Resumo: O presente trabalho versa sobre os conceitos de relativização da soberania estatal mediante a internacionalização dos Direitos Humanos. O tema consiste em demonstrar que o Estado tem o dever de promover e garantir a efetivação dos direitos humanos, inclusive se sujeitando às normativas do Direito Internacional, o que não significa abdicar da soberania, mas sim constatar que o Estado é detentor de um poder soberano relativo e não mais absoluto como historicamente concebido. Fundada juntamente com os princípios de formação dos estados, a soberania continua a ser identificada e exercida como poder supremo que qualifica determinado Estado diante dos demais. Entretanto, com a instituição do Direito Internacional dos Direitos Humanos, o indivíduo passou a adquirir a condição de sujeito de direitos, não apenas nos limites territoriais de seu Estado, mas frente a toda a comunidade internacional, e, desse modo, os Estados não mais podem justificar a violação de direitos considerados fundamentais, sob a alegação da exclusiva manutenção do exercício da soberania.
ABSTRACT:This paper deals with the relativity of concepts of state sovereignty through the internationalization of human rights. The theme is to show that the State has the duty to promote and ensure the realization of human rights, including being subject to the regulations of international law, which does not mean giving up sovereignty, but noted that the state holds a sovereign power relative and not absolute as historically conceived. Founded with the principles of formation of states, sovereignty continues to be identified and exercised as supreme power that qualifies certain state on the other. However, with the establishment of the International Human Rights Law, the individual has to acquire the rights of the subject condition, not only the boundaries of their state, but against the entire international community, and thus the states no longer can justify the violation of rights considered fundamental, on the grounds of the exclusive maintenance of sovereignty.
Palavras chave: direitos humanos, flexibilização e soberania.
INTRODUÇÃO
A pesquisa pretende abordar, no plano do Direito Internacional, a discussão acerca da relativização da soberania estatal em face da efetiva proteção dos Direitos Humanos. Pretendemos explanar e construir uma investigação cognitiva sobre a relativização do conceito contemporâneo de soberania estatal, com o propósito de melhor conceber seu exercício diante da necessária proteção dos direitos humanos.
Através de pesquisa bibliográfica e documental, o trabalho irá abordar as tendências que levaram à construção do conceito contemporâneo de soberania estatal. Será realizada uma análise construtiva de natureza bibliográfica que visa elucidar o tema sob o aspecto da aplicação dos Direitos Humanos. O objetivo é verificar como ocorre a relativização da soberania estatal e a efetivação dos Direitos Humanos no plano internacional. Para tanto, vamos identificar a construção do conceito de soberania; explanar brevemente sobre a evolução dos direitos humanos no plano internacional e contextualizar a efetivação dos mesmos na era da globalização.
1 O ESTADO SOBERANO
Segundo Morais[1] (2014), “o Estado Moderno, que é configurado pela conjugação da soberania, território e nação, que no decorrer da história passou por momentos de absolutismo, liberal clássico e liberal de bem-estar”, enfrenta atualmente “sua crise mais grave, que é a conceitual”.
1.1Formação histórica - conceito e características fundamentais
Dallari (2002) escreve que existem diversas teorias que tentam explicar a origem da formação dos Estados, dentre as quais se destacam: a formação natural e espontânea e a formação contratual dos Estados[2]. Entretanto, com o surgimento do Estado Moderno, a maioria dos autores considera que “o nome Estado só pode ser aplicado com propriedade à sociedade política dotada de certas características bem definidas”, dentre as quais está o pleno exercício da soberania.
Nesse sentido, Sahid Maluf (2010) explica que as fontes do poder soberano inicialmente evoluíram das “teorias carismáticas do direito divino”, passando pelas “correntes de fundo democrático (Teoria da soberania nacional – Revolução Francesa); e as “escolas alemã e vienense” (Teoria da soberania do Estado – Teorias estadísticas), que defendiam que a soberania provém do próprio Estado, “como entidade jurídica dotada de vontade própria”, tese inclusive utilizada para justificar os regimes totalitários surgidos ao longo do século XX. Seguindo os mesmos ensinamentos, existe também a “Teoria negativista da soberania” que considera que “a soberania é uma ideia abstrata”, pois o Estado, a nação, o direito e o governo são uma só realidade e “a soberania resume-se em mera noção de serviço público”. Em face das novas realidades mundiais, a Teoria realista ou institucionalista vem se expandindo, considerando que “a soberania é originalmente da Nação (quanto à fonte do poder), mas, juridicamente, do Estado (quanto ao seu exercício)”. E explica: “não se projeta a soberania como vontade do povo, senão como vontade do Estado”.
