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Notas para o preceito 1228 do novo Código Civil:

a legitimação passiva do detentor na demanda reivindicatória e a virtual polêmica nos seus reflexos heterotópicos no instituto da nomeação à autoria

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Agenda 31/08/2004 às 00:00

O texto estuda o conflito entre a legitimidade passiva do detentor preceitada para a ação reivindicatória e a correção processual da pertinência subjetiva para a demanda determinada pelo instituto da nomeação à autoria.

"Quando orientas a prôa visionária em direção a uma estrêla, e desdobras as asas para atingir tal excelsitude inacessível, ansioso de perfeição rebelde à mediocridade, levas em ti o impulso misterioso de um ideal..."(José Ingenieros).

"Aonde fica a saída?", perguntou Alice ao gato que ria. "Depende", respondeu o gato. "De quê?", replicou Alice; "Depende de para onde você quer ir..." - Lewis Carol, "Alice no País das Maravilhas".

Resumo

: Analisa a questão da heterotopia no Novo Código Civil Brasileiro, com especificidade no conflito entre a legitimidade ad causam passiva do detentor preceitada para a Ação Reivindicatória e a correção processual da pertinência subjetiva para a demanda determinada pelo instituto da nomeação à autoria. Dispõe acerca das teorias diferenciadoras da posse e detenção, em cotejo dos sinais da virtual antinomia para com o viés processual da nomeação a autoria. Alude à bipartição do conceito lato do direito de ação como forma de interpretar conglobantemente a legitimidade do detentor para a causa reivindicatória, sob os aspectos material e instrumental, apontando critérios interpretativos para uma coexistência pacífica das normas em foco.

Sumário: 1)

A Heterotopia no novo Código Civil; 2) Breve remissão a legitimatio ad causam e a discussão quanto ao seu contato com o direito material discutido em juízo; 3) A tensão de interesses na violação da propriedade e a legitimatio ad causam para a ação reivindicatória – contextualização dos conceitos de posse injusta e mera detenção no direito Pátrio; 4) Da legitimidade passiva do detentor para a demanda reivindicatória em paralelo à obrigatoriedade da nomeação à autoria; 5) Fixação da possível contradição: confrontação entre o art. 1228 do NCC e o art. 62 do CPC; 6) Tentativa de interpretação in rebus: harmonização conglobante dos planos material e processual; 7) Conclusões; 8) Bibliografia

1.A HETEROTOPIA NO NOVO CÓDIGO CIVIL:

Sem demérito dos avanços que bem trouxe, o novel diploma Civil teimou imbricar matérias de direito material com figuras arraigadas ao campo do processo civil, gerando o cipoal da heterotopia, ou seja, da intromissão ou superposição de determinadas leis civis na específica esfera de atuação de disciplinas legiferantes processuais civis, ou vice-versa, que sejam entre si autônomas [2] em franca invasão de rincão positivo alheio.

Deveras, na lei 10.406 de 2002, alguns institutos pertinem à competência [3], outros à afetação patrimonial executiva [4], chegando-se, como no caso em apreço, a suscitar apontamentos quanto à legitimidade passiva para a tutela petitória, exigindo do operador do direito um cuidado redobrado no processo de elucidação da extensão e vigência diante da coexistência de normas que tratam da mesma categoria jurídica. A ele caberá o trabalho de joeirar a aplicabilidade das leis tendo por armas os princípios e regras de interpretação, visando assim, manter a unicidade do sistema.


2) BREVE REMISSÃO À LEGITIMATIO AD CAUSAM E A DISCUSSÃO QUANTO AO SEU CONTATO COM O DIREITO MATERIAL DISCUTIDO EM JUÍZO:

Em sumário de conceitos inelutáveis à compreensão ainda que superficial da vexata quaestio, frise-se por primo a dissociação entre a legitimatio ad processum e a legitimatio ad causam. Esta é condição da ação que pertine à simetria na titularidade dos direitos substancial pré-litigioso e processual numa só pessoa que os abarca. Aquela se ata à aptidão legal para figurar-se como parte da relação jurídico-processual numa determinada demanda em nome próprio ou alheio [5] ainda que tal atributo esteja essencialmente destacado do direito material.

