Noções Preliminares
"A lei não esgota o Direito, como a partitura não exaure a música" [1].
A Constituição Federal estabelece, no art. 5º, LXXV, que o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença, garantindo a tal dever, caráter de direito fundamental do cidadão.
Atualmente, inúmeros são os erros judiciários que, a nosso ver, não podem ser restritos à seara do direito penal, uma vez que a norma constitucional estabelece o dever do Estado de indenizar tanto o condenado por erro judiciário, quanto a pessoa que permanecer presa além do tempo fixado na sentença.
Ademais, conforme estabelece o art. 37, §6º da Carta Constitucional, o Estado é responsável pelos atos praticados pelos seus agentes que causem dano a terceiro, garantindo, assim, que qualquer prejuízo decorrente da atividade estatal, independentemente de caracterizar erro judiciário, será reparado pelo Estado.
Yussef Said Cahali afirma:
"A responsabilidade civil do Estado pelo erro judiciário representa o reforço da garantia dos direitos individuais.(...) impõe-se no Estado de Direito o reforço da garantia dos direitos individuais dos cidadãos, devendo ser coibida a prática de qualquer restrição injusta à liberdade individual, decorrente de ato abusivo da autoridade judiciária, e se fazendo resultar dela a responsabilidade do Estado pelos danos causados" [2].
Responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais
Do latim respondere, tomado na significação de responsabilizar-se, "responsabilidade" denota garantir, assegurar, assumir o pagamento do que se obrigou ou do ato que praticou; subsumi-se assim em uma obrigação, ou seja, na satisfação de um prejuízo causado pendente de ressarcimento – do latim resarcire – consistente no pagamento de um dano ou a satisfação de uma obrigação, resultante ou fundada na responsabilidade.
Nesse passo, a forma de responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público sofreu diversas transformações no decorrer do tempo, passando por fases distintas. No entanto, apesar dos motivos que levaram à queda da teoria da irresponsabilidade do Estado, que prevaleceu na época dos déspotas e absolutistas, ainda hoje existem aqueles que a sustentam, porém, com argumentos calejados [3].
A primeira fase, conhecida como a da irresponsabilidade do Estado, baseada na premissa the king can do no wrong (O Rei nunca erra; o Príncipe sempre tem razão), é caracterizada pela total irresponsabilidade do Estado frente aos danos causados aos particulares no exercício das funções estatais, prevalecendo sua soberania e seu poder incontrastável.
A premissa era de que o Estado era a expressão da Lei e do Direito conquanto não havia como considerá-lo violador da norma jurídica; não se concebia, por conseguinte, a constituição de direitos contra um Estado soberano.
O princípio desta teoria era o de que os agentes do Estado, quando faltavam ao dever ou violavam a lei seriam pessoalmente responsáveis pelo dano, mas jamais o Estado. O particular, desta feita, não ficava totalmente desprotegido porquanto provada a culpa ou o dolo do agente estes responderiam individualmente pelo "dano" causado.
Com o reconhecimento dos direitos dos indivíduos perante o Estado e, com a difusão da idéia de submissão do Estado ao Direito, a teoria da irresponsabilidade foi perdendo eficácia, embora os Estados Unidos da América e a Inglaterra ainda a adotassem, respectivamente, até 1946 e 1947 [4].
A segunda fase, civilista, adota a teoria da responsabilidade subjetiva, baseada no art. 15 do Código Civil de 1916, que dispunha que "as pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano".
A teoria civilista ou mista era norteada pelas premissas de que os atos de império praticados pelo Estado escapariam ao domínio do direito privado, não sendo, portanto, responsabilizado o Estado por prejuízos causados por seus agentes ao atuarem invocando essa qualidade; os atos de gestão, desde que para praticados pelo Estado, se regeriam pelo direito comum, pelo que haveria a responsabilidade do Poder Estatal todas as vezes que, por culpa do funcionário, fosse ferir direito de alguém; e somente haveria responsabilidade civil do Estado quando, na prática de algum ato lesivo a outrem, ficasse comprovada a culpa do agente que o executou [5].
