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RPV: os limites constitucionais das legislações locais - Proporcionalidade e Correção Monetária.

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Agenda 07/03/2017 às 22:29

Reflexões sobre os limites constitucionais impostos à fixação dos valores teto de RPV pelas legislações locais, no uso da competência legislativa delegada pelo art. 100, § 4º, da CF/88.

1.         INTRODUÇÃO

O Estado (lato sensu), pela natureza dos bens públicos – inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis –, ao responder por suas condenações judiciais de pagar quantia certa, não se sujeita ao regime de execução direta, próprio dos bens particulares, não se submetendo, pois, a atos de penhora e expropriação de seus bens.

Assim sendo, a Constituição Federal de 1988, seguindo a tendência das suas antecessoras, disciplinou, em seu art. 100, a forma de o Poder Público saldar suas dívidas judiciais com os particulares.

Por não ser o enfoque deste estudo, a definição e o procedimento dos pagamentos judiciais da Fazenda Pública, não adentraremos às especificidades do Precatório, via mais demorada e para créditos de maior monta, centrando-se apenas na Requisição de Pequeno Valor (RPV), via mais célere e para créditos de menor quantia.

O RPV não é previsto originariamente na Constituição, ganhando disciplina tão somente com as Emendas Constitucionais nºs. 30/2000 e 37/2002. São, consoante as disposições dos §§ 3º e 4º do aludido art. 100, ordens de pagamento emitidas pelo próprio juízo da execução e direcionadas à autoridade competente para realizar o pagamento, devendo ser pagas, em regra, em até 60 (sessenta) dias da entrega do RPV à referida autoridade (art. 17 da Lei nº 10.259/01 e art. 13, inc. I, da Lei nº 12.153/09), também sob pena de sequestro da quantia devida diretamente da conta bancária do ente público.

Humberto Theodoro Junior[1] assim resume o procedimento dos RPV’s, ainda sob a égide da antiga lei processual:

Não há dúvida que, nas condenações de 'dívidas de pequeno valor', a execução contra a Fazenda Pública (Federal, Estadual, Distrital ou Municipal) não exige o processamento sob a forma de precatórios judiciários (CF, art. 100, § 3º, com a redação da EC nº 30). Há, porém, que se instaurar e desenvolver a ação de execução de sentença, nos moldes dos arts. 730 e 731 do CPC: o credor há de requerer a execução, e a Fazenda devedora terá de ser citada para embargar, em trinta dias. Não oferecidos embargos ou sendo estes rejeitados, expedir-se-á ordem de pagamento, a ser cumprido no prazo assinado pelo juiz.

Entretanto, se, de um lado, privilegia a celeridade na satisfação do crédito do administrado, por outro, afasta-se do necessário planejamento orçamentário dos gastos públicos, o que poderia ameaçar a continuidade das atividades estatais e prejudicar a coletividade.

Por essa razão, a própria Carta Constitucional relegou a cada ente federado a possibilidade de limitar os RPV’s a um teto, desde que por lei própria e “segundo as diferentes capacidades econômicas” (art. 100, §4º, da CF/88) – tal limite será o centro deste trabalho, motivo pelo qual será retomado nos capítulos subsequentes.

Como regra intertemporal, a EC nº 37/2002 inseriu no ADCT (art. 87 c/c art. 97, §12º), para os casos de omissão legislativa e até que a omissão seja sanada, os limites de 40 (quarenta) salários-mínimos para os Estados e o Distrito Federal e de 30 (trinta) salários-mínimos para os Municípios.

A partir da sua criação, foram inúmeras as legislações estaduais e municipais que passaram a limitar o pagamento por RPV a valores irrisórios, esvaziando o instituto e prejudicando sobremaneira os particulares. Então, com a edição da EC nº 62/2009, o §4º do referido artigo constitucional passou a prever como valor mínimo para o limite do RPV aquele correspondente ao maior benefício do RGPS (Regime Geral de Previdência Social).

A despeito do estabelecimento genérico desse limite mínimo, indiscutível o balizamento da discricionariedade legislativa infraconstitucional a, no mínimo, dois critérios: o da atualização do teto, de modo a não se engessar um limite e tornar, com o passar dos anos, irrisórios os valores pagos via RPV; e o da proporcionalidade, “segundo as diferentes capacidades econômicas” de cada ente federado.

Em relação ao primeiro, menos complexa é a sua abordagem e definição, já tendo a jurisprudência, inclusive do nosso eg. TJMG, se manifestado no sentido da inconstitucionalidade de fixação de limite sem a previsão de atualização.

