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A retomada da tradicional jurisprudência acerca da execução provisória da pena: comentários à decisão do Supremo Tribunal Federal

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Agenda 24/05/2017 às 14:20

Admitir a tese da execução de uma condenação criminal antes do seu trânsito em julgado, significa aceitar o absurdo, uma vez que inconstitucional e ilegal.

Resumo: Discute o tema da possibilidade da execução provisória da pena em face do princípio constitucional da presunção de inocência. Traz considerações sobre o princípio da presunção de inocência e analisa a classificação e os efeitos dos recursos no processo penal brasileiro. Comenta a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus (HC) 126292/SP, que retomou o tradicional entendimento de que é possível a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, na pendência de recurso especial ou extraordinário.

Palavras-chave: Processo penal. Presunção de inocência. Recursos. Jurisprudência. Constitucional.

Sumário: 1 Introdução – 2 O princípio constitucional da presunção de inocência – 3 Dos recursos no processo penal: classificação e efeitos – 4 Síntese do acórdão comentado – 5 Ressurge a clássica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal 6 – Conclusão – Referências


1 Introdução

No dia 17 de fevereiro de 2016, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou o Habeas Corpus (HC) 126292/SP, um caso bastante marcante em sua história. Por maioria (sete votos a quatro), ficou decidido que o início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau não ofende o princípio constitucional da presunção de inocência.

De um lado elogios, de outro perplexidade, mas a verdade é que a decisão em comento cria espaço para discussões sobre pontos importantes do pensamento jurídico atual. O presente artigo pretende proferir considerações sobre alguns desses pontos, notadamente tratar-se-á da atual retomada de jurisprudência pronunciada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. Além desta introdução e de uma conclusão, o texto conta com outras quatro partes. Na primeira parte será feita uma sucinta resenha do princípio constitucional da presunção de inocência. Na segunda será tratada, de forma concisa, a classificação e os efeitos dos recursos no âmbito do processo penal brasileiro. Na terceira será feita uma breve síntese do acórdão comentado. Na quarta, por fim, será comentado o acórdão em testilha.


2 O princípio constitucional da presunção de inocência

De acordo com a boa doutrina, o princípio da presunção de inocência tem origem no Direito Romano, porém na Idade Média, a pessoa que era acusada pelo Estado deveria provar sua inocência, isto é, o acusado era culpado desde o início da acusação.

Somente com o advento das revoluções liberais iniciadas no século XVIII, em que os poderes do Estado foram questionados, o princípio da presunção de inocência teve sua gênese reconhecida. Tais revoluções tinham como temas principais a conquista de garantias contra intervenções arbitrárias e a imposição de limites ao poder de punir. Os iluministas almejavam evitar os abusos do poder do Estado e ajustar a justiça criminal a uma justiça mais humana e imparcial.

No período pós-guerra, o princípio da presunção de inocência foi inserido na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, dispondo que “toda pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”.

Além disso, o referido princípio também está presente na Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, ao prever que “toda pessoa acusada de um delito tem o direito a que seja presumida sua inocência enquanto não for estabelecida legalmente sua culpabilidade”.

No ordenamento jurídico brasileiro, o mencionado princípio está expresso no primeiro capítulo do Título II da Constituição Federal de 1988, que trata dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, mais precisamente em seu artigo 5º, inciso LVII, em que é estabelecido que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória[1]. De acordo com a leitura do inciso, percebe-se que há um momento, no texto constitucional, que se descaracteriza a presunção de inocência, a saber, aquele instante em que sobrevém o trânsito em julgado da condenação criminal. Antes disso, o Poder Público não pode tratar os indiciados ou os réus como se culpados fossem.

Essa prerrogativa fundamental é uma garantia processual penal que tutela a liberdade pessoal e gera a inversão do ônus da prova, o acusado é presumido inocente e cabe à acusação provar a culpa, perquirindo os meios de prova contra ele.

