O intuito da Lei n.º 8.429, de 2 de Junho de 1992 (Lei de Improbidade Administrativa) e a conseqüente atuação do Ministério Público em face dos desmandos administrativos é evidente nos dias de hoje. Também fica evidente outro caráter não menos elucidativo, o fato de que todas as teorias estudadas e aplicadas durante séculos ficaram profundamente rechaçadas. As teorias jurídico-políticas de Platão, Aristóteles, Rousseau, Montesquieu, Hegel, entre outros, estão sendo logradas ao mero viés legiferante moderno. Não que a legislação pertinente à Improbidade Administrativa seja errada ou tenha uma má intenção, mas é que, segundo a teoria dos pensadores aludidos, não haveria motivos para um controle direto do administrador público, pois este representaria a vontade do povo, a expressão da Soberania Popular e da Democracia.
Mesmo sabendo que sempre existiram corruptos e desonestidade na história do mundo, nunca houve uma preocupação em estabilizar a democracia, como acontece agora, pois esta sempre foi a expressão do povo. Ressalta-se, novamente, que não cabe criticar os méritos e os deméritos da lei supracitada, mas analisar o fato de que esta lei teve que ser criada e novas atribuições foram dadas ao Ministério Público em virtude de desmandos administrativos, da corrupção premente e banalizada, o que torna a democracia desconfiada.
Os antigos pensadores acreditavam em uma democracia natural, originária da vontade da maioria, sem que houvesse um preceito orientador de uma conduta futura do representante público como forma de condicionar esta democracia. No entanto, as reações e transformações que se operam na estrutura política da maioria dos países, o mal-estar e a inquietação generalizada que trabalha a alma de quase todos os povos modernos, toda essa série de fenômenos políticos e sociais, podem ser resumidos em uma expressão que vai se tornando banal: a crise da democracia. Em outras palavras, a sociedade criou um mecanismo para prevenir a democracia de eventuais crises. A democracia passou a se conformar com os próprios erros.
A ideologia dos grandes pensadores, acima citados, reside na aplicação do direito em prol do interesse superior da comunidade, não podendo ser subestimado por aberrações públicas, as quais sempre disseminaram inquietações nos seus membros. De acordo com as suas teorias, a precaução seria o prumo natural de toda democracia, a exemplo da definição de soberania popular, que a Constituição Federal expressa como essência da nossa Democracia em seu art. 1.º, Parágrafo Único, veja:
"Art. 1 º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito, e tem como fundamentos:
Omissis
Parágrafo Único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição".
É notória a conseqüência irradiada por este dispositivo, que emana a exegese da soberania popular em face da soberania do príncipe. Somente o povo seria soberano para delegar este poder, com o escopo da melhor satisfação dos seus interesses. A conseqüência da soberania popular, insculpida pelos grandes pensadores, não comporta qualquer distorção no exercício do múnus público, consignada como Improbidade Administrativa. Nesse ínterim, se comprovada a improbidade, em qualquer de suas qualificações, a soberania popular e a democracia estariam corrompidas.
A égide da democracia tem que ser lúcida e prudente diante da fragibilidade do que se convencionou a chamar de delegação do poder público, evitando para que este seja objeto de locupletação do alheio. Os grandes pensadores sempre quiseram transmitir a essência da soberania popular, com escopo de retaliar qualquer forma de comodismo, como acontece hoje em dia, em que o cidadão elege um corrupto e depois tenta corrigir a distorção. Ora, a soberania popular e a democracia dão direito ao povo de mudar ou abolir um governo que não atenda as finalidades propostas e asseguradas, estabelecendo uma nova ordem. Não é difícil, basta a imposição popular. Entretanto, pior do que construir é remendar o que está errado.
As teorias dos grandes mestres são aplicadas em várias regiões do mundo que atingiram o progresso no Séc. XX, ao contrário do Brasil, que ainda tem o axioma de entregar seus cofres públicos às pessoas notória e publicamente conhecidas pela falta de probidade. A repulsa da improbidade está inserida no preceito Democrático do supracitado art. 1 º, Parágrafo Único, da Constituição Federal, assegurando um entrave aos predadores do dinheiro público. O artigo constitucional e as teorias invocadas despontam como o principal instrumento contra a Improbidade Administrativa, que tem um benefício natural em face de qualquer lei infraconstitucional, qual seja: não estão adstritos à nenhum processo judicial, senão o processo democrático da eleição. A democracia eleitoral suplanta eventuais dramas cotidianos, como o desvio da verba destinada à educação, à saúde, à moradia, entre outras, suplantando também, a irresignação pública de ver a esperança atrelada à um custoso processo judicial, tendo-se em vista o grande volume de processos e de recursos da justiça brasileira.
