neto, dando interpretação elástica ao dispositivo, ao afirmar que, tal “redução – quando viável – repercutirá sobre todas as verbas indenizatórias: danos materiais, morais, lucros cessantes e pensionamento – quando se tratar de dano a pessoa (morte ou incapacidade para o trabalho81”.

Leonardo Nascimento Cunha82, abordando de forma original e inovadora o art. 944, pugna pela aplicação do instituto somente nos casos de dano moral. Parte o autor da premissa de que a indenização por danos morais tem natureza dúplice, visando simultaneamente a compensação em termos financeiros e a sanção da conduta do ofensor. Assim, reduzir-se-ia o montante do ressarcimento referente apenas ao aspecto punitivo da indenização, restando incólume o quantum devido a título de compensação.

O autor traz exemplo que merece transcrição verbum ad verbo:

Imagine-se que um telejornal, em que são utilizadas aquelas tarjas na parte inferior da tela para que sejam repassadas imediata e reiteradamente as manchetes do dia, acabe noticiando, de forma equivocada, que um tal "José da Silva", morador de uma pacata Municipalidade brasileira, está sendo acusado do estupro de uma jovem estudante local. Comprova-se, posteriormente, que o fato fora deflagrado devido a um singelo erro de digitação, equivocando-se o funcionário veiculador das notícias ao digitar o nome do verdadeiro acusado do crime de estupro. Em vez de "José Silva", veiculara-se José da Silva, acrescentando, como se percebe, apenas uma preposição ao nome do sujeito. Todavia, tem-se que deste simples engano do operador do telejornal, cuja conduta classificaremos como levemente culposa, adveio um dano à moral do Sr. José da Silva, eis que, morador da mesma Municipalidade do acusado, fora com este confundido. [...] Suponha-se que o valor do dano moral vislumbrado pelo julgador, baseando-se apenas no aspecto compensatório da indenização, seja fixado em R$ 5.000,00 (cinco mil reais). De giro outro, buscará o magistrado sancionar a conduta do agente a fim de que outros cidadãos não sejam igualmente lesados pela atividade de risco da emissora do telejornal. Observará o julgador, nessa toada, qual o "grau de culpa" (grave, leve ou levíssima) presente na conduta do verdadeiro responsável pelo dano, ainda que a competente ação indenizatória seja movida em face da pessoa jurídica, a empresa jornalística, vale frisar, com espeque na Súmula nº 227, do STJ. Imagine-se, como assinalado, que o magistrado tenha concluído que o "grau de culpa" do ofensor, neste caso, fora de natureza levíssima ("simples engano", plenamente justificável diante da rapidez com que devem ser digitadas as manchetes a serem noticiadas). O julgador, então, adiciona ao valor indenizatório inicialmente imaginado – R$ 5.000,00 – o montante de R$ 1.000,00 (hum mil reais), enquanto se na conduta do telejornal estivesse assente uma culpa gravíssima, o julgador valoraria esta segunda natureza/escopo do dano moral, exempli gratia, em R$ 3.000,00. Dessume-se, assim, que a regra contida no parágrafo único do art. 944, do CC/02, é plenamente aplicável nas hipóteses de ressarcimento de dano moral, visto que este suporta a repartição, quanto ao escopo da correspondente indenização, em compensatório e sancionatório ou punitivo83.

Em que pese o brilhantismo dos argumentos expendidos pelo ilustre jurista, não podemos concordar integralmente com as conclusões extraídas pelo mesmo. Como já demonstrado alhures, a mitigação do princípio da restituição integral é possível, tanto no dano material quanto no moral, desde que presentes os três requisitos legais, quais sejam: a) menor gravidade da culpa - o sujeito ter agido com culpa levíssima; b) existência de excessiva desproporção entre o dano de grande extensão e a culpa84; c) sensível desequilíbrio entre o patrimônio do agente causador do dano e o da vítima85.

Logo, configurados os requisitos exigidos para a aplicação do dispositivo, a redução deve incidir sobre todo o montante da condenação a título de danos morais e não apenas sobre a parcela punitiva ou sancionatória.

Parece não admitir o autor a possibilidade da relativização do princípio da restitutio in integrum, pugnando pela compensação completa do dano moral sofrido. O contorcionismo exegético, entretanto, não se coaduna com os postulados constitucionais da justiça social e da solidariedade, muito bem definido por Cristiano Chaves como sendo a tentativa de conciliação das exigências coletivas com os interesses particulares86.

O Direito Civil contemporâneo, refletindo as mudanças de paradigmas de uma sociedade cada vez mais preocupada com sua faceta humanista, volta-se, com maior ímpeto, aos aspectos sociais de sua função, revelando uma verdadeira (re)personalização desta ciência privada, erigindo-se o homem a patamar supremo do ordenamento jurídico87. O patrimônio adquire caráter subsidiário de importância, despontando a dignidade da pessoa humana como grande farol hermenêutico a guiar todas as ações do intérprete na busca incessante da solução mais justa ao caso concreto.

Assim é que

entrecorta-se o Direito Civil por limitações de índole pública e, mesmo privada, que lhe imprimem nos dias presentes um cunho de direito submetido a interesses públicos – a uma função social, fator esse declarado, inclusive por expresso em Constituições de nosso século88.

Na dicção sempre abalizada do mestre baiano Orlando Gomes “não seria possível interpretar e aplicar uma lei com desconhecimento ou desprezo de sua finalidade social89”.

Deste modo, nos parece certo que, uma vez confrontados os princípios da restituição integral, de um lado, e, de outro, os da solidariedade e da justiça social, estes prevalecerão sempre que configurados os requisitos ensejadores da aplicação da norma, respeitando-se, assim, o postulado da dignidade da pessoa humana e tomando como parâmetro o novo Direito Civil despatrimonializado90 que grassa nos tempos hodiernos.

A redução equitativa da indenização pode, portanto, incidir mesmo sobre a parcela compensatória do dano moral, nos casos excepcionais e restritos acima descritos, preservando, assim, o caráter social da norma, materializando o princípio da isonomia em sua faceta substantiva, tratando desigualmente os desiguais, como bem já advertia Rui Barbosa.

Sobre o autor
Cicero Dantas Bisneto

Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Ex-Procurador do Estado do Estado de São Paulo. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal do Estado da Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BISNETO, Cicero Dantas. Aplicação e alcance do instituto trazido pelo parágrafo único do art. 944 do novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5003, 13 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56179. Acesso em: 22 nov. 2024.

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