Do direito fundamental em testilha decorre o impedimento do lançamento do nome do réu no rol dos culpados antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Além disso, em julgamentos de ações penais, não conseguindo a parte acusadora ter provas suficientes que demonstrem a culpa do acusado, o juiz deverá absolvê-lo, ou verificando-se empate na votação de órgão colegiado, deve prevalecer a decisão mais favorável ao réu.


3 Dos recursos no processo penal: classificação e efeitos

No presente tópico não será abordado o tema referente aos recursos no processo penal de forma ampla, uma vez que não há a intenção de esgotá-lo, mas tão somente explicá-lo ao ponto que se possa entender a posição adotada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus (HC) 126292/SP.

De forma simples e didática, os recursos podem ser conceituados como o meio processual voluntário para impugnar decisões, com o escopo de invalidar, integrar, esclarecer ou reformar. A questão primordial da existência dos recursos está ligada ao duplo grau de jurisdição, princípio que dá oportunidade ao vencido de levar a decisão contrária aos seus interesses a outro órgão jurisdicional superior, notadamente em face da falibilidade humana do julgador.

Segundo a teoria geral dos recursos, há uma classificação quanto ao objeto imediato do recurso ou aos motivos, baseada no direito que se busca tutelar. Assim, os recursos podem ser de natureza ordinária ou extraordinária.

Os recursos de natureza ordinária não exigem requisitos específicos para sua interposição e protegem o direito subjetivo da parte, permitindo a rediscussão da matéria, de fato e de direito. Haverá o reexame da matéria por mais de um juiz, ou seja, o órgão colegiado irá realizar a instrução probatória e o julgamento, atuando diretamente sobre as questões de fato e de direito.

Por sua vez, os recursos de natureza extraordinária exigem requisitos específicos para sua interposição e protegem especialmente a lei, buscando a sua correta aplicabilidade. Assim, esses recursos impedem a verificação dos fatos e o reexame das provas, ficando o órgão colegiado restrito à análise do direito. Tais afirmações, inclusive, já se encontram pacificadas e sumuladas há bastante tempo nos Tribunais Superiores[2]. É o que ocorre com os recursos especial, de competência do Superior Tribunal de Justiça, e extraordinário, de competência do Supremo Tribunal Federal, que tutelam a legislação infraconstitucional e a unidade da Constituição Federal, respectivamente.

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No que diz respeito aos efeitos dos recursos, são quatro: devolutivo, suspensivo, regressivo e extensivo. O devolutivo é o efeito comum a todos os recursos. Transferindo a matéria recorrida para ser novamente apreciada, através de um novo julgamento. De acordo com artigo 27, § 2º, da Lei nº 8.038, de 28 de maio de 1990, que institui normas procedimentais para os processos que especifica, perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, os recursos extraordinário e especial serão recebidos no efeito devolutivo[3].

O efeito suspensivo impede a execução imediata da decisão recorrida, suspendendo a produção dos seus efeitos. Um recurso só terá esse efeito quando a lei expressamente declarar, ou seja, na omissão da lei, não há falar em efeito suspensivo. No ponto, vale frisar que, por expressa disposição legal do artigo 637 do Código de Processo Penal, o recurso extraordinário, que é de competência do Supremo Tribunal Federal, não possui efeito suspensivo[4]. No processo penal, a regra é a não existência do efeito suspensivo.

O efeito regressivo, por sua vez, é a possibilidade de o juízo se retratar da decisão, nos casos previstos em lei. Assim, o mesmo órgão prolator da decisão reaprecia a matéria impugnada, podendo mantê-la ou reformá-la. É o que ocorre, por exemplo, no recurso em sentido estrito, conforme o disposto no artigo 589 do Código de Processo Penal[5].

Por fim, o efeito extensivo se dá nos casos de concurso de agentes. Quando os réus estão em uma mesma situação de fato, não pode o recurso beneficiar somente aquele que recorreu e prejudicar os que ficaram inertes. Tal efeito tem o escopo de impossibilitar a existência de decisões injustas. Todavia, o presente efeito não é empregado quando a decisão do recurso estiver fundada em motivos de caráter pessoal, consoante a dicção do artigo 580 do Código de Processo Penal[6].