A palavra soberania deriva do latim “supremus”, ou seja, “uma autoridade superior que não pode ser limitada por nenhum outro poder”. Por sua vez, Miranda (2011) elenca que os entes federados não possuem soberania externa ou de Direito Internacional, sendo tal prerrogativa de competência exclusiva da União, logo, a soberania deve ser entendida como “originariedade do poder do Estado”, devendo ser entendida em termos jurídicos, e não históricos. Seguindo a análise, agora no plano internacional, Rezek (2008) explica que há muito a soberania deixou de ser “apenas uma ideia doutrinaria fundada na observação da realidade internacional”, para hoje se instituir como “uma afirmação do direito internacional positivo, no mais alto nível de seus textos convencionais”.
1.2 A construção da soberania contemporânea
Alguns doutrinadores entendem que a soberania se consuma nos Estados através da emissão da lei ou da sua execução. Mas seja qual for a modalidade adotada, “a soberania é limitada pelos princípios de direito natural”. Em outros termos, são “as leis que definem e limitam o poder”, conforme ensina Sahid Maluf (2010). Se a própria finalidade do Estado é a de garantir a segurança e o bem comum de seus integrantes, seus limites estão no que o autor acima denomina de “direito grupal” no ordenamento interno, e “imperativos da coexistência de Estados soberanos” no plano internacional.
Em termos históricos, somente após a II Guerra Mundial, o mundo concebeu a necessidade de se criar mecanismos de autoridade de alcance global, que se propunham a manter a independência dos povos e a paz mundial. Segundo Morais[3] (2014), apud Teixeira, “antes do modelo nuclear possibilitando a extinção da vida humana, a guerra era tida como ‘equilíbrio de poder’ em razão da real demonstração da força militarizada (...)”. Nesse sentido, Sahid Maluf (2010) escreve sobre a Organização das Nações Unidas (ONU), criada em 1945 e que até hoje atua dentro dos limites e objetivos que recebe por investidura dos próprios Estados que a integram. A partir desse modelo, surgiram outros agrupamentos classificados como “organizações internacionais” nas mais diversas modalidades e de múltiplos interesses. Entretanto, não são dotadas de soberania, pelo menos, não no sentido do conceito de soberania aplicada aos Estados, conforme ensina Sahid Maluf (2010).
Nos dias atuais, “o advento da era da tecnologia, o desenvolvimento dos meios de comunicação eletrônicos, a facilidade de locomoção, o desenvolvimento e a dinâmica do comércio estreitaram os vínculos obrigacionais e acentuaram a interdependência recíproca dos Estados”. E todo esse cenário têm levado alguns autores a considerar que a soberania estaria em extinção, pelo menos o que se refere a seu conceito clássico. De fato, desde o advento do fenômeno da globalização[4] “que constitui um processo de internacionalização de regras de convivência ou interferência politica entre países, impulsionado por fatores da produção e da circulação do capital”, o conceito de soberania tem recebido seus reflexos, principalmente por conta do lastro de desigualdade e proporção de desenvolvimento de cada país.
Nesse contexto, existem diversas organizações internacionais, algumas “de caráter preponderantemente politico”, como exemplo da ONU[5], ou “preponderantemente comercial”, como os blocos econômicos, cujo relacionamento é classificado como intergovernamental, ou seja, “para que as decisões adquiram força de execução, elas dependem da inserção dessas decisões no sistema legislativo interno, mediante a aprovação individual dos órgãos políticos de cada Estado-membro”. Entretanto, a maioria das deliberações não possui força coercitiva de aplicação, o que por si só limita o seu poder de atuação.
Em outros termos, “a abertura dessa possibilidade de ingerência politica interna não significa que os Estados tenham abdicado de sua soberania”, considerando que “a vinculação de cada membro ocorre sob a forma de um tratado, cada um preservando a própria soberania, podendo retirar-se da organização quando quiser”.
