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Novo modelo de racionalidade jurídica para os processos de recuperação de empresas no Brasil.

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Agenda 09/05/2017 às 15:28

2 A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DA JURISDIÇÃO

No ano de 1748, o Barão de Montesquieu lançou a obra “Do Espírito das Leis” com uma proposta de arranjo institucional inspirado na Constituição da Inglaterra da primeira metade do século XVIII. Estruturalmente próxima do modelo proposto por John Locke, o escritor francês buscava, a rigor, uma sistemática capaz de combater o absolutismo, ou seja, um sistema de controle recíproco (freios e contrapesos) entre os órgãos mais relevantes do Estado. Tratava-se de uma alteração pragmática para garantir a liberdade política. Diferentemente de Locke (que estabelecia a supremacia do Parlamento), o modelo de Montesquieu não estabelecia qualquer hierarquia entre os Poderes e o sistema de freios e contrapesos visava não a garantia de direitos preexistentes, porém a construção dinâmica de relações sociais confiáveis, viabilizando, inclusive, o surgimento de interesses emergentes por meio da ação concertada do Poder Público[16].

O modelo de Montesquieu ainda hoje exerce grande influência nas democracias ocidentais. Não obstante, com o passar do tempo, houve uma grande ampliação da função jurisdicional, tornando-se necessário o aprofundamento acerca do seu papel e dos seus limites no sistema de freios e contrapesos praticado atualmente. Duas questões centrais demandam esclarecimento a fim de evitar bloqueio na efetivação dos direitos fundamentais: a natureza da atividade do magistrado e a legitimidade de suas decisões.

2.1 A FUNÇÃO POLÍTICA DO MAGISTRADO NO SISTEMA BRASILEIRO DE FREIOS E CONTRAPESOS

Nos últimos anos, houve uma intensificação dos debates em torno do cotejo entre o sistema judicial e os demais fóruns de tomada de decisão do aparelho estatal. Nesse contexto, construiu-se o entendimento na Ciência Política de que não há distinções essenciais entre as decisões judiciais e aquelas adotadas pelas demais instâncias institucionais, tendo em vista que nos dois casos há a observância de um determinado procedimento com a conclusão decorrendo da maioria dos votos. O exercício da jurisdição, portanto, sofre profundas transformações a fim de se adequar ao modelo democrático vigente, mormente em razão da necessidade de persecução conjunta de cumprimento das políticas públicas[17].

Com efeito, nos debates político-jurídicos, freqüentemente se invoca o princípio da separação de Poderes como fundamento para definir os limites de atuação de cada um dos órgãos estatais. Não obstante, mister verificar em que medida esse argumento se amolda ao presidencialismo de coalizão no sistema constitucional brasileiro. A rigor, a separação de Poderes no Brasil confere ênfase no modelo de freios e contrapesos desenvolvido a partir das idéias de Montesquieu. Deveras, vislumbrando na Constituição da Inglaterra um arquétipo capaz de garantir liberdade política, Montesquieu previu a divisão do aparelho estatal entre três estruturas com funções distintas: Poder Legislativo, com o encargo de elaboração das leis; Poder Executivo das coisas que dependem do direito das gentes, com o encargo de conduzir a política externa e manter a segurança nacional; e o Poder Executivo das coisas relacionadas com o direito civil, com competência para julgamento criminal e civil. Com essa organização institucional, Montesquieu buscava um controle recíproco entre os Poderes para que nenhum deles abusasse no exercício de suas atribuições[18]. Esse modelo influenciou a elaboração da Constituição norte-americana, contudo, no modelo atual, longe de possuir um poder neutro, o Judiciário exerce um relevante controle de constitucionalidade, caracterizando o veto absoluto. Essa distinção, entretanto, se afina com o conjunto das idéias da obra, uma vez que aprimora o sistema de controle recíproco entre os Poderes[19].

Interessante observar que, na prática, com a decisão de Marbury v. Madison (1803), houve a superação do “mito” da separação dos poderes e o Judiciário passou a exercer um papel ativo no sistema de freios e contrapesos. Conseqüentemente, assumiu, juntamente com outros centros de autoridade (nacionais e internacionais, como a Organização Mundial do Comércio), o encargo de selecionar os interesses emergentes que seriam alçados à categoria de direitos subjetivos. Esse fenômeno se intensificou no decorrer do século XX, mormente com a “Era Lochner” (entre 1890 e 1940), em que se apresentou uma seletividade restritiva. Nos anos 50, o Judiciário adotou uma postura mais neutra e a partir da decisão de Brown v. Board of Education (1954), o Judiciário assumiu uma postura de seletividade inclusiva. Na Europa, a determinação judicial de direitos se expandiu a partir do término da Segunda Guerra Mundial com a sistemática do “controle de constitucionalidade”. No Brasil, percebe-se desde a República Velha a tentativa de reconhecimento de interesses emergentes pela via judicial, como simboliza a tentativa de ampliação do habeas corpus por Rui Barbosa. Contudo, a reforma constitucional de 1926 freou esse movimento naquele momento[20].