No que toca ao segundo, por se fundamentar em norma principiológica e no conceito jurídico aberto de capacidades econômicas, sua abordagem será mais bem aprofundada. Muito provavelmente não consiga se chegar a uma definição exata de proporcionalidade para a fixação do limite de RPV, mas, sem dúvidas, estabelecer-se-ão limites para que se configure eventual desproporcionalidade e, consequentemente, a inconstitucionalidade das regras que se afastem deste critério.

2.         A INDISSOCIABILIDADE ENTRE A ATUALIZAÇÃO DO TETO DO RPV E A CORREÇÃO MONETÁRIA

2.1.      A necessidade de atualização do limite de RPV

A EC nº 37/2002, ao inserir o art. 87 ao ADCT, deixou clara a intenção do legislador constitucional – ainda que no uso do poder constituinte reformador – de, ao ver fixado um teto às dívidas judiciais do Estado pagas por RPV, estabelecer a sua necessária atualização.

Desse modo, fica garantida a efetividade do instituto, resguardando os interesses dos particulares, que não veriam o seu direito de receber do Poder Público pelo caminho mais célere se corroer com o tempo.

É que, caso não fosse prevista a atualização desse limite, com o passar dos anos, a evolução da inflação e a desvalorização da moeda, a satisfação de créditos pela via do RPV se tornaria irrisória, deslegitimando o instituto e retirando do credor a real possibilidade de optar por abrir mão de um crédito mais vultoso pela possibilidade de receber seu pagamento com maior rapidez.

Por ter a Constituição adotado como critério de atualização o parâmetro do salário-mínimo, entendem alguns (aqui destaco o em. Min. Carlos Ayres Britto, posição aguerridamente defendida na ADI nº 2.868 e na Reclamação nº 3.014 / SP[2]), baseando-se no princípio da simetria constitucional, que as legislações locais deveriam, obrigatoriamente, também adotá-lo.

Esse foi o entendimento abraçado pelo eg. Tribunal de Justiça do nosso Estado de Minas Gerais, quando do julgamento da Arguição Inconstitucionalidade nº 1.0024.02.876779-6/005, realizado no dia 09 de setembro 2011 pelo Órgão Especial, decidindo pela inconstitucionalidade da Lei Mineira que fixava, sem qualquer tipo de parâmetro atualizador, o valor de R$ 11.000,00 (onze mil reais) como o limite de pagamento de RPV’s.

Nesse sentido, pela lucidez das manifestações, válida a transcrição de trechos do voto prolatados pelo em. Desembargador Wander Marotta, que guiou a Corte Superior no aludido julgamento:

[...] A Constituição, com tal finalidade, fixa um valor mutável e corrigível no tempo; assim o quis o constituinte.     
O legislador mineiro, ao contrário, matreiramente, petrificou-o como se fora um dos profetas de Aleijadinho... Ora, a orientação da Constituição, à evidência, é outra e diversa.           
Imagine-se: a Lei do Piauí, hoje, tem o valor de 5 SM atuais. O de Minas Gerais será, sempre e fielmente, o de R$11.000,00 (o mesmo da data da edição da lei - em 2005), CORROÍDO, PORTANTO, COM A INFLAÇÃO DE SEIS ANOS JÁ PASSADOS (seguramente um poder de compra menor em quase 50%).           
Este ‘modelo’ escultural da Lei de Minas cria um mecanismo automático de ‘desvalorização’ do ‘crédito de pequeno valor’, que, ao fim e ao cabo, irá desmaterializá-lo, contrariando o cânone constitucional da permanente atualização via salário mínimo.    
Há, no modelo adotado pela lei questionada, uma constante e permanente ‘inconstitucionalização’ do dispositivo. A cada ano, ele será mais ‘inconstitucional’, menos atual e nunca adequado à imposição de sua atualização. [...]. (TJMG – Arg Inconstitucionalidade nº 1.0024.02.876779-6/005, Relator(a): Des.(a) Antônio Armando dos Anjos, CORTE SUPERIOR, julgamento em 09/11/2011, publicação da súmula em 24/01/2012)

Compartilhou a mesma linha de interpretação e de forma fundamentada o em. Des. Maurício Barros, também cabendo destacar uma parte do seu voto:

[...] A bem da verdade, entendo que os Estados-Membros não podem fixar a obrigação de pequeno valor em quantia abaixo daquela prevista no art. 87 do ADCT, porém, o colendo Supremo Tribunal Federal já definiu que sim. Entretanto, prosseguindo em tal raciocínio, se o Estado-Membro não tem que seguir o valor (ou "piso", como entendeu o Ministro Ayres Britto em seu voto vencido no julgamento da ADI 2.868-5) de 40 salários mínimos, tem que seguir a determinação constitucional de fixar o valor em número de salários mínimos.
Em razão disso, ainda que se reconheça que se trata de norma transitória (art. 87 do ADCT da Constituição Federal), tal norma deve ser observada pelo Estado-Membro quando da fixação da obrigação de pequeno valor. [...]. (TJMG – Arg Inconstitucionalidade nº 1.0024.02.876779-6/005, Relator(a): Des.(a) Antônio Armando dos Anjos, CORTE SUPERIOR, julgamento em 09/11/2011, publicação da súmula em 24/01/2012)

Tal entendimento seria, pois, mais radical, sobretudo se considerarmos a política de valorização do salário mínimo, garantindo aumento real à renda mínima dos trabalhadores, levada a cabo nos quase quatorze anos dos governos petistas.

Ora, a constante correção do teto do RPV pelo salário mínimo poderia até mesmo prejudicar as finanças públicas, pelo que – mais por prudência que por convicção – prefere-se, aqui, defender essa necessidade de atualização, no mínimo, pela inflação, o que acaba inibindo, também, o argumento da transitoriedade da previsão inscrita no ADCT, utilizado por alguns para dar total autonomia aos entes federados na elaboração da lei que trate do tema.

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A Corte Suprema, contudo, quando poderia analisar e decidir sobre a matéria na Reclamação nº 3.014 / SP, não o fez, entendendo, por maioria, que a Reclamação, naquele caso, não era a via própria, já que a ADI nº 2.868, invocada como acórdão paradigmático, não havia se pronunciado sobre o tema, se limitando “a proclamar a possibilidade de que o valor estabelecido na norma estadual fosse inferior ao parâmetro constitucional”.

Vale ressaltar, ainda, que nada impede um ente federado de prever um critério de atualização superior à inflação. O entendimento aqui abordado apenas busca averiguar que o mínimo exigido pela conjuntura constitucional é a correção monetária do limite, pelo que se passa a dedicar algumas linhas ao instituto.

2.2.      A correção monetária como limite à atualização do teto do RPV

“O Regime Constitucional da Correção Monetária”[3] é o título do artigo de autoria do em. Min. Ayres Britto, publicado ainda no ano de 1996, em que são traçados os ditames constitucionais do instituto da correção monetária, classificando-o como verdadeira garantia de atualização, em face da gradual perda do valor de compra da moeda.

Pela clareza com que trata do assunto, opta-se por colacionar, ipsis literis, alguns trechos do mencionado estudo. O autor inicia sua análise identificando as passagens constitucionais que fazem menção à correção monetária:

[...] 1.1. Do acervo linguístico da Constituição de 1988 faz parte a direta expressão ‘correção monetária’, como faz parte a variante expressional ‘corrigidos monetariamente’. A primeira locução aparece no elenco das disposições constitucionais transitórias. A segunda, no rol das normas permanentes.

[...]

2.1. De ambos os dispositivos ressai a compreensão de ser a correção monetária algo mais do que simples palavreado ou signo linguístico de que se vale o legislador constituinte para compor, morfológica e semanticamente, uma dada figura de direito. Ela é, em si mesma, essa figura ou instituto do direito, na medida em que versada como conteúdo empírico de norma constitucional. [...].

Um dos pontos que mais se adequam à análise proposta é o de que a correção monetária nada modifica, isto é, por ela “a Constituição manda que as coisas mudem..., para que nada mude: quer dizer, o objetivo constitucional é mudar o valor nominal de uma dada obrigação de pagamento em dinheiro, para que essa mesma obrigação de pagamento em dinheiro não mude quanto ao seu valor real.” (BRITTO, 1996).

Continua destacando que uma cláusula de preservação do valor real e, portanto, de atualização pela correção monetária, nada mais é que a manutenção do equilíbrio da equação econômico-financeira, impedindo “que a perda do poder aquisitivo da moeda redunde no empobrecimento do credor e no correlato enriquecimento do devedor de uma dada obrigação de pagamento em dinheiro.” (BRITTO, 1996).

E conclui com os pertinentes dizeres:

13.3. Qualquer idéia de incidência mutilada da correção monetária, isto é, qualquer tentativa de aplica-la a partir de um redutor percentual, implica fraude à Constituição. [...].