4 Síntese do acórdão comentado

Um ajudante-geral foi condenado em primeiro grau às penas de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de reclusão, em regime fechado, e de 13 (treze) dias-multa, pela prática do crime de roubo qualificado (artigo 157, § 2º, incisos I e II, do Código Penal). O magistrado sentenciante permitiu que o condenado recorresse em liberdade. Inconformada, a defesa, e somente ela, interpôs apelação para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, no entanto, restou desprovida, ocasião em que o Tribunal de Justiça determinou a expedição do mandado de prisão em desfavor do condenado.

Irresignada contra a ordem de prisão, a defesa impetrou Habeas Corpus, com pedido de liminar, no Superior Tribunal de Justiça, ocasião em que o Ministro Presidente indeferiu o pedido de liminar.

Por conseguinte, a defesa impetrou Habeas Corpus, com pedido de liminar, no Supremo Tribunal Federal, alegando constrangimento ilegal sofrido pelo condenado, pois o Tribunal de Justiça de São Paulo decretou a prisão sem qualquer fundamento que justificasse a execução da pena antes do trânsito em julgado e que a expedição de mandado de prisão sem o trânsito em julgado da decisão condenatória representaria afronta à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e ao princípio da presunção de inocência. O Habeas Corpus foi distribuído ao eminente Ministro Teori Zavascki, da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, que deferiu a liminar para suspender a prisão preventiva decretada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Além disso, a Segunda Turma, por votação unânime afetou o julgamento do feito ao Plenário do Supremo Tribunal Federal, por indicação do Ministro Relator.

No julgamento do Habeas Corpus, por maioria de votos (7 a 4), o Plenário do Supremo Tribunal Federal denegou a ordem, com a consequente revogação da liminar, entendendo que é possível o início da execução da pena após a confirmação da sentença em segundo grau, sem que haja ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência, pois a manutenção da sentença em segunda instância encerra a análise dos fatos e das provas, autorizando, assim, o início da execução da pena.

Os ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski ficaram vencidos, uma vez que votaram pela manutenção da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que condicionava a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação, ressalvando a possibilidade de prisão preventiva, e concediam a ordem.


5 Ressurge a clássica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Em um passado não muito remoto, já na vigência da atual Constituição Federal de 1988, prevalecia na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal o entendimento de que era possível a execução provisória da pena privativa de liberdade após a condenação em segunda instância que confirmava a sentença condenatória, mesmo pendente de julgamento recurso de natureza extraordinária. Como se vê nas seguintes ementas:

CONSTITUCIONAL. PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA: FUNDAMENTAÇÃO. SENTENÇA E ACÓRDÃO: FUNDAMENTAÇÃO. MANDADO DE PRISÃO: RECURSOS ESPECIAL E EXTRAORDINÁRIO. REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA. FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A CONDENAÇÃO: REEXAME DE PROVA. PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA: ART. 224, a, DO CÓD. PENAL: LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL. I. - Com a condenação do réu, fica superada a alegação de falta de fundamentação do decreto de prisão preventiva. II. - Sentença condenatória e acórdão suficientemente fundamentados. III. - Os recursos especial e extraordinário, que não têm efeito suspensivo, não impedem o cumprimento de mandado de prisão. IV. - Questões referentes ao regime de cumprimento da pena deverão ser submetidos ao Juízo das Execuções Penais. V. - A alegação de falta de justa causa para a condenação implicaria o reexame de toda a prova, o que não se admite nos estreitos limites do habeas corpus. VI. - A presunção de violência inscrita no art. 224, a, do Cód. Penal, porque não atentatória ao direito penal da culpa, tem legitimidade constitucional. VII. - H.C. indeferido.

