Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Direito de superfície:estatuto regulador, natureza, conceito e especificidades

O artigo trata sobre a suposta antinomia entre os dispositivos legais do Estatuto da cidade e do Código Civil que regulam o instituto da superfície, versando ainda sobre o conceito, natureza e aplicação do mesmo.

O direito real de superfície, disciplinado legalmente pelo Código Civil de 2002 e no Estatuto da Cidade busca atender às exigências constitucionais da função social da propriedade, flexibilizando os vetustos pilares sobre os quais o direito das coisas se apoiava.

Tais exigências se estabelecem devido à feição democrática assumida pela Carta Constitucional Brasileira em 1988. A partir do advento da nova ordem sociopolítica, não mais se admite o escopo individualista e absolutista da propriedade, impondo-lhe restrições em prol da coletividade, delimitações oriundas da análise civil-constitucional ditada pelo novel cenário jurídico.

O fato de o direito de superfície ter sido reimplantado no Brasil demonstra o compromisso de nossa casta legislativa em favorecer a proliferação das propostas de democratização das terras nacionais, de modo que foi regulado tanto em um diploma urbanístico quanto no civil. Com a superfície se dá a manutenção da propriedade tão apreciada pelos nacionais e se adiciona a facilidade de construção e uso superficial do espaço por terceiro, para fins de construção civil e habitacional.

Devido à sistemática constitucional agora em voga, um primeiro empecilho a se desvendar antes de se analisar as características do direito de superfície é justamente definir qual o diploma legal responsável pelo seu tratamento, já que duas legislações avocam esta competência, ou se ambas coexistem no novo cenário constitucional.

O fato de o Código Civil de 2002 ter sido promulgado posteriormente à edição da Carta Magna de 1988 fez com que a sua dialética funcionasse em consideração aos princípios máximos e aspirações que agora ordenam o nosso sistema jurídico, o que provocou uma certa publicização do direito civil, permitindo que a propriedade, direito civil por excelência, fosse revisado, passando a atender a sua função social, satisfazendo os preceitos da ordem econômica. Conforme o exposto, ratifica Pietro Perlingieri:

O conteúdo da função social assume um papel de tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. E isso não se realiza somente finalizando a disciplina dos limites à função social. Esta deve ser entendida não como uma intervenção “em ódio” à propriedade privada, mas torna-se “a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a um determinado sujeito”, um critério de ação para o legislador, e um critério de individuação da normativa a ser aplicada pelo intérprete chamado a avaliar as situações conexas à realização de atos e de atividades do titular.

Como o CC/02 recepcionou este universo, poder-se-ia imaginar que este deveria prevalecer em face do Estatuto das Cidades, por mais que o Estatuto das Cidades assuma a feição de lei especial e o Código Civil a de lei geral. Uma análise parca sugere a prevalência do Código Civil sobre o microssistema urbanístico, já que o artigo 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil professa a revogação da lei anterior quando lei posterior regular integralmente a mesma matéria de que tratava.

Inobstante, o Estatuto das Cidades, ao regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, apresenta o direito de superfície como mecanismo de política urbana, servindo aos fins de moradia e construção civil, atento aos ditames da função social da propriedade, perfazendo, neste tocante, uma regulamentação especial, e que, portanto, segundo o comando lex posterior generalis non derrogat priori speciali, deveria prevalecer sobre a lei posterior, geral.

Apesar das desavenças é de bom alvitre perceber ambos os diplomas como leis especiais, no que toca o direito de superfície, já que os dois dispõem de forma completa sobre o assunto, e, no pior dos cenários, não são contraditórios entre si, não surgindo daí motivos maiores para que um suplante o outro. O próprio enunciado 93, aprovado na I Jornada de Direito Civil, reconhece essa convivência, senão vejamos: “As normas previstas no Código Civil, regulando o direito de superfície, não revogam as normas relativas a direito de superfície constantes do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), por ser instrumento de política urbana”.

Com efeito, o direito pretende ser um todo coeso, o mais recomendado é coordenação sistemática destas fontes, interpretando de um modo pelo qual venham a dialogar entre si, sem fazer como que uma supere ou desabilite outra momentânea ou definitivamente.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Sobre sua natureza, apesar da omissão do Estatuto das Cidades quanto à designação da natureza do direito real de superfície, se direito real autônomo ou direito real sobre coisa alheia, a doutrina majoritária, como assegura J. Miguel Lobato Gomes, concorda em consagrá-lo como um direito real sobre coisa alheia, visto que o fundiário não perde a propriedade sobre a gleba, apenas concede a sua superfície, sobre a qual se poderá edificar ou plantar, e, excepcionalmente, a depender da natureza da obra e do que foi celebrado contratualmente, até mesmo o subsolo poderá ser incorporado no empreendimento.