Ex vi o estabelecido pelo antigo Código Civil, à vítima incumbia o ônus de provar a culpa ou o dolo do funcionário, havendo o Estado, direito de ação regressiva contra este.
‘É exatamente porque, exercendo a função o funcionário age mal, quer faltando ao dever prescrito em lei, quer procedendo de modo contrário ao Direito, que seu ato se torna ilegítimo e induz à responsabilidade do Estado. Se o funcionário agisse, sempre, dentro dos rigorosos limites da representação, jamais vincularia o Estado ao ressarcimento, de acordo com o art. 15 do CC’ [6].
A Constituição Federal de 1946 iniciou a denominada fase publicista, baseada na teoria da culpa administrativa, conhecida pelos franceses como faute du service (falta de serviço), fundamentada na culpa individual do causador do prejuízo, ou na culpa do próprio serviço, denominada culpa anônima (casos de enchentes, por exemplo).
Nesta fase, restava à vítima comprovar a não prestação do serviço ou a sua insuficiência, configurando a culpa do serviço e a conseqüente responsabilidade do Estado, sobrevindo três teorias à imprimir diretrizes ao nexo de causa e resultado: a) teoria do risco administrativo; b) teoria da culpa administrativa e c) teoria do risco integral.
A Constituição Federal hodierna de 1988 adotou a teoria do risco administrativo, fazendo surgir a responsabilidade objetiva do Estado, a partir da qual não importa se o serviço público realizado foi bom ou mal, mas sim, que o dano sofrido pela vítima foi conseqüência do funcionamento do serviço público, importando a relação de causalidade entre o dano causado e o agente.
Tal teoria difere-se da chamada teoria do risco integral, através da qual o Estado seria responsável por qualquer dano causado ao indivíduo, independentemente de ser a culpa exclusiva da vítima, hipótese de caso fortuito ou força maior.
O art. 37, §6º da Constituição Federal regula a matéria determinando que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado, prestadoras de serviços públicos (concessionárias e permissionárias), responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Observa-se que a responsabilidade de que cuida a Constituição Federal não se confunde com a responsabilidade civil contratual, que deverá ser analisada sob o ângulo dos contratos administrativos.
De acordo com os ensinamentos de José Alfredo de Oliveira Baracho, a responsabilidade patrimonial e extracontratual do Estado, por comportamentos administrativos, origina-se da teoria da responsabilidade pública, com destaque para a conduta ensejadora da obrigação de reparabilidade, por danos causados por ação do Estado, por via de ação ou omissão. O dever público de indenizar depende de certas condições: a correspondência da lesão a um direito da vítima, devendo o evento implicar prejuízo econômico e jurídico, material ou moral [7].
Nota-se, portanto, que a teoria do risco administrativo, configurando a responsabilidade objetiva do Estado, exige a ocorrência do dano, uma ação ou omissão administrativa, o nexo causal entre o dano e a ação ou omissão, e a inexistência de causa excludente da responsabilidade estatal.
"O fundamento de qualquer responsabilidade civil não pode, todavia, ser outro que a exigência de que seja reparado um dano, uma vez demonstrado o nexo causal entre a atividade do agente e esse dano; a qualidade do agente, ou a natureza da atividade lesiva, nada têm a ver, doutrinariamente, com o princípio da responsabilidade civil, e muito menos poderão influir no hodierno Estado de direito" [8].
Interessante observar que o artigo constitucional estabeleceu duas relações de responsabilidade, quais sejam: a do poder público e seus delegados na prestação de serviços públicos perante a vítima do dano, baseada no nexo causal; e a do agente causador do dano, perante a Administração ou empregador, baseada no dolo ou culpa, possibilitando que o Estado exerça seu direito de regresso nos casos de culpa exclusiva de seus funcionários, o que não lhe exime da obrigação indenizatória perante o particular.
