As ações judiciais movidas pelos mutuários, que têm como objeto as cláusulas dos financiamentos do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), multiplicam-se vertiginosamente nos órgãos jurisdicionais competentes. Nestas lides, a Caixa Econômica Federal (Caixa), por ser a gestora dos recursos do SFH, configura como sujeito passivo.
O grande número de litígios e as óbvias implicações dos mesmos na condução dos contratos do SFH atraíram de forma substancial a atenção da imprensa. A abordagem da mídia sobre a questão, contudo, nem sempre se reveste do necessário embasamento econômico e jurídico. A complexidade que cerca a problemática inviabiliza a emissão de qualquer parecer, em benefício de quaisquer dos pólos da relação contratual, sem que se proceda uma análise precisa dos instrumentos legais que regulam a matéria. Há de se considerar, também, as influências da conjetura econômica do país.
Antes de se dar continuidade à presente análise, faz-se indispensável acentuar que não se objetiva o patrocínio dos interesses de nenhuma das partes envolvidas. Pretende-se somente elencar dados relevantes sobre a questão, inseridos no atual quadro econômico, de forma desprovida de qualquer parcialidade.
Isto posto, a princípio, deve-se acolher o entendimento de que as condições impostas aos mutuários, hodiernamente, demonstram-se insuportáveis. O valor das prestações vem onerando de forma crescente a renda familiar dos devedores do SFH. Além disso, o montante do saldo devedor não sofre uma amortização que conduza à extinção da dívida no prazo previsto. Para agravar ainda mais o quadro, o país encontra-se imerso em profunda recessão e as estatísticas indicam altos índices de desemprego. Ao se direcionar os efeitos de tais indicadores econômicos aos financiamentos do SFH , constata-se, como conseqüência imediata e inevitável, o aumento da inadimplência. A impontualidade do pagamento, por sua vez ocasiona a incidência de juros moratórios, dentre outros, que dilatam, ainda mais, o valor da dívida.
A notoriedade da difícil situação dos mutuários, como suso revelado, torna desnecessário o prolongamento de sua exposição. No que cerne à apuração da responsabilidade da Caixa, entretanto, vincula-se nos meios de comunicação, que a culpa integral pelo presente cenário reside na imperícia da referida instituição financeira no cumprimento das funções a ela atribuídas. Acontece que tal acusação não pode subsistir, sem que se indique os necessários supedâneos técnico-jurídicos a lhe oferecer suporte.
Os contratos, cujas prestações estão sendo submetidas à apreciação do Poder Judiciário, consistem naqueles regidos pelos Plano de Equivalência Salarial por Categoria Profissional, PES-CP,(Lei nº 8.004/90 e 8.100/90) e Plano de Equivalência Salarial por Comprometimento de Renda, PES-CR (Lei nº 8.692/93). Assim, nos contratos assinados nas condições do PES-CP, as prestações só poderiam sofrer elevação no caso de ocorrência de aumento salarial para a categoria profissional do mutuário. Já nos contratos, em que se inseriu as normas do PES-CR, as prestações não poderiam comprometer o rendimento do devedor em níveis superiores à 30% (trinta por cento).
A correção do saldo devedor representa o ponto de interseção entre essas duas modalidades de financiamento. Em qualquer dos instrumentos, o valor da dívida submete-se aos mesmos índices de atualização aplicados sobre a fonte dos recursos do empréstimo. Como os empréstimos do SFH têm lastro nas contas do FGTS ou na caderneta de poupança, deve-se fazer incidir sobre o saldo devedor o índice aplicável sobre estes fundos. Elucida-se que todas as instituições financeiras aplicam sobre a poupança a TR e juro de 6% ao ano; enquanto para o FGTS, TR e juro de 3% ao ano. A determinação contratual que atrela a dívida aos índices correspondentes do lastro da operação demonstra-se coerente, haja visto ser imperativo, que a mesma recupere o valor liberado no empréstimo acrescido da correção da poupança ou do FGTS, conforme o caso. Cabe ressaltar ainda, quanto à questão, que o titular da poupança e do FGTS percebe os valores decorrentes dos rendimentos inerentes a estas contas; sendo a Caixa a responsável por estas quantias adicionais.
Decorre, dessa maneira, que, ao se atrelar o débito do financiamento aos índices do citado fundo, em respeito à previsão contratual, a Caixa não obtém nenhuma vantagem econômica. A remuneração do ente bancário é obtida mediante a apuração dos juros pactuados no contrato.
Ações na justiça são propostas, com o escopo de se obter a declaração de nulidade das cláusulas que inserem a forma de correção do saldo devedor. Fundamenta-se tal pedido na alegação de que a imposição dos índices de reajuste contraria princípios do direito contratual.
Nos julgamentos acerca da regularidade da atualização do valor das dívidas com base na TR, que corrige a poupança, revela-se clara divergência jurisprudencial. Com o objetivo de evidenciar a existência de decisões conflitantes, mencionar-se-á uma série de acórdãos de órgãos jurisprudenciais distintos e de diferentes instâncias. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou pela legalidade da aplicação da TR nos contratos do SFH, quando a matéria foi suscitada no Recurso Especial de número 1998/0030135-6. De forma diversa, os membros do Supremo Tribunal Federal, ao proferir decisão para a ADIN-493/DF, entenderam ser inconstitucional a imposição do citado índice. No âmbito dos Tribunais Regionais Federais, a questão também não se demonstra pacífica. A título de ilustração, no Tribunal Regional Federal da 1º Região; existem, registros jurisprudenciais, que consagram a adequação da incidência da TR sobre os financiamentos do SFH (TRF 1º Região AC 1999.01.00.019101-0 BA 3ª Turma Rel. Juiz Orlindo Menezes DJU 18.12.1998 p. 1435) e outros que determinam o contrário, ou seja, sua inaplicabilidade sobre o saldo devedor (AC. 96.01.47386-6/GO, p. 43, j. 02.06.98, unânime).