Decerto, "distingue-se, assim, da capacidade de ser parte de uma determinada situação litigiosa (legitimatio ad causam) a capacidade para estar em juízo, ou legitimação processual (legitimatio ad processum)" [6]. Podem ambas unir-se como em uma só, ou cada qual conviver em situação estanque harmonicamente [7], no entanto a sua exata apreensão é primordial para o desenvolvimento de um justo processo legal aos envolvidos em contenda judicial [8].

A legitimatio ad causam vista por camada protética para a cognição de mérito foi prestigiada pelo Código de Processo Civil pátrio sob os auspícios da teoria abstrata em vertente eclética desbastada por LIEBMAN [9]. ALFREDO BUZAID, Ministro da Corte Suprema e mentor do codex processual de 73, em verdadeiro tributo a seu mestre, guindou a pertinência subjetiva para demanda à uma das condições da ação, ou seja, deu-lhe talhe de requisito para atingir-se o meritum causae, para dirimir-se a pretensão exercida em juízo.

Dentre todas as condições da ação professadas pelo Processualista Italiano supracitado, certamente figura a legitimidade como a mais tormentosa no campo da concretude do direito processual. Vários foram os estudiosos que repeliram veementemente seu caráter de filtro preexistente ao fundo do conflito intersubjetivo oponível ante o Judiciário [10], porquanto em estando a legitimação intimamente ligada ao centro da pretensão resistida [11], não seria esta senão um dos matizes do julgamento de mérito, um bem engendrado jogo de denominação para imprimir caráter terminativo à hipótese de apaziguação definitiva do litígio [12].

Todavia, tenha-se que a corrente Liebmaniana, com pequenos retoques é a que remanesce quase como um dogma entre nós, mormente pela lei posta no Código de Processo Civil Brasileiro.


3) A TENSÃO DE INTERESSES NA VIOLAÇÃO DA PROPRIEDADE E A LEGITIMATIO AD CAUSAM PARA A AÇÃO REIVINDICATÓRIA – CONTEXTUALIZAÇÃO DOS CONCEITOS DE POSSE INJUSTA E MERA DETENÇÃO NO DIREITO PÁTRIO:

Volvendo-se o prumo perfunctoriamente ao campo material do que aqui nos toca, inicie-se que, ao inverso de vários atritos hermenêuticos que perderam-se nas eras, a diatribe quanto ao status jurídico da posse [13] e propriedade [14], acompanha os povos e, espargida da multimilenar influência romanística, redivive nas leis e diplomas dos tempos hodiernos.

A propriedade, tema que, de sobreaviso, colateralmente nos centramos, fixa-se no direito de usar (ius utendi), gozar (fruendi) e dispor (abutendi) da coisa, além do poder de reivindicá-la (rei vindicatio) a quem quer que contra ela atente. [15] No impoluto dizer de WASHINGTON [16], "o direito de propriedade, o mais importante e o mais sólido de todos os direitos subjetivos, o direito real por excelência é o eixo em torno do qual gravita o direto das coisas. Dele pode dizer-se, com SCUTO, ser a pedra fundamental de todo o direito privado. Sua importância é tão grande no direito como na sociologia e na economia política. Suas raízes aprofundam-se tanto no terreno do direito privado como no direito público"

ORLANDO GOMES [17], pragmaticamente semeia que a conceituação da propriedade, "pode ser feita à luz de três critérios: o sintético, o analítico e o descritivo. Sinteticamente, é de se defini-lo, com WINDSCHEID, como a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem que injustamente o possua. Descritivamente, o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei"

Corolário do direito de seqüela, existe para o proprietário a potestade de fazer valer seu ius perante todo e qualquer ser humano que atente contra as benesses de seu domínio. No descumprimento deste canôn, fá-lo valer pela ação reivindicatória, na qual, conforme apontam HAENDCHEN e LETTERIELLO, se tem por objetivo magno a restituição da coisa, "mesmo porque aquele que reivindica quer primeiro ter a posse da coisa, para depois usar, gozar e dispor dela. A coisa é o objeto que se reclama em juízo, e não o direito. O direito de recebê-la é apenas o fundamento para a admissibilidade da ação." [18]

Há, entrementes, que fazer-se um parênteses no referente à legitimação passiva da reivindicatória em confronto com a posição material ostentada pelos sujeitos envolvidos no conflito.