Em relação às pessoas jurídicas de direito público interno, conforme disposto no art. 43 do Código Civil [9], na mesma ordem constitucional, estabelece que estas são civilmente responsáveis por atos de seus agentes que, nessa qualidade, causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte deles, culpa ou dolo.
Embora a Constituição Federal declare a responsabilidade objetiva, Celso Antônio Bandeira de Mello, dentre outros, posiciona-se no sentindo de que a responsabilidade será objetiva quando os danos decorrerem de atos comissivos, ou seja, praticados mediante uma ação. No entanto, a responsabilidade é subjetiva quando os danos forem causados por omissão do agente, uma vez que omissão, rigorosamente falando, não é causa de dano, conquanto seja certo que condiciona e irresistivelmente sua ocorrência nos casos em que, se houvesse a ação, o dano seria evitado [10].
Observa-se que tal argumento pode ser sustentado se a palavra "ato" constante do art. 43 do Código Civil for interpretada restritivamente tomando o sentido do verbo "agir" e, portanto, resultando de uma ação e não de uma omissão.
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello complementa escrevendo que a responsabilidade do Estado por omissão só pode ocorrer na hipótese de culpa anônima, da organização e funcionamento do serviço, que não funciona ou funciona mal ou com atraso, e atinge os usuários do serviço ou os nele interessados [11].
Luís Wanderley Gazoto também critica a teoria objetiva da responsabilidade estatal, posicionamento por nós não adotado, ponderando que a doutrina pretende, sem analisar corretamente os fundamentos da responsabilidade civil do Estado, ampliar demasiadamente o conceito de erro judiciário, para aplicar as bases da teoria do risco objetivo a todos os atos jurisdicionais. Ressalta o autor que a tese de que a responsabilidade estatal é sempre objetiva deve ser abandonada, sendo excepcionalmente objetiva, fundamentada no risco da atividade e no interesse estatal em sua prática [12].
Em que pese às discussões doutrinárias a respeito da responsabilidade estatal, a Constituição Federal assegura, como direito fundamental, a indenização pelo Estado nas hipóteses de erro na condenação e prisão indevida.
Consoante estabelece o art. 630, do Código de Processo Penal, o Tribunal, se o interessado requerer, poderá reconhecer o direito a justa indenização por prejuízos sofridos, que será liquidada no juízo cível, respondendo a União, no caso da condenação ter sido proferida pela justiça do Distrito Federal ou de Território ou o Estado, se o tiver sido pela respectiva justiça.
No entanto, dispõe mencionado artigo que a indenização não será devida se o erro ou injustiça da condenação proceder de ato ou falta imputável ao próprio impetrante, como a confissão ou a ocultação de prova em seu poder, bem como se acusação houver sido meramente privada.
A irresponsabilidade do Estado por indenização a danos causados em ação penal de iniciativa privada se justificaria pelo fato de que quem promove a persecução penal não é o Estado, mas sim o ofendido, não havendo interesse público na persecução penal. Remanesceria a responsabilidade estatal somente pela prática de atos ilícitos, que não seria objetiva, mas dependente de comprovação de que o dano tenha sido causado por violação de direito ou de omissão de cumprimento de dever, aplicando-se as regras da teoria da faute de service [13].
Entendemos, contudo, que tais argumentos não prevalecem, conforme será demonstrado no decorrer do estudo.
Jurisdição:
Para analisar a responsabilidade dos atos jurisdicionais, nos moldes do art. 37, §6º da Constituição Federal, é necessário, em primeiro lugar, partir do conceito de jurisdição e verificar se esta pode ser considerada um serviço público.
A palavra jurisdição tem origem no latim juris dictio, significa dizer o direito, e integra uma parte do Poder Estatal, representando o poder de aplicar a lei ao caso concreto, bem como aplicar sanções.