(STF, HC 74.983/RS, Rel. Ministro CARLOS VELLOSO, TRIBUNAL PLENO, julgado em 30/06/1997, DJ 29/08/1997 PP-40217 EMENT VOL-01880-02 PP-00261)

HABEAS CORPUS. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA EM SEGUNDO GRAU. MANDADO DE PRISÃO DO PACIENTE. INVOCAÇÃO DO ART. 5 , INCISO LVII, DA CONSTITUIÇÃO. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, ART. 669. A ORDEM DE PRISÃO, EM DECORRÊNCIA DE DECRETO DE CUSTODIA PREVENTIVA, DE SENTENÇA DE PRONUNCIA OU DE DECISÃO DE ÓRGÃO JULGADOR DE SEGUNDO GRAU E DE NATUREZA PROCESSUAL E CONCERNE AOS INTERESSES DE GARANTIA DA APLICAÇÃO DA LEI PENAL OU DE EXECUÇÃO DA PENA IMPOSTA, APÓS O DEVIDO PROCESSO LEGAL. NÃO CONFLITA COM O ART. 5 , INCISO LVII, DA CONSTITUIÇÃO. DE ACORDO COM O PAR. 2 DO ART. 27. DA LEI N 8.038/1990, OS RECURSOS EXTRAORDINÁRIO E ESPECIAL SÃO RECEBIDOS NO EFEITO DEVOLUTIVO. MANTIDA, POR UNANIMIDADE, A SENTENÇA CONDENATÓRIA, CONTRA A QUAL O RÉU APELARA EM LIBERDADE, EXAURIDAS ESTAO AS INSTANCIAS ORDINARIAS CRIMINAIS, NÃO SENDO, ASSIM, ILEGAL O MANDADO DE PRISÃO QUE ÓRGÃO JULGADOR DE SEGUNDO GRAU DETERMINA SE EXPECA CONTRA O RÉU. HABEAS CORPUS INDEFERIDO.

(STF, HC 68.726/DF, Rel. Ministro NÉRI DA SILVEIRA, TRIBUNAL PLENO, julgado em 28/06/1991, DJ 20/11/1992 PP-21612 EMENT VOL-01685-01 PP-00209)

Posteriormente, no dia 05 de fevereiro de 2009, o STF muda sua orientação e decide que enquanto houver recurso pendente não poderá haver execução da sentença condenatória e que o réu só pode ser preso depois de ocorrer o trânsito em julgado, salvo a prisão decretada a título cautelar[7].

O Tribunal Pleno do STF, por maioria, em sessão do dia 17 de fevereiro de 2016, muda sua jurisprudência passando a permitir que, depois das decisões de segundo grau confirmatórias de decisões de condenações pelo juiz sentenciante, a pena privativa de liberdade já possa ser executada.

Essa atual mudança de entendimento é bastante perigosa, pois coloca limites ao princípio constitucional da presunção de inocência. Os Ministros que entenderam dessa forma acreditam que o princípio, ao ser garantido de forma absoluta, permite e incentiva a interposição de recursos em demasia aos Tribunais Superiores, em que advogados utilizam manobras protelatórias, a fim de perpetuar processos e evitar o cumprimento das sentenças judiciais, objetivando, ao fim e ao cabo, a ocorrência da prescrição.

Acrescente-se, ainda, que, o Partido Ecológico Nacional (PEN) e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizaram as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) 43 e 44, a fim de tentar reverter o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal em fevereiro de 2016.

Na ADC 43, de autoria do Partido Ecológico Nacional, defende-se a declaração de constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, reconhecendo-se a legitimidade constitucional da recente opção do legislador (veiculada na Lei nº 12.403, de 2011) de condicionar o início do cumprimento da pena de prisão ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, já que é uma interpretação verosímil e plausível do princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988.

O Conselho Federal da OAB, na ADC 44, requer que o Supremo Tribunal Federal declare a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei nº 12.403/11, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, nos termos do artigo 102, §2º, da Constituição Federal. Assegura que o Supremo Tribunal Federal, ao analisar o Habeas Corpus nº 126.292, esvaziou o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, efetuando mutilação inconstitucional.