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De tudo quanto dito, lembre-se que via de regra, ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei (art. 6º CPC). No escólio de MARINONI e ARENHART, "isto quer dizer, em princípio, que somente tem legitimidade para a causa, na qualidade de autor, aquele que se diz titular do direito material, podendo ser réu apenas aquele que, no plano do direito material, tem a obrigação correspondente ao direito material afirmado na petição inicial" [19]

Com efeito, nossa lei civil hodierna em compasso com o Código Beviláqua, adotou majoritariamente a doutrina de VON IHERING. Para o Emérito Jurista tedesco, a posse diferenciava-se da detenção pelos meios objetivos da lei, ou seja, a tipificação de determinado ato como sendo de posse ou de mera detenção, partiria da subsunção formal entre a conduta e o tipo legal disposto pela lege lata. [20]

Depreende-se que a posse difere tecnicamente da detentio. Em veras, considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas, sendo que, aquele que comporta-se ostentando tal linha de agir, presume-se detentor, até que prove o contrário. (art. 1198 NCC, art. 487 Código Civil de 1916). Em adendo, não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade (art. 1208 NCC, art. 497 Código Civil de 1916), perdendo-se a posse, quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder sobre o bem (art. 1223 NCC e 520 Código Civil de 1916).

Já possuidor é todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. (art. 1196 NCC e 485 do Código Civil de 1916). Fora desse preceito, incluído o ato praticado no rol do parágrafo anterior, incidirá a mera detenção.

A observação, primária, é ainda assim necessária para se compreender a problemática em torno da legitimidade passiva ad causam na reivindicatória, mormente porque tal condição da ação nesta demanda peculiar parte da disposição da lei material (Código Civil), mas encontra limite na lei processual civil que trata da correção desta mesma legitimidade material em juízo.

Sem olvidar-se que a injustiça da posse para a reivindicatória exaure-se no campo da posse titulada (e não fática, prescindindo do caráter anímico do agente), o antigo Código de CLÓVIS tributava legitimidade passiva ao possuidor na reivindicatória. A doutrina abalizada, sempre ampliou a eficácia de tal norma para dilatá-la a qualquer possuidor ou detentor com boa ou má-fé diante da injustiça em obrigar-se o proprietário a buscar o liame jurídico que une o esbulhador à coisa, facilitando assim, o direito de acesso à tutela reiperssecutória [21].

Tal ilação, irrepreensível enquanto antenada com o resultado da instrumentalidade-fim do aparelho judiciário [22], há, contudo, de ser relacionada justamente do ponto de vista processual ao qual serve [23], pois materialmente (lembre-se da correlação da legitimidade ad causam e o direito material discutidos alhures) não há paralelo entre o direito do proprietário não possuidor e o do detentor que age em nome e pelas ordens de outrem (ou seja, o possuidor não proprietário) [24]. Por outras, ativada a ação reivindicatória em face do detentor, o resultado seria inócuo ou de praticidade exígua no plexo de atitudes de um real mandante agressor da posse. O Poder Judiciário não teria meios efetivos de elastecer a coerção da jurisdição ante o possuidor injusto (para quem é o detentor um mero títere), eis que este, ressentido da necessária citação, não estaria abrangido pelo comando do órgão processante. [25]

Em suma, no aspecto operacional dos direitos de propriedade, vê-se de modo claro a particular relação visceral de paralelismo entre o flanco substancial pré-processual (que impele os sujeitos envolvidos e a coisa conflituosa) e a legitimação para agir em juízo (legitimatio ad causam), dado ocorrer o mais exemplar liame entre a condição de proprietário legítimo e possuidor injusto para com a de autor e réu factíveis neste procedimento [26]. Obviamente, na maioria das vezes só há de sofrer o exercício da pretensão petitória [27] aquele que injustamente possua a coisa, sabendo-se tê-la à pior da posse do autor abrigada em documento bastante [28]. Numa frase, fora o que é incomum, só poderei (e me será suficiente) terçar lanças em juízo contra quem, no plano fático, se sobreponha à coisa minha que lhe seja alheia [29], obstacularizando meu direito de posse titulada [30] (ius possidendi).