Essa forma de atuação do Judiciário evidencia que a jurisdição há muito tempo se afastou da noção de declaração de direitos preexistentes aos conflitos de interesses. A rigor, a atribuição do rótulo de “direito subjetivo” a determinadas posições decorre da seleção dos interesses que devem ser estabilizados na sociedade. Dos embates institucionalizados entre os grupos sociais, nos diversos fóruns de tomada de decisão na sociedade democrática (inclusive no Judiciário), exsurgem os interesses que passarão a se incorporar oficialmente na atuação do aparelho estatal e mesmo nas relações entre os particulares. A dinâmica social se intensificou pela participação democrática (mormente com a ampliação do sufrágio e organização de determinados grupos de trabalhadores), interação entre mercados diversos, desenvolvimento tecnológico e política econômica. Nesse cenário, a jurisdição deve ser compreendida como participação efetiva na estruturação de políticas públicas, com base no modelo de freios e contrapesos, almejando a construção de relações sociais justas e confiáveis[21].

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O discurso jurídico dominante ainda busca a manutenção do caráter científico, politicamente neutro, da interpretação judicial. Não obstante, Hans Kelsen há muito já reconhecera a natureza política da hermenêutica, contrapondo-se à visão tradicional. Kelsen observou que, sob a perspectiva do direito positivo, não existe qualquer critério capaz de indicar qual das possíveis interpretações possíveis dentro da moldura legal deve prevalecer, tratando-se de problema de política do Direito. Finaliza o seu raciocínio, sustentando que na atividade cognoscitiva do aplicador do direito, na escolha de uma das alternativas cabíveis na moldura legal, incidirão normais morais, de justiça e valores sociais simbolizados por expressões, tais como bem comum, interesse do Estado, progresso, entre outros. A interpretação realizada por um órgão aplicador do Direito (autêntica) poderia inclusive resultar na construção de uma norma completamente fora da moldura legal[22].

Nesse contexto, não seria despiciendo ressaltar a distinção ontológica entre texto e norma. Naturalmente, o magistrado deve levar em consideração o contexto social e as próprias idéias debatidas na comunidade jurídica acerca do texto, contudo é inegável que ele construirá a norma individual a regular o caso concreto. Ademais, por vezes, o significado se afasta tanto do significante que não é mais possível reconhecer na norma a aplicação do texto. A consagração dos direitos sociais ensejou a constitucionalização de uma série de promessas políticas e normas principiológicas, demandando dos seus aplicadores uma postura muito mais ativa. Há uma influência recíproca entre a política que transforma o direito e o papel político da magistratura que cria a norma tomando como ponto de partida o texto[23].

No sistema de freios e contrapesos brasileiro, evidente a atuação política dos juízes. Com efeito, a Constituição de 1988 criou um modelo de controle de constitucionalidade amplo, previu uma série de direitos fundamentais com aplicação imediata, diversos compromissos políticos e normas com conteúdo aberto. Acrescente-se ainda que desde o advento da referida Constituição, construiu-se o entendimento de que o seu texto possui caráter jurídico no sentido de vinculação dos intérpretes e não apenas de exortação ao legislador. Definiu-se, outrossim, a força normativa dos princípios, que alteraram a forma de compreensão das regras, atribuindo grande poder criativo ao intérprete. Por derradeiro, digno de registro que o art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (DL 4.657/42) impõe que o magistrado aplique a lei de acordo com os fins sociais e as exigências do bem comum.

Inegável, portanto, a natureza política da atuação jurisdicional. Tanto quanto os legisladores e gestores, os magistrados possuem liberdade criativa e se sujeitam a uma série de constrições institucionais. Não obstante, todos são responsáveis por selecionar os interesses emergentes que merecem a institucionalização em relações justas e confiáveis. Entretanto, a tese da função política do Judiciário enfrenta uma crítica relevante. Não parece razoável aceitar a idéia de que pessoas destituídas de legitimidade popular gozem de liberdade tão ampla em uma sociedade democrática. O argumento é relevante e demanda aprofundamento. É o que se pretende no próximo tópico.