Ensina Chiovenda:
‘A jurisdição é exclusivamente uma função do Estado, isto é, uma função da soberania do Estado’ [14].
Observa-se que a jurisdição tem caráter essencialmente substitutivo, visto que o Estado substitui a ação das partes através de seus órgãos jurisdicionais, os quais somente poderão ser ocupados por aquele que estiver investido no cargo por ato legítimo, sob pena de responder pelo crime de responsabilidade criminal, além de causar a nulidade de todos os atos por ele praticados.
A jurisdição é norteada por diversos princípios, quais sejam: investidura, aderência ao território, indeclinabilidade, indelegabilidade, improrrogabilidade, inevitabilidade, nulla poena sine judicio, ne eat iudex ultra petitum, ne procedat iudex ex officio, motivação das decisões, juiz natural imparcialidade e unidade e identidade da função jurisdicional.
Nenhum magistrado pode delegar ou subtrair-se da função jurisdicional que lhe é inerente, a não ser nos casos expressamente permitidos por lei, como no caso de carta precatória. Ademais, a própria jurisdição já tem caráter de delegabilidade, não sendo permitido, portanto, uma subdelegação.
Assim, jurisdição é a função, delegada pelo Estado ao Poder Judiciário, de aplicar as normas de direito objetivo da ordem jurídica em relação a uma pretensão, bem como de tutelar os mandamentos da ordem jurídica. Daí dizer-se que é a causa final específica da atividade do Poder Judiciário [15].
A partir de tais considerações, embora a questão seja deveras divergente entre os doutrinadores, conclui-se que a jurisdição é um serviço público, assim considerado, um dos serviços que o Estado presta à comunidade, nos mais variados setores, para a consecução de seu fim.
Servimo-nos do raciocínio de Aliomar Baleeiro:
"Acho que o Estado tem o dever de manter uma Justiça que funcione tão bem como o serviço de luz, de polícia, de limpeza ou qualquer outro. O serviço da Justiça é, para mim, um serviço público como qualquer outro" (RTJ 64/714; RDA 114/325).
No mesmo sentido, Juary Silva aceita que o Estado, no desempenho da função jurisdicional, desenvolve um serviço público – o que temos por irrecusável e óbvio – depreende-se que o Estado-jurisdição é tão responsável pelos seus atos lesivos, quanto o é, no respeitante aos seus, o Estado-administração. Realmente, todo serviço público implica a idéia de responsabilidade de quem o executa, em qualquer modalidade, em face da jurisdicização da atividade estatal e da submissão do Estado ao Direito, nos moldes do constitucionalismo subseqüente à Revolução Francesa [16].
Desta forma, em sendo a jurisdição um serviço público que visa proteger juridicamente o cidadão, é passível de ser responsabilizada nos moldes constitucionais, pois, a tutela jurídica não é só pelo juiz, mas também, contra o juiz, dado que este tem poderes públicos e é vinculado aos direitos fundamentais, cabendo ao Estado direito de regresso contra o agente responsável que tiver agido com dolo ou culpa [17].
Observa Laspro que, para o juiz responder pelos danos causados à parte, é indispensável a presença de específicos elementos, objetivo e subjetivo. No tocante ao elemento objetivo, deve haver a configuração da ilicitude em razão da ação ou da omissão voluntária do juiz, que constituem o erro judiciário ou o anormal funcionamento da Justiça. Com relação ao aspecto elemento subjetivo, é necessário verificar se tinha o juiz a consciência da ilicitude ou se assumiu o risco [18].
Notório que, em se tratando de atos jurisdicionais, o agente que pratica tal ato é o magistrado (Estado-Juiz), devidamente investido na carreira através de concurso público de provas e títulos, que mantém, guardadas as proporções, um vínculo de emprego, de cunho profissional em relação à Administração Pública. A responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais vai além da sentença, abrangendo todos os atos praticados no curso do processo como despachos e decisões interlocutórias.