13.5. O que importa é sempre a eliminação do fosse entre o valor nominal da moeda, no ponto de partida da relação entre as partes, e o valor real a menor que ela possa vir a ter no curso da mesma relação obrigacional. [...]. (BRITTO, 1996)

Como se percebe, a correção monetária é instituto jurídico-constitucional que, em se tratando de obrigações de pagar quantia, se não observada, leva à perda real, ao desequilíbrio da relação e ao prejuízo do credor.

Analisando-a por esse viés, não difícil se concluir que um teto fixado para determinado tipo de pagamento, para que não veja seu valor real modificado, deve observar, no mínimo, a correção monetária.

Caso contrário, a petrificação do valor limite redundaria em modificação gradual do valor de compra daquela quantia, privilegiando a Administração Pública, que deixaria mais débitos a serem pagos pela via dos precatórios, e prejudicando os Administrados, que passariam a poder optar pelo RPV para saldar créditos de importâncias cada vez menores, se considerarmos o seu valor real.

Dessa feita, tomado por uma análise teleológica do RPV e considerando o caráter transitório, mas com status constitucional da regra do art. 87 do ADCT, o entendimento aqui defendido é o de que, para que seja considerada inconstitucional a previsão legal local sobre a fixação do limite do Requerimento de Pequeno Valor, basta que ela preveja modalidade de atualização que não reflita, no mínimo, a correção monetária.

Assim, ainda que a legislação deixe expresso o parâmetro do salário mínimo, tal qual a regra supracitada, se, por um colapso do nosso sistema democrático, modificada for a política em relação a ele com uma atualização abaixo da inflação, inconstitucional se tornaria a lei local.

Lado outro, sendo da vontade do legislador estadual ou municipal estabelecer parâmetro de atualização que supere a correção monetária, não há que se cogitar de sua inconstitucionalidade, já que nada mais estaria que privilegiando seus administrados, “segundo as [suas] diferentes capacidades econômicas”.

3.         PROPORCIONALIDADE NA FIXAÇÃO DO TETO DO RPV 

3.1.      Contornos do princípio

O princípio da proporcionalidade, muitas vezes associado pela doutrina e jurisprudência à razoabilidade, tem sua base constitucional ligada (ou extraída implicitamente) ao princípio da legalidade (expressa nos arts. 5º, II, e 37, caput) e à ordem democrática (insculpida no art. 1º, caput).

Ele encontra-se expresso, por sua vez, no art. 2º, caput, da Lei Federal nº 9.784/99, e, na esfera do Estado de Minas Gerais, no art. 2º da Lei Estadual nº 14.184/02, que dispõem, respectivamente, sobre o processo administrativo no âmbito das administrações públicas federal e estadual de Minas Gerais.

Tal princípio baseia-se na ideia de que deve existir uma razão de proporcionalidade entre os atos exarados pelo Poder Público e o prejuízo causado aos administrados, tendo como fim o alcance do interesse público.

Seu campo de atuação é comumente associado aos atos discricionários, pelos quais a Administração Pública, seguindo os critérios da lei, pode optar entre duas ou mais opções, conforme for oportuno e conveniente naquele caso específico. Desse modo, a conexão com o princípio da legalidade pode ser muito bem compreendida se pensarmos na razão de ser (telos) de cada norma, de modo que, afastando-se desproporcionalmente dela, estará desrespeitando a própria lei.

Nesse sentido, válida a transcrição de trecho em que BANDEIRA DE MELLO[4] aborda o assunto:

Ora, já se viu que inadequação à finalidade da lei é inadequação à própria lei. Donde, atos desproporcionais são ilegais e, por isso, fulmináveis pelo Poder Judiciário, que, sendo provocado, deverá invalidá-los quando impossível anular unicamente a demasia, o excesso detectado.

Assim, aludido princípio (ou “postulado”, como defende parte da doutrina) pode ser tomado como uma metodologia, um procedimento que permite seja aferida a ausência de proporcionalidade de determinado ato administrativo, o que lhe tomaria a legitimidade. Esta metodologia, denominada por alguns autores como ponderação, adota a análise do ato por três perspectivas: a adequação, a necessidade e o sopesamento (ou proporcionalidade em sentido estrito).

A primeira buscará compreender se o ato é meio hábil para se alcançar o resultado pretendido, ou, como prefere Canotilho, “a adequação ‘impõe que a medida adotada para a realização do interesse público deve ser apropriada à persecução do fim ou fins a ele subjacentes’.”[5].

A segunda, por sua vez, se pautará na averiguação da existência de meio menos gravoso ao interesse contraposto e igualmente eficaz para se chegar ao interesse público perseguido.