Como as ações envolvem o mesmo dispositivo, ensejou o julgamento conjunto. Dessa forma, o Tribunal Pleno, em 05 de outubro de 2016, indeferiu, por 6 votos a 5, os pedidos cautelares formulados nas supracitadas Ações Declaratórias de Constitucionalidade concluindo que é harmônico com a Constituição Federal o iniciar de execução criminal quando houver condenação confirmada em segundo grau, salvo atribuição expressa de efeito suspensivo ao recurso cabível.

As atuais decisões do STF criam um descompasso. A Constituição é clara e afirma com todas as letras que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. O postulado do estado de inocência afugenta suposições ou juízos prematuros de culpabilidade até que ocorra o trânsito em julgado da condenação penal. Só assim deixará de existir, em relação à pessoa condenada, a presunção de que é inocente. O princípio da presunção de inocência está unido ao trânsito em julgado. Nesse ponto, há que se utilizar do brocardo latino in claris cessat interpretativo (na clareza, cessa a interpretação).

Além disso, o artigo 283 do Código de Processo Penal determina que uma pessoa só poderá ser presa em duas situações, a saber: (i) em flagrante delito ou (ii) por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Por ordem da autoridade judiciária, a pessoa deverá ser presa em decorrência de sentença penal condenatória transitada em julgado ou em virtude de prisão cautelar (temporária ou preventiva)[8].

Ademais, a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, conhecida como Lei de Execução Penal, estabelece que o Juiz só ordene a execução quando transitar em julgado a sentença que aplica a pena privativa de liberdade ou a pena restritiva de direitos[9].

Conforme o artigo 50 do Código Penal, até mesmo uma simples pena de multa imposta por meio de um processo penal, só pode ser executada se ocorrer primeiro o trânsito em julgado da sentença condenatória que a impôs[10]. Constata-se, portanto, que seja do ponto de vista constitucional ou do ponto de vista legal, toda execução penal só pode ser realizada com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

A atual Constituição brasileira, promulgada em 1988 e destinada a reger uma sociedade fundada em bases genuinamente democráticas, ficou conhecida como “Constituição Cidadã” por ter surgido após períodos de instabilidade, turbulência e ditaduras militares, saindo de um Estado Autoritário para um Estado Democrático de Direito, em que se valoriza a democracia, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades. Para tentar apagar da memória os anos obscuros dos governos de exceção, a Constituição traz extenso rol de direitos sociais e trata em primeiro lugar desses direitos, para só depois discorrer sobre o Estado.

Como a Constituição Federal adota como modelo de organização do poder político no Brasil o Estado Democrático de Direito, calcado sobre um sistema garantista, em que se almeja sempre a proteção dos indivíduos, o princípio da presunção de inocência deve ter o maior alcance possível. Ser culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória discrepa com o sistema constitucional brasileiro.

Cesare Beccaria, em sua obra Dos Delitos e das Penas, de 1764, já afirmava:

Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz, e a sociedade apenas lhe pode retirar a proteção pública depois que seja decidido que ele tenha violado as normas em que tal proteção lhe foi dada. Apenas o direito da força pode, portanto, dar autoridade a um juiz para infligir uma pena a um cidadão quando ainda se está em dúvida se ele é inocente ou culpado (BECCARIA, 2003, p. 37).

Esse novo entendimento do STF é adotar o direito da força citado por Beccaria. Trata-se de nítido retrocesso, consistente na saída do Estado Democrático de Direito e na volta a um Estado Autoritário. Apesar das regras contidas nos artigos 637 do Código de Processo Penal e 27, § 2º, da Lei 8.038/1990 negarem efeito suspensivo aos recursos extraordinários, há de prevalecer a força normativa da Constituição Federal.

Não custa lembrar os ensinamentos do jurista italiano Luigi Ferrajoli, para quem o princípio da presunção de inocência “representa o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado” (FERRAJOLI, 2002, p. 441).

A propósito, importante ressaltar trecho de Montesquieu, citado por Ferrajoli:

A liberdade política consiste na segurança, ou ao menos na convicção que se tem da própria segurança e essa segurança nunca é posta em perigo maior do que nas acusações públicas e privadas, de modo que, quando a inocência dos cidadãos não é garantida, tampouco o é a liberdade (FERRAJOLI, 2002, p.441).