Interessante expor o raciocínio de Cretella Júnior que observa, com razão, que, pessoalmente, o juiz, num primeiro momento, não é responsável. Nem pode ser. Responsável é o Estado. Estado e juiz formam um todo indissociável. Se o magistrado causa dano ao particular, o Estado indeniza, exercendo depois o direito de regresso contra o causador do dano, sem prejuízo das sanções penais cabíveis no caso. Em caso de dolo e culpa [19].
Cabe ainda salientar que existem divergências na doutrina em relação à jurisdição voluntária e a contenciosa, no que tange à responsabilização. Porém, não é objeto deste trabalho aprofundar difícil discussão, restando-nos, apenas, breve conclusão.
Respeitados todos os entendimentos, ainda aqueles que se posicionam no sentido de que a denominada jurisdição voluntária se equipara a ato administrativo e não de jurisdição, não há dúvidas que a responsabilidade do Estado permanece, independentemente do tipo de jurisdição, uma vez que em ambas as modalidades, ainda é um servidor público que pratica o ato que pode lesar o particular. A espécie de jurisdição é irrelevante para o dever ressarcitório do Estado. Ademais, o Estado não deixa de ser responsável pela prática de atos administrativos.
Na lição de Souza Mendonça, para o lesado, interessa ser inteiramente reparado pelo dano sofrido. Máxime quando o agente é justamente aquele que promete evitar os danos, tanto mais quando provocado pelo órgão responsável pela equalização das relações [20].
O Estado somente não será responsabilizado pela reparação do prejuízo na hipótese do dano ter ocorrido por culpa exclusiva do lesado ou de terceiro (desde que comprovado que o Estado não concorreu, de nenhum modo, para a existência do ato lesivo), ou na ocorrência de caso fortuito e força maior.
Escreve Juary Silva:
"A responsabilidade jurisdicional do Estado, no nosso sistema jurídico, abrange não só as hipóteses de dolo ou fraude (exercício anormal da jurisdição), como também a de erro judiciário, entendendo-se por tal violação da lei, desde que não se trate da aplicação de um conceito indeterminado ou elástico, de decisão de equidade, ou de avaliação da prova; o erro pode referir-se à aplicação da lei material ou da processual. (...) Não há qualquer óbice a que a responsabilidade jurisdicional do Estado abranja todo e qualquer exercício de jurisdição" [21].
Os atos jurisdicionais atingem não somente os integrantes da relação processual a que se destinam, podendo refletir em terceiros estranhos ao processo. Sob o aspecto da responsabilidade do Estado por ato jurisdicional que atinja terceiro e lhe cause prejuízo, a doutrina é divergente.
Sustenta Maria Sylvia Zanella Di Pietro que tratando-se de função jurisdicional, tem-se que excluir, desde logo, os danos decorrentes de atos lícitos praticados pelo Poder Judiciário. Embora a função jurisdicional, no âmbito civil, objetive, em última instância, a consecução da paz social, quando se exerce no caso concreto, ela não beneficia a toda a coletividade (salvo em algumas ações que protegem o interesse coletivo) mas apenas as partes envolvidas. Não há como aplicar a regra da repartição dos encargos sociais; o benefício e o prejuízo alcançam apenas as partes no processo [22].
Com a devida venia, ousamos discordar do entendimento citado, uma vez que parece um tanto quanto injusto excluir de terceiro estranho à relação processual que sofreu um prejuízo causado por ato jurisdicional, seu direito de ressarcimento, ainda que em âmbito civil. Parece-nos que, nesta hipótese, o dano é ainda maior, uma vez que o terceiro sequer fazia parte da relação processual e sofre conseqüências danosas de um ato jurisdicional que, talvez, nem tivesse conhecimento de que poderia ser afetado.