Pensamos com isso, que a faculdade de agir em juízo de modo expansivo ante o detentor, deve ser cotejada nas lentes do direito de ação e não exclusiva e isoladamente da matéria apresentada pelo Código Civil.


4) DA LEGITIMIDADE PASSIVA DO DETENTOR PARA A DEMANDA REIVINDICATÓRIA EM PARALELO À OBRIGATORIEDADE DA NOMEAÇÃO À AUTORIA:

O antigo artigo 524 do Código Beviláqua disciplinava a legitimidade passiva para a reivindicatória da seguinte forma:

Art. 524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua

O correspondente e atual preceito 1228 do Código Civil de 2002, assim dispõe quanto ao assunto:

Art. 1228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

O preceito civil ampliou o rol de legitimados passivos, passando a tratar não somente do possuidor, mas também do detentor da coisa a ser vindicada. No entanto, crendo que o detentor a non domino, fâmulo fugaz da posse, na regra técnica não se adequa ao pólo passivo correto da demanda reivindicatória (incidindo como longa manus sob comando do real legitimado), nosso digesto processual é peremptório ao dispor seu art. 62 a seguinte ressalva:

Art 62. Aquele que detiver a coisa em nome alheio, sendo-lhe demandada em nome próprio, deverá nomear à autoria o proprietário ou possuidor.

Como alude THEODORO JR. [31], cuida o CPC "do mero detentor, isto é, do servidor da posse de outrem, daquele que exerce um poder de fato sobre a coisa, mas em proveito alheio. Ocorre nas situações de dependência hierárquica, como a do empregado, do mandatário, do agente ou do preposto". Após indicar a correspondência da nomeação ao art. 487 do CC de CLÓVIS (que se repetiu no atual art. 1198 ao considerar detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas), admoesta o insigne processualista mineiro que "a nomeação à autoria no sistema do Código não é uma faculdade, mas sim um dever do mandado, cuja inobservância resulta a responsabilidade por perdas e danos" [32].

Quanto à hipótese do art. 62 CPC, pragmaticamente pontifica o arguto magistrado paulista MARCUS GONÇALVES:

"Essa hipótese de nomeação se justifica diante da dificuldade, oriunda do direito material, de distinguir-se o mero detentor do possuidor ou proprietário do bem. Acolhida no Brasil a teoria de Ihering, a detenção só se diferencia da posse pela existência de norma legal, que descaracteriza uma situação de poder de fato sobre a coisa, qualificando-a como mera detenção.

Suponha-se que o proprietário de um terreno esteja viajando e que, durante sua ausência, ele seja esbulhado. Antes que o dono volte, o invasor afasta-se do imóvel, deixando ali um seu preposto, mero detentor, que obedece a ordens e determinações sua. Ao voltar, o proprietário pode Ter a falsa impressão de que o esbulhador é o empregado e ajuizar em face dele eventual ação possessória ou reivindicatória. O réu é parte ilegítima, mas deverá nomear à autoria o verdadeiro invasor, pedindo a substituição no pólo passivo. (...)

Proposta a ação em face do mero detentor ou de quem agiu por ordem ou cumprimento de instruções de terceiro, tendo o juiz deferido a citação, caberá ao réu fazer a nomeação, apontando o verdadeiro legitimado. Trata-se de algo mais que um simples ônus, porque, se o réu não o fizer, responderá por perdas e danos, na forma do CPC, art. 69, I. Constitui, portanto, verdadeiro ato ilícito do réu, demandado nas condições do CPC, arts. 62 e 63, deixar de fazer a nomeação, caso em que o juiz, percebendo a ilegitimidade, proferirá sentença extintiva, carreando os prejuízos daí decorrentes a ele, que se omitiu quando deveria ter feito a nomeação" [33]

Dessarte, mediante o instituto da nomeação à autoria, almeja-se o lídimo controle da higidez da pertinência subjetiva da demanda reivindicatória [34]. O CPC, tempera os conceitos emanados da Lei Civil e, reputando o mero detentor parte ilegítima para figurar nesta ação, fornece possibilidade de retorno ao eixo processual devido, sob o escopo de tentar alcançar o mérito da causa, dando o quinhão de paz ao insatisfatório conflito pelo bem da vida.