E a última, por fim, procurará verificar se há uma relação ponderada entre o grau de restrição do interesse antagônico e o grau de realização do interesse tutelado, isto é, se o benefício coletivo alcançado com a moderação de um interesse particular compensa o sacrifício a ele imposto.

Portanto, nota-se que a função deste princípio é, em se tratando de atos administrativos discricionários, controlar atuações desmedidas da Administração Pública.

Não se desconhece, inclusive, que tal metodologia pode também ser aplicada no conflito de princípios, quando, assim como ressaltado pelo em. Min. Gilmar Mendes no julgamento da Intervenção Federal nº 2.257-6/SP[6], deverá se estabelecer uma relação ponderada entre eles, garantindo a sobrevivência de ambos, alcançando solução ótima que realize ao máximo cada uma das ordens principiológicas em jogo.

Para o caso aqui tratado, contudo, a aplicação do princípio deverá deslocar-se para o processo legislativo e, consequentemente, para o controle de constitucionalidade dos atos legais – estas breves linhas não adentrarão, todavia, no desenvolvimento jurisprudencial sobre o tema, partindo-se do pressuposto de sua aceitabilidade.

É que esse viés da proporcionalidade vem se consolidando, desde o advento da novel ordem constitucional, na jurisprudência, inclusive com respaldo do Supremo Tribunal Federal, e estabelecendo que a constitucionalidade das normas restritivas de direitos pode ser aferida segundo os critérios de proporcionalidade, relacionando o aludido princípio com o devido processo legal substantivo[7].

Para tanto, basta aplicar pormenorizadamente as três etapas do postulado à norma sob análise, identificando o interesse por ela tutelado e o interesse por ela atingido.

Assim, detectada eventual desarrazoabilidade ou desproporcionalidade de determinada lei, poderia o judiciário julgá-la inconstitucional, já que tratamos aqui, como já dito, de princípio constitucional implícito, pressuposto da ordem democrática/republicana e da juridicidade[8].

Nesse sentido é o sustentado por Humberto Ávila[9] em obra paradigma sobre a temática dos princípios:

Todas essas considerações levam ao entendimento de que o controle de constitucionalidade poderá ser maior ou menor, mas sempre existirá, devendo ser afastada, de plano, a solução simplista de que o Poder Judiciário não pode controlar outro Poder por causa do princípio da separação dos Poderes. O princípio democrático só será realizado se o Poder Legislativo escolher premissas concretas que levem à realização dos direitos fundamentais e das finalidades estatais. Os direitos fundamentais, quanto mais forem restringidos e mais importantes forem na ordem constitucional, mais devem ter sua realização controlada. [...].

Admitido o controle da legislação por esse viés, passa-se à análise da sua incidência na fixação do teto do RPV dos entes federados.

3.2.      A proporcionalidade como limite à fixação do teto do RPV

Inicialmente, vale ressaltar que a própria criação dos Requerimentos de Pequeno Valor buscou sua motivação também na ponderação entre a necessidade de planejamento orçamentário dos entes federados na busca pela otimização dos gastos públicos, tendo sempre como fim último o interesse público, e os interesses dos particulares em verem resguardados os seus direitos fundamentais à propriedade (art. 5º, caput e inc. XXII, da CF/88) e à razoável duração do processo (art. 5º, inc. LXXVIII, da CF/88).

Assim, apesar de reconhecida a adequação (pela necessidade de planejamento orçamentário para os gastos estatais, impedindo, desse modo, uma súbita falta de dinheiro e consequente paralização das suas atividades) e a necessidade (já que os métodos de execução direta não se aplicam ao Poder Público, sendo necessária a formulação de um sistema específico) da existência do regime dos precatórios, não se vislumbrava a necessária proporcionalidade em sentido estrito quando tratava-se de créditos de pequena monta.

Tomados, pois, pela ratio legis dos RPV’s, poder-se-ia sustentar, desde já, uma análise de seus limites com base no princípio da proporcionalidade. Entretanto, o §4º, do art. 100, da Constituição foi além, dispondo que os valores limítrofes de crédito exequíveis pela via célere, estabelecidos por leis próprias de cada ente federado, obedeceriam “as diferentes capacidades econômicas”.