E continua Ferrajoli afirmando que:

A presunção de inocência não é apenas uma garantia de liberdade e de verdade, mas também uma garantia de segurança ou, se quisermos, de defesa social: da específica “segurança” fornecida pelo Estado de direito e expressa pela confiança dos cidadãos na justiça, e daquela específica “defesa” destes contra o arbítrio punitivo (FERRAJOLI, 2002, p.441).

A Suprema Corte foi contra o garantismo e retirou dos cidadãos brasileiros a garantia da liberdade e da segurança. Colocou na balança o princípio da presunção de inocência de um lado e, de outro, a efetividade da função jurisdicional penal. E concluiu que esta pesa mais que aquele, com o escopo de dar maior racionalidade e celeridade ao sistema judicial brasileiro.

Mitigar o princípio constitucional da presunção de inocência não é solução dos problemas do Poder Judiciário. A Justiça tem que ser rápida, mas sem que, com isso, se reduza a envergadura das garantias constitucionais. Se o problema é a sobrecarga dos Tribunais Superiores, por causa do uso indiscriminado de recursos manifestamente inviáveis, então, por óbvio, não é unicamente jurídico, mas sim cultural. Se advogados abusam no uso de recursos, é porque tem algo de errado em sua formação. Urge, pois, uma mudança na mentalidade dos advogados e nas suas respectivas instituições de ensino.

Os recursos existem para serem utilizados. Não admitir isso, é tolher a ampla defesa. Essa situação é totalmente contrária aos princípios de um Estado Democrático de Direito. Sem direito de defesa, não há regime democrático. Então, uma solução seria uma reforma na legislação processual compatível com a Constituição Federal, para que se encontre uma maior racionalidade ao modelo recursal, e, obviamente, aumentar a capacidade dos Tribunais Superiores, a fim de melhorar o respectivo funcionamento. Se se vive em um Estado Democrático de Direito, é o Estado que deve se sujeitar à Constituição Federal, e não o contrário, tampouco desconsiderar um dos direitos fundamentais a que fazem jus os cidadãos do Brasil.

Essas incompreensíveis decisões do Supremo Tribunal Federal trarão gravíssimas consequências, pois se tornará um Tribunal incompatível com os padrões do regime democrático.

Além disso, vai ocorrer uma “avalanche” de impetrações de habeas corpus, pois quem tiver execução provisória contra si irá impetrar a ação constitucional, arguindo atentados aos direitos fundamentais, ilegalidades ou excessos em juízos condenatórios, aumentando consideravelmente o número de impetrações nos Tribunais Superiores.

Outro efeito é piorar o que já está péssimo. A superlotação nos presídios brasileiros é notória. Há superlotação em todas as unidades da federação. O sistema penitenciário brasileiro não é capaz de receber a quantidade de pessoas que serão afetadas com o atual posicionamento do STF. O Brasil já tem a quarta maior população carcerária do mundo. Com essas decisões, provavelmente ficará em primeiro lugar em breve.

Mas a pior consequência é, sem sombra de dúvidas, alguém iniciar a execução de sua pena ou cumpri-la integralmente e o recurso de natureza extraordinária reformar a sentença penal condenatória. O Poder Judiciário vai pedir desculpas pelo que aconteceu? A liberdade será restituída? Qual é o preço da liberdade? É impossível voltar ao estado anterior. A liberdade perdida não tem como ser devolvida.

Sobre o autor
Felipe Fernandes Valente Júnior

Inspetor de Polícia Civil. Bacharelado em Direito (2011) - Faculdade Christus. Pós-graduado em Direito Constitucional (2018) - UniNassau.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JÚNIOR, Felipe Fernandes Valente. A retomada da tradicional jurisprudência acerca da execução provisória da pena: comentários à decisão do Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5075, 24 mai. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56256. Acesso em: 23 dez. 2024.

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