Ademais, a Constituição Federal garante a todos o direito de reparação aos danos patrimoniais ou morais sofridos e a tutela de seus direitos e garantias fundamentais sem distinção, em relação à responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais ou de qualquer de seus agentes, se de aspecto civil, penal, trabalhista etc, bem como o direito de todos a peticionar aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder e, ainda, por ordem constitucional, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Porquanto incontroverso que o dano decorrente da atividade judiciária pode atingir não apenas as partes integrantes da relação envolvida, mas também, terceiros, através de algum ato praticado, não se pode negar a estes o direito de reparação apenas por não terem participado da relação processual, ainda que a responsabilidade não seja mais objetiva, ou seja, cumprindo ao terceiro lesado comprovar o nexo de causalidade entre o ato jurisdicional praticado e o dano lhe atingiu.
O Estado ao assegurar o pronunciamento judicial como único meio de estabilizar definitivamente qualquer direito conflitado deve responder pelos prejuízos resultantes da sua má atuação em fazer aplicar tal dogma constitucional. A finalidade da tutela jurisdicional é garantir que o direito objetivo material seja obedecido. Para tanto, estabelece a obrigatoriedade de o juiz cumprir determinados prazos, tomar providências preliminares, proferir sentença etc, constituindo garantia constitucional implícita a prestação apoiada no princípio da legalidade, através do qual o Estado deve suportar a lei que ele próprio fez, sendo inconciliável com o sistema, o fato de não gerar responsabilidade o descumprimento do direito positivado [23].
Daí a ponderação de Mário M. Porto:
"A Magistratura – como toda atividade artística – não é uma profissão que se escolhe, mas uma predestinação que se aceita. Vivemos uma quadra histórica em que a formulação e as aplicações dos ideais de justiça dilargam o cômodo e estreito território das verdades formais, dos juízos apriorísticos, das parêmias afonsinas. O juiz de hoje – patícipe atuante e não testemunho indiferente da evolução sócio-política do seu meio – não é mais um exilado da vida ou álgido locatário de torres de marfim. Apeado do pedestal a que se alçara não para a preservação de virtudes essenciais, mas por exigência de convenções secundárias, passou, hoje, a viver e participar dos conflitos e sofrimentos de seus iguais, para que os sentindo e vivendo pudesse resolvê-los, não como um orago a quem um carisma iluminara, mas como um artista a quem a experiência esclareceu" [24].
Não há, portanto, como negar a responsabilidade civil do Estado perante àquele que sofrer uma agressão ou dano decorrente de atividade jurisdicional, e, conforme assevera Carmem Lúcia Antunes Rocha:
‘o direito à jurisdição é o direito público subjetivo constitucionalmente assegurado ao cidadão de exigir do Estado a prestação daquela atividade. A jurisdição é, então, de uma parte, direito fundamental do cidadão, e, de outra, dever do Estado’ [25].
Responsabilidade pessoal do juiz:
Conforme os ensinamentos de Caio Mário da Silva Pereira, o juiz, na processualística moderna, não é mero espectador de uma contenda entre litigantes. Nem ao menos pode permanecer adstrito a conter os contendores na observância das regras do jogo. O juiz dirige o processo, assegurando a igualdade de tratamento, às partes, procurando rápida solução para o litígio e assegurando a dignidade da justiça. Ao aplicar a lei ao caso concreto deve acertar, mas nem sempre pode, pois humano, está sujeito a errar [26].
Em relação à responsabilidade pessoal do magistrado por ato jurisdicional, importante analisar o art. 133 do Código de Processo Civil [27] que, deve ser analisado à luz da Constituição Federal de 1988, tendo em vista datar de 1973. Aplicado o mandamento constitucional, observa-se que, na hipótese do juiz proceder com dolo ou fraude no exercício de suas ações, a responsabilidade civil recai sobre o Estado que haverá direito de regresso em face de seu agente e, no caso de haver recusa, omissão ou retardamento, sem justo motivo, em providência que deva ser ordenada de ofício, ou a requerimento da parte, a responsabilidade civil será pessoal do juiz, com natureza correicional, ex vi os mandamentos da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (art. 49, Lei Complementar nº 35/79).