Apesar da posição pacífica a respeito deste atributo do direito de superfície, Nelson Rosenvald sugere que:

Em virtude da omissão do Estatuto da Cidade e do Código Civil quanto à natureza jurídica do modelo, repercute-se na doutrina uma polêmica. Seria o direito real de superfície uma verdadeira propriedade ou um direito real em coisa alheia? A resposta é: ambos. O direito de superfície é um direito real sobre coisa alheia (lote ou gleba), pois sua formação resulta de uma concessão do titular da propriedade para fins de futura edificação (sobre ou sob o solo) ou plantação, que, quando concretizada pelo superficiário (concessionário), converterá o direito inicialmente incorpóreo, em um bem materialmente autônomo à propriedade do solo do concedente.

Trata-se de uma observação sagaz, já que as feições apresentadas pelo direito em comento admitem este desdobramento múltiplo da posse que se constitui, condicionando o surgimento de uma propriedade distinta daquela em que se assenta.

O conceito e especificidades da superfície são ricamente traduzidos no artigo 1369 e seguintes, do título IV, do Código Civil, lei nº 10406/02. Gonçalves, atendo-se à normativa legal, apresentou o seguinte conceito de direito de superfície, “[...] direito real de fruição ou gozo sobre coisa alheia”.

O Prof. Ricardo Pereira Lira oferece o seguinte conceito sobre o direito de superfície:

[...] o direito de superfície é direito real autônomo, temporário ou perpetuo, de fazer e manter construção ou plantação sobre ou sob terreno alheio: é a propriedade – separada do solo – dessa construção ou plantação, bem como é a propriedade decorrente da aquisição feita ao dono do solo de construção ou plantação nele já existente.

Poupa-se, por intermédio destes conceitos, de se descer às minúcias diferenciais existentes entre o direito de superfície e outros direitos reais a ele aproximados, como o direito real de uso e a enfiteuse.

É importante frisar que o direito de superfície, apesar de largamente regulamentado e facilmente implementável, não tem tido tanta adesão quanto se poderia esperar. A cautela com relação ao instituto se dá devido à sua característica primordial, ou seja, a falta de perpetuidade. Os contratantes, principalmente aquele que assume a posição de superficiário, tende a duvidar das vantagens de uma exploração limitada no tempo, observando apenas que as acessões que vierem a se incorporar ao terreno passariam para o domínio do fundiário.

Este temor acompanha o instituto desde eras primevas, quando ainda em Roma, segundo afirma Maurício Mota:

Embora tenha uma rica história de construção e elaboração jurídica, o direito de superfície parece ter tido uma escassa utilidade para o desenvolvimento das instituições romanas. As fontes o contemplam de maneira fragmentária e episódica.(...) Com o direito de superfície não é diferente, e, se ele não teve em Roma a aplicação efetiva de todas as suas potencialidades, não quer dizer, de maneira alguma, que não possa a vir a ser um instrumento jurídico bastante útil e necessário em outros ordenamentos.

Este aspecto sociológico acaba sobrepondo-se a todas as inúmeras possibilidades apresentadas pelo direito, que se recomenda a situações temporárias.

Conclui-se que o direito de superfície encontra no ordenamento pátrio dois comandos ou fontes centrais das quais coleta sua disciplina, o Código Civil de 2002 e o Estatuto das Cidades, e, apesar de se apresentarem como diplomas originários de campos distintos do direito, ambos se constroem como caminhos a serem trilhados até os objetivos constitucionais da função social da propriedade, do desenvolvimento econômico sustentável, moradia e pleno emprego.

Assume a feição de um direito real autônomo, mas que propicia a edificação ou plantação de direito real sobre coisa alheia, é um direito claramente flexível e que, usado sabiamente, poderá oferecer grandes oportunidades para os superficiários e fundiários que dele fizerem uso.


Referências:

GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro, 4. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 414. v. V.

LIRA, Ricardo Pereira, Elementos De Direito Urbanísticos, Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 14.

Lobato Gómez, J. Miguel. Ob. cit. pág. 70Mota, Maurício. http.www.uerj.br-direito/pubicacoes/maruício-mota/mm 2html.

PERLINGIERI, Pietro. Normas Constitucionais nas Relações Privadas. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro: Renovar, v. 6 e 7, 1999.

ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais Lúmen Júris Editora, página 403.

http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/3/3146/tde-27112006-134345/pt-br.php

https://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=6251

http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI911,21048-O+direito+de+superficie+no+novo+Codigo+Civil

Sobre os autores
Marcos Siqueira Silvério

Graduando em Direito pelo Centro Universitário Leão Sampaio - UNILEÃO em Juazeiro do Norte/CE.

Pâmela Samara de Oliveira Albuquerque

Graduanda em Direito pela Universidade Leão Sampaio.

Magda Suelen Barbosa Coelho

Graduando em Direito pela UniLeão Sampaio

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!