2.2 O ENGAJAMENTO NA POLÍTICA PÚBLICA COMO FATOR DE LEGITIMAÇÃO JURISDICIONAL

A argumentação ainda hoje dominante de que a aplicação do direito constitui uma função técnica cumpre uma finalidade relevante: atribuir legitimidade para que atores sociais não eleitos possam interferir em decisões políticas de agentes escolhidos pelo voto popular. Desse modo, a constatação de que no sistema constitucional brasileiro os magistrados exercem função política requer a busca por outros fatores de legitimação, até mesmo porque o texto da Carta Magna estabelece que o povo exercerá o poder político diretamente ou por meio de representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único, CF). A ausência de legitimação do Judiciário se encontra na base de diversas discussões jurídicas atuais.

Inicialmente, contudo, uma observação precisa ser destacada. Os juízes encontram limites evidentes para a sua atividade, tanto de natureza jurídica quanto política. Os limites jurídicos apontam para as regras de fixação da competência, a necessidade de provocação, o cumprimento das regras processuais, a garantia da fundamentação, entre outros.  No que tange aos limites políticos, registre-se que os magistrados possuem grande liberdade criativa, porém devem buscar a legitimidade de suas decisões em cada caso. Indubitavelmente, a ampliação da legislação e a universalização da jurisdição e do controle de constitucionalidade (mormente com base em uma constituição repleta de carga axiológica) conferiram um evidente status político ao Judiciário e, portanto, ele está sujeito a constrições próprias da atividade política. Nesse contexto, mostra-se de fundamental importância a construção de um diálogo institucional entre as diversas instâncias de decisão do sistema político nacional. O principal consectário desse pensamento remete à concepção de que não cabe ao Supremo Tribunal Federal a última palavra sobre a Constituição.

Roberto Dahl há muito tempo já sustenta a natureza política e jurídica da Suprema Corte. Isso porque os processos que chegam à Suprema Corte envolvem desacordos entre membros da sociedade, caracterizando a decisão como de viés político. A atuação da Suprema Corte demanda a escolha de alternativas de uma política pública cujo fundamento não pode ser extraído diretamente da jurisprudência ou do ordenamento jurídico. Trata-se, sem dúvidas, de uma função formuladora de políticas por parte da Suprema Corte. Essa constatação implica na necessidade de busca pela legitimação da atuação da Suprema Corte. Assim, observa que a forma de nomeação dos juízes da Suprema Corte enseja o alinhamento com as convicções políticas da maioria da população que elegeu os governantes nomeantes. Ademais, os dados demonstram que uma maioria sólida de legisladores sempre consegue contornar o veto da Suprema Corte para uma determinada política pública por meio da edição de novas leis, o que faz com que a atuação judicial nos casos mais relevantes no máximo apenas consiga postergar a implementação da política. A Suprema Corte integra a aliança nacional dominante e, consequentemente, apóia as suas principais políticas. Dessarte, a Suprema Corte possui como principais funções conceder legitimidade às políticas fundamentais da aliança política dominante, bem como aos padrões relevantes para o funcionamento da democracia[24].

No Brasil, a atuação do Supremo Tribunal Federal possui semelhanças evidentes. A despeito dos riscos permanentes de uma supremacia judicial em um sistema que confere poderes tão amplos ao Judiciário, as evidências empíricas apontam para uma atuação do STF alinhada com a aliança política dominante e com a opinião pública. Do mesmo modo como nos Estados Unidos, nas questões políticas mais relevantes, o Judiciário mantém uma visão sincronizada com o grupo político dominante, enquanto que nas políticas secundárias os ministros estão menos sujeitos a constrangimentos institucionais. A credibilidade política adquirida pelo alinhamento com a aliança política viabiliza a atuação contramajoritária em casos de violação de direitos fundamentais.