De acordo com esta previsão numerus clausus, a obrigação de indenizar é pessoal do magistrado quando tenha agido com dolo (posto que a fraude é uma conduta dolosa) e culpa, sob a modalidade de negligência, ou seja, recusar, omitir ou retardar.
Ensina Rui Stoco que a atitude culposa do juiz ocorre tão logo a parte cumpra o disposto no parágrafo único do art. 133 do Código de Processo Civil, independentemente de ação judicial na qual se verificou a ocorrência ter ou não sido julgada. No entanto, para caracterizar o procedimento doloso ou fraudulento, há necessidade de expresso reconhecimento em ação rescisória [28].
A esse respeito, observa-se que a ação de indenização pode ser impetrada contra o magistrado diretamente, permanecendo a cargo do lesado optar por ingressar com ação contra a Fazenda Pública. Armando Gomes Leandro complementa:
‘Nestes casos, o magistrado poderá responder sempre diretamente perante o lesado. Quando, porém, não derive de prática de crime, a responsabilidade civil, além de só ser admitida nos casos especialmente previstos na lei, só poderá ser efetivada mediante ação de regresso exercida por parte do Estado contra o magistrado’ [29].
Divergindo do posicionamento de Rui Stoco, que sustenta o dever de indenizar do magistrado quando agir com negligência, Nelson Nery Jr. entende que a responsabilidade pessoal do juiz somente ocorrerá se tiver procedido com dolo ou fraude. A culpa no exercício da atividade jurisdicional não acarreta, para o magistrado, o dever de indenizar. O ato jurisdicional danoso, praticado com culpa, embora não enseje ao juízo dever de indenizar, pode acarretar, em tese, esse dever para o poder público (CF, 37, §6º) [30].
A responsabilidade pessoal do juiz, no entanto, não exclui a responsabilidade do Estado, sendo possível que o lesado ingresse com a competente ação contra ambos, solidariamente.
Optando o lesado por demandar contra o Estado, este não estará obrigado a denunciar a lide ao funcionário público no caso deste ter agido com dolo ou culpa, pois, nos dizeres de Yussef Said Cahali, a denunciação do funcionário público implica necessariamente na ‘confissão’ da responsabilidade civil do Estado pela denunciante, na medida em que se resolve no reconhecimento expresso do dolo ou culpa de seu servidor, como fundamento da denúncia; exaurida nesses termos da lide principal, cumpre ao Estado simplesmente adimplir a obrigação ressarcitória, mostrando-se imoral e despropositado pretender servir-se do mesmo processo instaurado pelo ofendido para, inovando a fundamentação da ação, recuperar de terceiro aquilo que já deveria ter pago, na composição do dano sofrido pela vítima; e desde que só este pagamento efetivamente realizado legitima a pretensão fazendária regressiva contra o funcionário culpado, resta-lhe apenas a ação direta de regresso para o reembolso [31].
Importante ressaltar os ensinamentos de Rômulo José Ferreira Nunes:
"Caracteriza a responsabilidade estatal quando, devendo sustar o ato impugnado através de liminar, comprovados os requisitos legais, o juiz deixa de fazê-lo, apesar do impetrante obter provimento final favorável que se evidencia inócuo. Maria Emília Mendes Alcântara (1989, pág. 47) aduz que ‘ao negar a liminar o juiz não se omitiu, tendo ao contrário agido positivamente. E este seu agir pode ser um comportamento lícito ou ilícito’. (...) De igual modo, se, ausentes os requisitos, o juiz conceder a medida indevidamente e resultar em danos para o requerido, realiza-se uma clara demonstração de que o serviço judiciário funcionou defeituosamente" [32].
Na hipótese da responsabilidade voltar-se contra um órgão colegiado e não a um juiz singular, entendemos ser a responsabilidade solidária, em ação de regresso ou não, de todos os membros que votaram no sentido que causou o dano.