Durante a idade média europeia não havia um direito uno, vigente para toda a nação e em todo o território nacional. A sociedade estava dividida em estamentos e cada um deles tinha seu próprio direito, fruto de adaptações do Direito Romano à realidade local. O direito era costumeiro, não estava escrito e era fruto dos estudos dos juristas.
Com o passar do tempo os Reis absolutistas começaram a enxergar a conveniência de que existisse um único direito, aplicável a todo o reino, como forma de solidificação de seu poder.
Essa ideia, porém, encontrou uma barreira insuperável justamente no fato de que existiam profundas diferenças sociais. A sociedade estamental era formada por grupos heterogêneos, o que impedia a existência de um único direito, que servisse a todos.
Ao lado da necessidade do Rei absolutista surgiram os ideais iluministas, que, fundados na razão, defendiam a superação do direito então existente, calcado em Roma e em costumes locais, variável no tempo e no espaço, e defendiam a ideia da existência de um único direito, fruto da razão. Como a razão é universal, o direito assim surgido serviria a todos e seria eterno.
Porém, foi somente com a Revolução Francesa que a ideia de um direito único tornou-se viável.
A consagração da igualdade, um dos ideais da Revolução Francesa, fez ser superada a heterogeneidade social, alçando a todos os cidadãos à condição de sujeitos de direitos. A crença na igualdade tornou possível a existência de um único direito, que pudesse ser aplicado a todos.
A superação da monarquia absolutista e a instalação de uma democracia possibilitou a instituição de um poder central, que pode chamar a si a condição de única fonte do direito. O Poder Legislativo, representante do povo, passou a ser a única fonte do direito. Direito era o direito escrito, votado pelos representantes do povo.
A Revolução Francesa, bem se sabe, levou a burguesia ao poder, de forma que o direito ditado pelo Poder Legislador teve feições burguesas, consagrando seus valores.
O movimento de Codificação, voltado à positivação do direito em um único texto, escrito, espalhou-se pela Europa continental, e, consequente, também chegou à América Latina.
Já há algum tempo, contudo, percebe-se que a igualdade em que fundada a existência de um direito uno é mentirosa. A sociedade não é formada por iguais, mas, do contrário, por desiguais, de forma que um único direito não serve a todos.
Relações sociais se autorregulam, à margem do direito escrito.
A evolução social é demasiadamente rápida para encontrar, nos Códigos, regulação adequada.
De outro lado, o Estado é forma de manutenção do poder de grupos dominantes, que utilizam o direito como ferramenta de controle social, visando, porém, unicamente a preservação de seus interesses.
Por certo, porém, não se deve negar juridicidade a fatos sociais que não encontram tipificação no direito escrito, ou mesmo que sejam contrários a este direito.
Assim é que surge o questionamento: É possível o reconhecimento da existência de um direito nascido diretamente do meio social, independentemente da chancela do Poder Legislativo?
Historiadores do direito já plantam a ideia da insuficiência da lei escrita, vez que a evolução social não pode ser mantida nos contornos traçados pela lei.
Como escreve Paolo Grossi (2010, p. 103) após a Revolução Francesa o Estado chamou a si a prerrogativa de ser a única fonte do direito. O direito passou a ser identificado com a norma escrita que chegava do alto e enjaulava a ordem jurídica. Era direito apenas o que o Estado queria que fosse. O modelo foi desenhado pelos detentores do poder e afastava do direito dos fatos sociais, em constante mudança e evolução.
Pio Caroni (2013, p. 46) afirma que, por vezes, o historiador do direito analisa a sociedade, “por vocação ou deformação” tomando como ponto de partida o Código. O Código, porém, não considera as desigualdades, as ignora, desenha uma imagem igualitária da sociedade. O Código, assim, oferece ao historiador uma visão míope do direito e da sociedade.
Segue Paolo Grossi (2010, p. 180), porém, dizendo que o direito surge dos valores mais profundos de uma civilização. O direito aplicado é apenas a ponta destes valores, de raízes profundas e que conferem harmonia e estabilidade ao ordenamento social. O direito escrito, seja fruto do poder exercido e emergido do Estado, seja fruto de construções teóricas de juristas, que não encontre lastro nos valores sociais, nada mais é que direito falso.
Conforme escreve Ricardo Marcelo Fonseca (2012, p. 23), o papel do historiador do direito não se resume a traçar uma linha tênue e superficial, que se inicia nos escritos do direito romano e passa pelos séculos, sempre saltando de um texto legal a outro, até culminar no direito hoje vigente, que se mostra como o ponto mais alto da evolução jurídica da humanidade.
Ricardo Marcelo Fonseca (2012, p. 36) segue dizendo que, do contrário, o historiador atual do direito busca demonstrar as diferenças existentes entre as experiências jurídicas do passado, reafirmando a historicidade do direito e sua profunda relação com o meio social, relativizando, assim, o direito atual e evidenciando sua temporalidade. O direito não nasce para ser eterno e o destino do direito atual é a mudança.
As relações sociais, especialmente as que estão mais distantes dos interesses do poder, se autorregulam, à margem do direito escrito e muitas vezes de formas contrárias a ele.
O grande número de leis e sua constante alteração não permite, mesmo aos profissionais que trabalham com o direito seu conhecimento completo, pleno e atual.
As pessoas comuns, em suas relações jurídicas comuns, desconhecem ou se esquecem dos códigos e das leis, e, enquanto mantém-se fora da visão do Estado, vivem seu direito próprio. É o que ocorre, como maior exemplo, em âmbitos familiares.
O direito de família, assim como outros ramos, notadamente do direito civil, vivido pelas pessoas comuns do povo é muito diferente daquele traçado pelo legislador, mas, ainda assim, é direito e dessa forma deve ser reconhecido e aplicado.
O movimento de codificação decorre de um momento histórico bem delimitado, em que se fizeram presentes o culto à razão e a necessidade de monopolização da produção do direito, para manutenção do poder.
A ideia de monopolizar a produção do direito, limitando-o à lei escrita, porém, não foi capaz de subjugar a natural produção de regras jurídicas pelo seio social.
Atualmente o Estado ainda chama a si a capacidade de dizer o direito. Contudo, a dinâmica e a complexidade da sociedade atual já não permitem que o Estado chame a si a regulação de todas as relações com a mesmo preciosismo de outrora.
Assim é que as relações sociais, notadamente as mais distantes das relações de poder, e, portanto, mais afetas ao cidadão comum, se distanciam dos códigos e se autorregulam, novamente, pela aplicação de direito que surge, naturalmente, de seus valores mais profundos.
Mesmo à margem da lei este direito pode ser reconhecido e aplicado, encontrando uma porta de entrada no ordenamento jurídico nos princípios, dotados de abstração que possibilita, não apenas a adaptação da interpretação do direito legislado às nuances sociais, mas também o acolhimento de um direito espontâneo e não legislado.
Temos, assim, que é possível o reconhecimento da existência de um direito nascido diretamente do meio social, independentemente da chancela do Poder Legislativo.
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