Para conter os excessos do Judiciário, inclusive, muitas vezes houve uma reação legislativa. No Brasil, pode-se citar como exemplo a Emenda Constitucional 29/2000, que permitiu o estabelecimento de alíquotas progressivas para o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) que havia sido vedado pelo RE 153.771. Do mesmo modo, a Emenda Constitucional 39/2002 permitiu a contribuição para custeio da iluminação pública após diversas decisões haverem decretado a inconstitucionalidade de leis municipais que instituíam taxa de iluminação pública. Entre tantos outros, esses exemplos demonstram a incidência adequada da teoria dos diálogos institucionais, provando que a interação entre o STF e o Congresso contribuiu com a adoção de melhores soluções para o sentido da Constituição. Nesse sentido, o sistema de freios e contrapesos brasileiro não atribui a nenhum órgão o poder de dar a última palavra sobre o sentido da Constituição, até mesmo por não vincular o Parlamento (art. 28, parágrafo único, Lei 9.868/99). As vantagens desse modelo são notáveis, tendo em vista que estabelece pontos de acesso diversos aos interessados, reduz atuações unilaterais e desenvolve uma concretização constitucional interativa e aberta a críticas constantes[25].

Naturalmente, essa interação também envolve o Poder Executivo. No presidencialismo de coalizão praticado no Brasil a partir da Constituição de 1988, o presidente assumiu grande poder institucional de maneira que a iniciativa legislativa das áreas mais relevantes foi atribuída ao Chefe do Executivo (tributação, orçamento e organização da administração pública). A interferência de uma política pública depende do alinhamento com o presidente. Ademais, o Executivo vem demonstrando grande sucesso de aprovação legislativa dos seus projetos e dominância expressiva em relação aos projetos de lei de iniciativa do Legislativo[26].

Da análise da função política do Judiciário e da sua interação dialógica com os demais Poderes, percebe-se que a legitimidade da interpretação judicial repousa no seu alinhamento com as políticas públicas estabelecidas pelo Executivo e pelo Legislativo. Nos últimos anos, houve uma crescente interferência do Judiciário em matéria de políticas públicas, como fica evidente no caso de medicamentos e terapias. Não obstante, a falta de um raciocínio jurisdicional apropriado para esse tipo de demanda levou a uma profusão de decisões emocionais que colocam em risco a continuidade da política pública, desorganizam a atividade administrativa e comprometem recursos escassos[27]. Na realidade, a construção de soluções pelos juristas tem perpassado pela ponderação de valores, como reserva do possível e mínimo existencial, valendo-se ainda do princípio da proporcionalidade, bem como do abuso da utilização de princípios. No mais das vezes, desprezam-se as conseqüências econômicas das decisões. Para além do evidente cenário de insegurança jurídica, referida atuação judicial, a todas as luzes, viola o sistema de freios e contrapesos brasileiro.

Deveras, a configuração da interpretação judicial como atividade política afasta a possibilidade de se encontrar respostas para problemas jurídicos no próprio ordenamento jurídico ou mesmo na importação de teorias da filosofia pós-metafísica[28]. O reconhecimento da ausência de qualquer método efetivo de se chegar a uma resposta “correta” e a compreensão da jurisdição como mecanismo de seleção dos interesses emergentes que merecem estabilização institucional (da mesma forma como ocorre nas demais instâncias políticas) exigem o alinhamento do magistrado com as escolhas políticas oriundas dos representantes eleitos. Naturalmente, isso não significa apego às formas jurídicas tradicionais, mas sintonia com o instrumental das políticas públicas, campo próprio para a persecução dos objetivos pinaculares da sociedade. A liberdade decisória do magistrado, desse modo, é conformada pela política pública em que se insere o direito subjetivo em debate.

Sobre o autor
Gerardo Alves Lima Filho

Presidente do Sindicato dos Oficiais de Justiça do DF e Oficial de Justiça do TJDFT. Bacharel em Direito pela UFBA, Especialista em Direito pela ESMA/DF e Mestre em Direito pelo UniCEUB. Foi diretor e gestor de diversas entidades representativas de servidores públicos, exerceu o cargo de Policial Rodoviário Federal e foi professor de diversas faculdades de Direito de Direito Empresarial, Civil, Processual Civil e Prática Civil. Publicou inúmeros artigos em sites e revistas jurídicas especializadas. Possui experiência em Direito Administrativo, Previdenciário, Constitucional, Empresarial, Tributário, Civil, Processo Civil, Trabalho, Processo do Trabalho, Penal e Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA FILHO, Gerardo Alves. Novo modelo de racionalidade jurídica para os processos de recuperação de empresas no Brasil.: O diálogo legitimador entre a interpretação jurídica, as políticas públicas e as instituições econômicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5060, 9 mai. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56281. Acesso em: 15 nov. 2024.

Mais informações

Artigo que elaborei quando cursei a disciplina Temas Aprofundados de Direito Constitucional no Mestrado do UniCEUB com o Professor José Levi.

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