Por fim, ainda existe a “organização supranacional”, que engloba tanto os elementos políticos quanto os comerciais. Atualmente, a União Europeia se aproxima desse modelo de organização, onde “cada país cede ou transfere parcelas de suas respectivas soberanias a um órgão comum, admitindo que as decisões tomadas por esse órgão se tornem de obediência interna obrigatória, independentemente de qualquer outra manifestação política ou legislativa interna”. Aqui reside o “exemplo marcante da relativização do conceito clássico da soberania absoluta”. (MALUF, 2010).
2 A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
“Humano, demasiadamente humano[6]”.
2.1 Desenvolvimento Histórico
Apesar de não possuírem a característica de “universalidade” requerida para “o verdadeiro direito internacional, ou para o direito internacional tal como se entende nos tempos mais próximos de nós”, de forma cronológica, Silva (2002) ensina que “os primeiros rudimentos de um jus inter gentes[7] surgiram entre as tribos e os clãs de povos diferentes da antiguidade (...)”, com destaque para a Grécia e Roma antigas (com o imperativo da força), passando pelo advento do Cristianismo e o papel exercido pela Igreja, a consequente decadência do sistema feudal e os novos contornos globais trazidos pelo início da expansão marítima.
Durante o percurso histórico e concomitante a construção dos modelos de governo que formariam os estados (em sua concepção moderna), começou também a emergir a necessidade de se sedimentar um dos princípios fundamentais do direito: a “legalidade”.
Siqueira (2011), explica que, embora haja divergências na doutrina a respeito do surgimento do referido princípio, alguns autores, dentre os quais destaca Francisco de Assis Toledo[8], apontam como marco inicial o ocorrido na Inglaterra no ano de “1215, com a Magna Carta do Rei João Sem Terra[9], que estabelecia que nenhum homem poderia ser punido senão pela lei da terra”. Entendida como texto constitucional, “diversos artigos dessa Carta utilizavam a expressão ‘homens livres’ que equivalia dizer, na época, ‘homem nobre’”. Todavia, embora possa se verificar que a referida legislação “não atendia a todo e qualquer cidadão de forma indistinta, mas tão somente aos anseios da nobreza e do clero”, o referido documento já trazia “ideias ligadas à separação de poderes” e a “busca de limitação dos poderes do Estado em prol da liberdade individual (...)”. E ainda que o conceito de legalidade tenha sido aprimorado ao longo do processo histórico, a Magna Carta lançou os primeiros passos na direção da “defesa da imprescindibilidade da lei”[10], como garantia de proteção dos direitos.
Nesse sentido, Dallari (2002) escreve que a limitação do poder monárquico (absoluto) do Estado inaugurada na Inglaterra, contribuiu para o surgimento do “Constitucionalismo” que declarava determinados direitos como “intocáveis”, inclusive do alcance dos monarcas. Em outros termos:
(...) conjugam-se vários fatores que iriam determinar o aparecimento das Constituições e infundir-lhes as características fundamentais. Sob influência do jusnaturalismo, amplamente difundido pela obra dos contratualistas, afirma-se a superioridade do indivíduo, dotado de direitos naturais inalienáveis que deveriam receber a proteção do Estado. A par disso, desenvolve-se a luta contra o absolutismo dos monarcas, ganhando grande força os movimentos que preconizavam a limitação dos poderes dos governantes. (DALLARI, 2002).
Interessante destacar que vários são os eventos que subsidiam os primórdios do reconhecimento do homem como sujeito de direitos. Ressalvados os espaços das revoluções ocorridas nos planos restritamente internos de cada Estado, que alcançaram um maior ou menor grau de influência global, eleva-se a temática à discussão de maior amplitude no contexto internacional. Nesse contexto, embora haja dissenção na doutrina quanto às suas fases de evolução, Silva (2002) classifica a história do direito internacional em quatro períodos: da antiguidade até os Tratados de Vestefália; de 1648 até a Revolução Francesa e o Congresso de Viena (1815); do Congresso de Viena até a Primeira Guerra Mundial e de 1918 aos dias atuais, com ênfase ao término da II Guerra Mundial e seus desdobramentos.
Ainda que presente de forma isolada e pontual em vários momentos da história, o Direito Internacional só começou a tomar a forma universal no pós-guerra. Nesse período, em que também se sucedeu a Guerra Fria[11], surgiram importantes organizações que sedimentaram suas bases. Flávia Piovesan (2015) cita que “nesse cenário, o maior direito passa a ser, adotando a terminologia de Hannah Arendt, o direito a ter direitos, ou seja, o direito a ser sujeito de direitos”. Conforme Silva (2002): “até então o DI que era tridimensional (terra, mar, espaço aéreo), passou a se ocupar do espaço ultraterrestre, da lua e dos corpos celestes, dos fundos marinhos e do subsolo dos leitos marinhos, assinaturas de tratados específicos, proteção do meio ambiente”, entre outros.