Sobre essa passagem constitucional, ensina José Afonso da Silva[10]:

Assim se entende o que significa estabelecer, por leis próprias, valores distintos às entidades de direito público, segundo as diferentes capacidades econômicas: cada qual pode estabelecer o valor que mais seja adequado à sua capacidade econômica. Vale dizer, “pequeno valor” não é um valor fixo e absoluto, mas um valor relativo que cabe à entidade devedora estabelecer à vista de sua capacidade econômica. A União, cada Estado, o Distrito Federal e cada Município fixarão o valor que entenderem mais afinado com sua capacidade. Mas, enquanto isso não é feito, prevalecem aqueles valores acima indicados, com base no salário mínimo.

Tal previsão atrai, sem sombra de dúvidas, a proporcionalidade para a análise da constitucionalidade das aludidas legislações, de modo que, sendo desproporcional o limite fixado por um ente, há de se declarar a sua inconstitucionalidade, pois a lesão causada aos interesses dos particulares não se justificaria pela necessidade de planejamento orçamentário.

Nesse sentido, apesar de nunca ter realizado controle de uma lei estadual ou municipal que fixa o limite de RPV pelo viés da proporcionalidade, o STF já se manifestou sobre o tema, deixando clara a necessidade de observância do repetido princípio.

Tal manifestação se dera, principalmente, no julgamento da ADI nº 2.868, quando, analisando a legislação do Estado do Piauí, além de julgar constitucional a norma que fixava o limite de RPV daquele estado em cinco salários mínimos, estabeleceu a tese de “Possibilidade de fixação, pelos estados-membros, de valor referencial inferior ao do art. 87 do ADCT, com a redação dada pela Emenda Constitucional 37/2002”.

Nesse julgamento, finalizado em junho de 2004, a relatoria do Min. Ayres Britto sustentou entendimento segundo o qual os valores do ADCT seriam pisos, de modo que os entes federados apenas poderiam disciplinar valores acima daqueles ali previstos. O entendimento majoritário, contudo, foi o da possibilidade de fixação de tetos abaixo daquela previsão, mas respeitando sempre a proporcionalidade. Válida a transcrição de trecho do voto do Min. Ricardo Lewandowski na Reclamação nº 3.014 / SP, em que resume o julgamento da ADI nº 2.868:

[...] Verifico, assim, que a corrente vencedora na ADI 2.868-5/PI concluiu que: i) os parâmetros do art. 87 do ADCT valem até a edição das leis locais, sendo por elas substituídos a partir da vigência destas; e ii) os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem fixar livremente os valores de seus débitos para os fins do § 3º do art. 100 da Lei Maior, observadas as respectivas disponibilidades orçamentárias, e desde que estes não se situem fora dos lindes da proporcionalidade e da razoabilidade, critérios aos quais fizeram menção, ao longo do julgamento, os Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio (fls. 172 e 174). [...]. (STF – Reclamação nº 3014, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 10/03/2010, DJe-091 DIVULG 20-05-2010 PUBLIC 21-05-2010 EMENT VOL-02402-02 PP-00372)

O entendimento restou confirmado pela edição da Emenda Constitucional nº 62/2009, que modificou a redação do art. 100, §4º, fazendo nela constar que o piso do RPV de qualquer ente da federação deve ser “igual ao valor do maior benefício do regime geral de previdência social”.

Destarte, subsistiria a necessidade de se encontrar parâmetros para a aferição da proporcionalidade das leis locais que, ao ver do aqui defendido, devem se pautar não só em critérios econômicos, já que há menção expressa às capacidades econômicas de cada ente, mas também levar em consideração a previsão genérica do ADCT, já que os constituintes, sem sombra de dúvidas, estabeleceram uma orientação mediana ao disciplinar aqueles valores.

Compartilhando esse entendimento, escreveu o Desembargador Renato Luís Dresch[11] em artigo sobre o tema:

A Constituição Federal estabeleceu provisoriamente o valor de quarenta salários para os Estados e trinta salários mínimos para os Municípios, donde se extrai, em interpretação teleológica, que esse é considerado um valor médio, que poderia ser elevado ou reduzido pelos entes locais em razão de sua peculiaridade. Verifica-se que o poder de legislar é contido.

[...]

A fixação dos valores do art. 87 do ADCT como piso para fins de RPV poderia comprometer sobremaneira alguns Municípios diminutos, de modo que não nos parece ser a melhor solução. Contudo, numa análise sistemática e teleológica da Constituição Federal, a conclusão que parece melhor se adequar à situação é a de que os valores estabelecidos constitucionalmente em quarenta e trinta salários mínimos devem servir de paradigma para elevação ou diminuição do pequeno valor para fins do §3º do art. 100 da CF.