5) FIXAÇÃO DA POSSÍVEL CONTRADIÇÃO: CONFRONTAÇÃO ENTRE O ART. 1228 DO NCC E O ART. 62 DO CPC:

Do quadro alinhavado se resume toda a virtual contraditio in terminis. Se o preceito 1228 do CC de 2002 dá ao proprietário o direito de reaver a coisa do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha, continuaria havendo necessidade do detentor nomear à autoria o real possuidor ou proprietário? Teria sido derrogado o art. 69 do CPC? Como colmatar essa aparente confusão entre a lei material e processual?

Sem pretender dominar toda a densidade neste nó-górdio [35], cremos que, à despeito do atual diploma acrescer a possibilidade disjuntiva genérica do detentor figurar como réu na ação petitória, nada há de muito novo para combalir o uso da nomeação à autoria.

Abstratamente, ainda na análise deontológica da possível antinomia, reconhece a Lei de Introdução ao Código Civil (Dec.-Lei 4657, de 4 de setembro de 1942, que constitui uma verdadeira norma de superposição para todas as demais normas), que a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior (art. 2º, parágrafo segundo), tornando forçoso concluir que, diante desta antinomia aparente sobressai o critério da especialidade, em defesa da vigência e eficácia do art. 69 do CPC, preceito de cunho eminentemente especial em relação ao art. 1228 do NCC, no tocante à legitimação para agir. Por essa ilação suscitada dos comentários de MARIA HELENA DINIZ, vê-se que "a mera justaposição de disposições legais, gerais ou especiais, a normas existentes não terá o condão de afetá-las. Assim sendo, a lei nova que vier a contemplar disposição geral ou especial, a par das já existentes, não revogará, nem alterará a lei anterior. (...) logo, lei nova geral revoga a geral anterior se com ela conflitar. A norma geral não revoga a especial, nem a nova especial revoga a geral, podendo com ela coexistir. ("Lex posterior generalis non derogat speciali", "legi speciali per generalem non abrogatur")" [36]

No campo empírico, racionalize-se que a possibilidade singular do detentor e até mesmo do possuidor ficto, ostentarem qualidade de réu já se mostrava como crível no pálio do Código de CLÓVIS.

Nesta seara, bem explicitaram HAENDCHEN & LETTERIELLO [37]:

"em duas hipóteses, oriundas do direito romano, admite-se a ação contra o não possuidor ou detentor. Como já se disse, previa o direito dos romanos a ação contra o suposto possuidor (fictus possessor), estabelecendo-se duas distinções:

a) No primeiro caso, admite-se a reivindicação contra aquele que deixou de possuir a coisa, com dolo, isto é, com a intenção de dificultar ao autor vindicá-la. (...) a essa hipótese os romanos denominavam dolo desiit possidere (...)

b)Admite-se, também, a reivindicatória contra o que, sem ter posse, responde à ação como se realmente possuísse a coisa, ou seja, o que, sem ter posse da coisa, intitula-se possuidor na contestação, respondendo a ação como se realmente fosse o possuidor. Claro que o autor deve desconhecer essa circunstância porque, ao contrário estaria ele, também, litigando de má-fé."
.

Em suma, sedimentam estes civilistas que,

"essas linhas mestras ainda hoje são identificadas no direito positivo brasileiro (...) pois, também aqui, admite-se a reivindicatória contra aquele que não possui, mas que se intitula possuidor, assim se defendendo no processo, como também contra o que dolosamente deixou de possuir para levar a engano o autor da demanda..."

De outro giro, repise-se, em figurando a posse como estado de fato qualificado pelo direito, não seria crível obrigar ao proprietário perscrutar estreme de dúvida a relação jurídica do pretenso réu para com a coisa reivindicada. Daí a nomeação à autoria como remédio processual para acertamento da legitimidade, ônus que compete à quem sofre a ação e tem os efetivos e capazes meios para rechaçar a qualidade de possuidor, apontando o verdadeiro legitimado passivo.

Não se olvide em extremo, a espinhosa tarefa de qualificar a vontade e a consciência (já dantes consignadas) que devem individualizar tanto o possuidor quanto o detentor na proporção exata da teoria objetivista herdada de IHERING e difundida por CLÓVIS, ressalvada, entrementes, pelas mutações que lhe infligiram o tempo e a razão das coisas [38].