Já no Século XXI, o autor considera que “todo provincianismo cultural está sendo superado pela marcha da História, forçando-nos a pensar em termos internacionais”. Há a perspectiva de que os direitos nacionais não são suficientes para contemplar as novas necessidades universais do pensamento jurídico contemporâneo que restringe o controle dos Estados em prol das liberdades e garantias individuais. Sobre o tema, assim explica:
Se o grande desafio do direito internacional no século XX foi a extraordinária ampliação de seu âmbito de atuação, a tarefa, não menos ingente, para o século XXI, será a busca dos correspondentes mecanismos de implementação. A ampliação do leque de questões, reconhecidas como intrínseca e inevitavelmente internacionais, não se fez acompanhar do desenvolvimento correspondente, das ferramentas que permitem assegurar a implementação das medidas e efetividade normativa. (SILVA, 2002).
O mesmo autor ainda elenca alguns dos novos desafios deste século (“pós-moderno[12]”), como o terrorismo internacional[13], a proteção do meio ambiente, a repressão ao tráfico de drogas, o crime organizado, a construção de espaços regionais integrados, a crescente interdependência entre as economias, os “Estados
que ainda se veem como a unidade básica de conta e operação das relações internacionais”, além da “crescente aceleração e aprofundamento do chamado ‘fosso digital’ entre países detentores de tecnologia de ponta e os demais que ficarão para trás”. Muitas são as limitações que dependem da “regulação eficiente das questões internacionais, como meio e modo, e de ir aprimorando a ordem internacional”. Mas é certo que este é um “caminho irreversível”.
2.2 Proteção Internacional dos Direitos Humanos
Conforme exposto anteriormente, ainda que os seres humanos, desde os primórdios de sua evolução, tenham direitos e garantias fundamentais inerentes à sua pessoa, essa concepção só ganhou contornos efetivos na história recente. Rezek (2008) escreve que até a fundação das Nações Unidas, em 1945, o direito internacional público não se preocupava, de forma consciente e organizada, sobre o tema dos direitos humanos. Muito embora, ao longo dos tempos alguns tratados cuidassem de proteger certas minorias, o termo “intervenção humanitária” era utilizado para denominar incursões militares. Flávia Piovesan (2015) explica que a partir do pós-guerra “a estrutura do contemporâneo Direito Internacional dos Direitos Humanos começa a se consolidar”, pois “os direitos humanos tornam-se uma legítima preocupação internacional” e, como consequência, “passam a ocupar um espaço central na agenda das instituições internacionais”.
Buscando gerar princípios e inspiração para outras convenções, em 1948 a Assembleia Geral (ONU) publica a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH)[14], um texto de normas substantivas que traz de forma ampla, importantes diretrizes para a sedimentação dos direitos humanos no plano mundial. Apesar de não ser um tratado (e por isso não gerar obrigações jurídicas para os Estados), a declaração inaugurou o primeiro debate à proteção dos chamados.
Daqui em diante, o tema entra na vanguarda de questões como o “direito à paz, ao meio ambiente, à copropriedade do patrimônio comum do gênero humano”, entre outros que vão surgindo com o próprio desenvolvimento da sociedade, impulsionado por novas tecnologias. Sobre o novo conceito normativo, Flávia Piovesan (2015) escreve: “a concepção contemporânea de direitos humanos, pela qual eles são concebidos como unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, na qual os valores da igualdade e liberdade se conjugam e se completam”. E citando Norberto Bobbio, conclui que “o maior problema dos direitos humanos hoje ‘não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los’”. Aqui se forma o novo paradigma que desafia os Estados contemporâneos a partir da sedimentação das transformações da globalização. Rezek (2008) complementa: “As coisas se tornam menos simples quando se cuida de saber de quem exigiremos que garanta, em plano global, nosso direito a um meio ambiente saudável, à paz ou ao desenvolvimento”. Entretanto, o desafio lançado aos Estados soberanos e organizações internacionais, aqui já reconhecidos como pessoas jurídicas de direito internacional público é de “coordenação, e não subordinação”.