Por exemplo: o Estado mais rico da federação jamais poderia fixar o seu teto de pagamento por RPV no piso constitucional, já que lhe faltaria a tão debatida proporcionalidade.

Para que seja aferida a capacidade econômica de cada um, então, os critérios a serem analisados devem ser econômicos, tais como, sem prejuízo de outros, o PIB e a arrecadação dos entes federados.

Levando em conta esta abordagem, foram propostas pelo Conselho Federal da OAB as ADI’s nºs. 4.332 e 5.100, impugnando, pois, a constitucionalidade da Lei Estadual de Rondônia nº 1.788/2007 e da Lei Estadual Catarinense nº 15.945/2013, respectivamente, que reduziram o teto do RPV estadual de 40 (quarenta) para 10 (dez) salários mínimos.

Por refletir muito do que aqui se traz, reserva-se o tópico seguinte à abordagem da Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 5.100, que apresenta maior substância argumentativa se comparada à outra.

3.3.      A ADI nº 5.100 / SC

No Estado de Santa Catarina, o limite do RPV é fixado pela Lei Estadual nº 13.120/04. Sua redação originária adotava como limite o mesmo daquele disposto no ADCT, ou seja, de 40 (quarenta) salários mínimos. Em janeiro de 2013, contudo e sem qualquer motivação expressa, foi sancionada a Lei Estadual nº 15.945/13, que alterou o art. 1º daquela legislação para reduzir o limite ao patamar de 10 (dez) salários mínimos.

Diante desse cenário, o Conselho Federal da OAB, após mais de um ano de preparação, propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.100, distribuída no dia 25 de março de 2014 para a relatoria do em. Min. Luiz Fux.

Na aludida ação, busca-se a declaração de inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 15.945/13 sob alguns aspectos formais, como a alegada suspensão da eficácia do §4º, do art. 100, da CF/88, pela submissão ao regime especial transitório criado pela EC nº 62/2009, e a existência de limite temporal para o exercício da competência legislativa; e outros materiais, como a não observância da capacidade econômica do Estado para a redução do teto do RPV estadual.

No que diz respeito àqueles, os formais, maiores comentários não serão tecidos, a uma porque não são o espeque deste artigo e, a duas, porque são, ao ver deste autor, mais facilmente superáveis.

Por outro lado, no que tange à proporcionalidade, por defenderem uma linha muito semelhante à aqui tratada, necessária a sua abordagem, já que o julgamento dessa Ação gerará um precedente aplicável, pela atribuição de efeitos irradiantes aos seus motivos determinantes, a todas as legislações locais eventualmente impugnadas por esse viés.

Lá, utilizaram-se, principalmente, de boletim informativo sobre o ano de 2012 publicado pelo próprio Poder Executivo Catarinense em que são destacados alguns índices econômicos e sociais, dentre outros: a evolução do emprego com carteira assinada (entre os 3 melhores do país); o aumento no valor das exportações; o PIB absoluto e o PIB per capita; a crescente arrecadação tributária de ICMS, IPVA e ITCMD; e etc.

Invocaram, ainda, de modo comparativo, os limites fixados por outros Estados que, de acordo com os aludidos indicadores, teriam condições econômicas inferiores às do Estado de Santa Catarina.

Por fim, focaram no índice do PIB per capita para concluir que a previsão estadual era inconstitucional por sua desproporcionalidade e desarrazoabilidade, já que o ente federado com o 4º maior produto interno bruto por cidadão possuía, dentre os 10 maiores estados neste critério, o menor valor teto de RPV.

A Ação foi recebida pelo Min. Luis Fux que lhe conferiu o processamento do art. 12 da Lei nº 9.868/99. Em seguida, a Procuradoria Geral da República (PGR), por seu Procurador Geral, Rodrigo Janot Monteiro de Barros, proferiu parecer favorável à inconstitucionalidade da debatida Lei Estadual, assim ementado – com destaque ao que aqui se discute:

CONSTITUCIONAL E PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃOCONTRA FAZENDA PÚBLICA. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTS. 1o E 2o DA LEI 15.945/2013, DO ESTADO DE SANTA CATARINA. REDEFINIÇÃODE LIMITE DE OBRIGAÇÕES DE PEQUENOVALOR. POSSIBILIDADE. REGIME ESPECIALDO ART. 97 DO ADCT. CAPACIDADE ECONÔMICA DO ENTE FEDERADO. DESPROPORCIONALIDADE E IRRAZOABILIDADE. TÍTULO EXECUTIVO DE DECISÃOTRANSITADA EM JULGADO. IRRETROATIVIDADE DANORMA. INCONSTITUCIONALIDADE.