À míngua disto, de ver-se que o direito de ação reivindicatória (que nos parece afetado pela heterotopia parcial do artigo 1228 do CCB) enquanto gênero biparte-se, outrossim, no aspecto constitucional (direito amplo e genérico de provocar o aparelho Estatal) e processual (direito conexo à pretensão exercível em juízo) [39]. O verbo poderá inserto no art. 1228 do NCC encerraria assim uma faculdade crível diante do direito processual posto. A poderá demandar B, detentor, pois que o direito de ação constitucional é de mero acesso. Contudo, evidente que a B, detentor, caberá o ônus de apontar C, o verdadeiro possuidor de má-fé, pois só esse último, salvo poucas concessões, poderá sofrer o plano eficacial da pretensão veiculada no direito de ação processual [40].

Acresce ao debate o esclarecedor tirocínio sempre lúcido do saudoso SANTIAGO DANTAS [41], que, sob a malha do CCB antigo rechaçava inclusive a indagação da causa da posse ou detenção injusta, dando ambas por boas para a rei vindicatio, temperando-se eventual erro de escolha do réu mediante a nomeação à autoria, o que já mirava uma forma de entendimento entre os planos material e processual. [42]:

"Contra quem pode ser intentada a ação de reivindicação? Cabe a ação reivindicatória contra qualquer possuidor, não só o de má fé, mas também o de boa fé, e contra qualquer detentor, qualquer que seja a causa pela qual possua a coisa, pouco importando que a possua ou detenha por conta própria ou por conta de terceiro. E isto porque o proprietário é autorizado a reivindicar a coisa que lhe pertence, de qualquer pessoa que a tenha em seu poder, não sendo justo, que se exigisse dele; para exercitar esse direito, fosse pesquisar por qual título o objeto se encontra nas mãos do detentor ou possuidor. Tanto mais quanto o domínio é um direito real, vale dizer, exigível conta qualquer um em poder de quem esteja a coisa, seja a que título for.

Que dizer do caso em que a coisa se ache nas mãos de um detentor pro alieno? É claro que a ação pode ser intentada contra o detentor, e isso é uma conseqüência daquela presunção de posse que se reconhece a ele, cabendo-lhe, portanto, provar o contrário, chamando à autoria o verdadeiro possuidor"

A Honrada Corte Estadual de Mato Grosso do Sul já julgou em igual norte, em Acórdão da lavra do inesquecível Desembargador CASTRO ALVIM:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. COISA MÓVEL. POSSE E DETENÇÃO. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENCA. ART. 458 DO CPC. CERCEAMENTO DE DEFESA, VIA JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. RESTITUIÇÃO DA COISA. IMPROVIDA.

A ação reivindicatória pode ser intentada contra qualquer possuidor ou detentor de boa ou má fé, sem importar a causa da posse ou detenção, seja em nome próprio ou de outrem, desde que a mesma seja injusta. A contrario senso, se a posse é justa, não cabe ação reivindicatória.

Somente a sentença não motivada é nula, não a sentença com motivação sucinta ou deficiente.

A alegação de cerceamento de defesa, através de julgamento antecipado da lide, via matéria de direito e de fato, não é de ser acatada quando ha'' prova documental suficiente para formar a convicção do magistrado.

Não se discutindo nos autos a posse da coisa móvel, mas sim a sua restituição por quem a tem sem ser proprietário, inobjetável que a sentença que julgou procedente a ação é irrepreensível.

Apelação Cível - Classe B - XV, 246944. Campo Grande. Rel. Des. José C. C. Castro Alvim. Segunda Turma Cível Isolada. Unânime. J. 23/10/1990, DJ-MS, 07/03/1991, pág. 15.

Sobre o autor
Marco Antônio Ribas Pissurno

Especialista em Direito Processual Civil e Direito Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PISSURNO, Marco Antônio Ribas. Notas para o preceito 1228 do novo Código Civil:: a legitimação passiva do detentor na demanda reivindicatória e a virtual polêmica nos seus reflexos heterotópicos no instituto da nomeação à autoria. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 420, 31 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5639. Acesso em: 25 nov. 2024.

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