Nota-se um descompasso quanto à compreensão do humano entre a razão técnica do Estado e a razão prática dos seres humanos do nosso país. "O cidadão pátrio é cada vez mais submetido à ciência política, experiência de um país que tenta dar certo às custas dos dilemas e paradoxos de uma vida moderna." [1] O povo brasileiro foi obrigado a criar uma lei que prevê os desmandos administrativos e a direcionar uma atenção especial do Ministério Público, que tem outras atribuições mais prementes à sociedade, ou seja, a democracia, acostumada com a corrupção, teve que criar uma solução para a desonestidade pública, a qual passou a ter a prioridade de nossas atenções. Tal fato assenta as previsões de Montesquieu quando reconheceu a inaptidão do povo para autogovernar-se e para escolher os melhores cidadãos, bem como a facilidade para ludibriar-se da maneira mais simples:
"O povo cai nessa desgraça quando aqueles em quem confia, procurando ocultar sua própria corrupção, buscam corrompê-los. Para que sua ambição não seja vista pelo povo, eles apenas falam na grandeza do povo; para que não se perceba a avareza, elogiam incessantemente a do povo." (2)
Mesmo considerando o Ministério Público como fiscal do regime democrático, verifica-se que há um desrespeito sistemático às normas constitucionais pelos agentes públicos, sendo a fiscalização do Ministério Público apenas mais um paliativo da improbidade, o que torna a democracia deformada. A atuação do Ministério Público será um entrave previsto ao ímprobo, mas jamais a democracia será entrave para a improbidade.
Poder-se-ia dizer, por outro lado, que a crise da democracia está estritamente ligada à Improbidade Administrativa, em que o cidadão pátrio deposita todas as suas esperanças públicas e políticas, oriundas desta democracia, em indivíduos que utilizam o múnus público para benefício próprio, em detrimento dos demais. A Improbidade Administrativa, enquanto crise da democracia, abala a vida social, ensejando o descrédito popular contra a classe dirigente em geral, minando os princípios básicos do Estado Democrático de Direito. A crise da democracia na Improbidade Administrativa é a incessante discussão do certo e do errado, do bem e do mal, proposta por Nietzsche: "Na verdade, o Eu astuto, o Eu egoísta, que procura seu bem no bem de muitos, este não é a origem do rebanho, mas a sua destruição". [3]
A Improbidade Administrativa pressupõe uma certa habilidade e uma sutileza do espírito destemido. Os ímprobos são pessoas que possuem, inacreditavelmente, uma inteligência aguçada para desmandos administrativos, sem que a ética seja um entrave moral. Será, então, que a falta de moral não é do povo? Povo que vê, corriqueiramente, administradores ímprobos usando de expedientes escusos ao manipular os cofres públicos ou ao faltar com os princípios basilares da Administração Pública, mas, mesmo assim, os colocam como representantes.
O que se pode observar é que o erro natural advém da deliberação popular inicial, ou seja, na eleição ou na escolha de seus representantes. Quando a prudência e lucidez cotidianas são abandonadas há um estímulo para que a prática de atos escusos seja obtida. Hoje em dia não há mais espaço para representantes públicos análogos ao ‘faccioso’ herói "Robin Hood", cujo lema estava materializado na vetusta frase: "Roubo, mas faço!" Faccioso, pois, a única semelhança que tinha com os representantes públicos hodiernos seria o lema. Não se pode esquecer que, antes de qualquer coisa, o homem público é um espelho da sociedade, e vice-versa, como ensina o Prof. Miguel Reale:
"O homem é como que Jano bifronte, com uma face voltada para si próprio e outra que se espelha no meio social". [4]
Quando aprovamos uma lei para coibir o desvirtuamento da função pública atestamos a incompetência da nossa Soberania Popular e, conseqüentemente, atestamos a crise da Democracia. Quando a Democracia deixar de ser um ideal utópico a nação não mais admitirá a situação vexatória de não encontrar, em sua ordem jurídica, a completude sempre almejada pelos grandes pensadores. Talvez seja a essência da Soberania Popular, hoje tão combalida, a forma basilar de retificação dos nossos valores.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativa. 10 ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 1998.
FILHO, Pazzaglini. Improbidade Administrativa. Aspectos jurídicos da defesa do Patrimônio Público - 3 ed. São Paulo: Atlas. 1998.
MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de. O Espírito das Leis. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Editora Martin Claret, 1999.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 1995.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000.
SILVA, Daniel Cavalcante. Ética na Advocacia: Estudos Diversos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9 ª ed., São Paulo: Editora Malheiros, 1992.
NOTAS
1. SILVA, Daniel Cavalcante. Ética na Advocacia: Estudos Diversos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, pág. 234.
2. MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de. O Espírito das Leis. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, Pág. 83.
3. NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Editora Martin Claret, 1999, pág. 59.
4. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 1995, pág.73.