[...]

3. É desproporcional e irrazoável a redução do limite das obrigações de pequeno valor de 40 para 10 salários mínimos, por parte do Estado de Santa Catarina, em desacordo com sua capacidade econômica. A discricionariedade legislativa não permite definição imoderada do limite dessas obrigações. Caracteriza-se afronta ao devido processo legal substantivo e violação ao art. 100, §4o, da Constituição, e aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. [...].

A PGR, compartilhando as linhas ora abordadas, deixou claro, na oportunidade, que “a aferição da capacidade econômica dos Estados com a finalidade de definir o teto das obrigações de pequeno valor demanda avaliação da condição do ente federado, que se deve compreender tomando em consideração sua capacidade financeira”.

Ademais, também no sentido do que este estudo tenta demonstrar, identificou que as informações colacionadas àqueles autos não são “suficientes para aferir com precisão a situação financeira e orçamentária do ESTADO DE SANTA CATARINA”, entretanto, “é notório que este é um dos Estados com melhor condição econômica da Federação, de maneira que a drástica redução [...] de 40 para 10 SMs se revela desproporcional e desarrazoada.”.

Ou seja, ainda que se listem diversos indicadores econômicos, não é papel do Direito abordar com clareza e profundidade a exata situação econômica de cada ente federado, sendo impossível o estabelecimento de qual deveria ser o valor exato do limite de RPV para cada um dos estados e municípios.

Contudo, a averiguação da desproporcionalidade se mostra possível, notadamente quando um dos entes mais capazes economicamente tenta suprimir direitos fundamentais dos particulares reduzindo o teto do RPV.

4.         CONCLUSÃO

Por todo o aqui exposto, conclui-se pela existência de duas limitações constitucionais à competência legislativa delegada aos entes federados. A primeira, implícita e extraída por uma interpretação teleológica da norma, seria a da necessária correção monetária do valor limite dos Requerimentos de Pequeno Valor, de modo que o instituto garantidor da celeridade na prestação jurisdicional não se corroa com o tempo. A outra, explícita pela expressão “segundo as diferentes capacidades econômicas”, seria a da necessidade de se respeitar o princípio da proporcionalidade aferido, notadamente, dos atributos econômicos dos entes federados.

Entretanto, os administradores públicos (aqui entendidos como o alto escalão do executivo e os parlamentares), na gana por postergar pagamentos de forma desgovernada e diminuir os gastos nos anos de seus mandatos, acabaram por encontrar, na fixação desproporcionalmente baixa do teto dos RPV’s, uma saída: atingir interesses diretos dos cidadãos, reduzindo suas possibilidades de recebimento célere das dívidas judiciais com o Poder Público.

Restringir outros gastos menos impactantes na vida do povo, como as expressivas remunerações e verbas indenizatórias, apesar da crescente pressão popular, nunca foi uma ideia levada a sério.

Basta notar, nesse sentido, que a previsão constitucional do ADCT, inspirada em uma situação mediana dos entes, virou, quase como regra, um teto para as legislações locais, o que joga por terra o princípio da proporcionalidade aqui aplicado.

Por outro lado, uma legislação chama a atenção, exatamente por respeitar todo o defendido nesse estudo: a mínima atualização pela inflação e não só a possibilidade, mas a necessidade, de se fixar um limite acima do previsto no ADCT, quando assim atender à proporcionalidade.

É a Lei Municipal Paulistana nº 13.179/2001, que, por disciplinar o teto de RPV do município economicamente mais saudável do país, houve por bem em fixar, em setembro daquele ano, o valor de R$ 7.200,00 (sete mil e duzentos reais), equivalente, à época, a 40 (quarenta) salários mínimos, dez a mais que a previsão do ADCT. Além disso, previu a constante atualização pelo IPCA, índice calculado pelo IBGE e que reflete a inflação. É, portanto, uma legislação razoável e proporcionalmente constitucional.

Sobre o autor
Arthur Valle

Advogado. Graduado pela UFMG em 2015. Pós-graduado em Direito Público pelo IDDE em 2016.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O presente artigo é uma adaptação da Monografia apresentada ao Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Público do Programa de Pós-Graduação do IDDE – Instituto para o Desenvolvimento Democrático em parceria com a Universidade de Coimbra e com a Faculdade Arnaldo, elaborada sob orientação do Prof. MsC Thiago Sacchetto. No trabalho completo ainda é realizada uma análise da Lei Estadual (MG) nº 14.699/2003 e suas atualizações.

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