Faz-se oportuno, em benefício de uma análise desprovida de posicionamento tendencioso, atentar-se novamente para a situação dos mutuários. Os devedores do SFH, mesmo pagando os encargos devidos, não conseguem sequer diminuir de forma considerável o valor total do débito, por força da incidência da TR sobre a dívida. Para que se adquira noção do caráter nocivo desta taxa para os empréstimos do SFH, proceder-se-á breve exposição dos motivos de sua criação.
Com a implantação do Plano Real, a inflação sofreu uma redução gradativa, fato este que beneficiou vários setores produtivos. Em contrapartida, a poupança, que no período inflacionário representava recurso a impedir a perda do valor aquisitivo da moeda, apresentou queda significativa no volume de investimentos. Tal indicador consiste,para qualquer nação, uma ameaça à estabilidade das contas do Estado; uma vez que o montante depositado na poupança é repassado para o Governo. Isto significa dizer que, em um país que apresenta elevados recursos nas contas da poupança, o Estado dispõe de recursos a custos (juros) mais baixos, do que daqueles angariados por outros meios viáveis. Destarte, a diminuição do interesse, do apelo, popular pela poupança, teve implicações diretas nas finanças estatais.
Diante deste quadro, o Governo, através da Lei nº 8.177/91, editou normas para a estipulação de um índice que revitalizasse a poupança: a TR. A mesma, justamente por sua função teleológica, excede a simples correção monetátia, a fim de oferecer benefício ao poupador e, assim, incentivá-lo a fazer uso desta modalidade de investimento. Acontece que, ao se privilegiar o titular da poupança, onerou-se excessivamente o mutuário do SFH, já que a dívida deste se encontra vinculada aos índices da poupança e, consequentemente, do FGTS.
Com a finalidade de se compreender tal fato esdrúxulo, deve-se considerar as constantes e inaceitáveis variações na política salarial do país. No momento da celebração dos contratos, no início da década de noventa, as categorias profissionais recebiam aumentos periódicos, para compensar as perdas decorrentes da inflação. Atualmente, contudo, devido à recessão econômica e à política governamental, há anos não são atribuídos aumentos salariais substanciais aos trabalhadores, do setor público e da grande maioria do setor privado.
Com relação aos financiamentos do SFH, os reflexos destas alterações, que resultaram na estagnação dos salários, são facilmente identificados. Conforme anteriormente exposto, as leis que regiam tais empréstimos vinculavam o reajuste das prestações aos aumentos salariais da categoria profissional do mutuário ou a percentual de comprometimento da renda do mesmo. Se as regras salariais não tivessem sofrido alteração, a variação do salário, e conseqüente alteração do valor da prestação, poderia acompanhar a correção da poupança ou do FGTS, de acordo com o caso. Cumpre observar que obviamente os termos contratuais foram elaborados com base na realidade político-econômica do país à época da promulgação das leis, que determinaram o conteúdo das cláusulas. As modificações na política salarial e na economia brasileiras, realizadas ao longo dos anos seguintes à assinatura dos contratos, provocaram efeitos danosos ao equilíbrio das relações contratuais.
Em função da inércia dos salários, as prestações restariam congeladas; enquanto o saldo devedor, em contínuo crescimento, por estar, o mesmo, atrelado à correção do fundo lastrador correlato.
Como tentativa de contornar a questão, a Caixa, considerando que, nos contratos em tela, a prestação deveria ser relacionada com o saldo devedor, promovia a alteração do PES-CP e do PES-CR pelo SACRE, nos caso de assinatura do termo de renegociação da dívida. Mediante esta sistemática, a Caixa efetiva reajustes anuais nas prestações, visando possibilitar a amortização da dívida.
Ao elevar as prestações, sem anterior aumento dos rendimentos dos mutuários, o mencionado ente bancário compromete de forma insuportável estes devedores, o que tem ocasionado uma avalanche de processos em razão desta conduta.
Em resumo, há de se apreciar dois aspectos referentes aos empréstimos em questão: o índice da poupança e a política salarial. A instituição da TR, taxa fixada em índice acima da inflação, em conjunto com a paralisação dos aumentos salariais, provocou o atual e preocupante quadro.
Quanto às prestações, os mutuários estão recorrendo à justiça com o escopo de lograr a redução dos valores cobrados. A análise da questão, todavia, revela que o acolhimento judicial de tal pretensão não seria benéfico para nenhuma das partes litigantes. Se for determinada a diminuição das prestações, para o valor cobrado na data da verificação do último aumento salarial, a dívida assumiria caráter perpétuo. O montante da prestação, neste caso, não possibilitaria a amortização do saldo devedor. Assim, mesmo na hipótese de que o mutuário honrasse em dia seus pagamentos, sua dívida só se dilataria.
Também para a questão da forma de atualização do saldo devedor, não se vislumbra meio idôneo a dirimir o conflito de interesses entre a instituição bancária e os devedores. Se por um lado, os mutuários são submetidos à aplicação de índice especulativo sobre o débito. De outro, a incidência da TR, revela-se indeclinável para a estabilidade financeira do SFH e, consequentemente, da Caixa.
Em respeito ao que se comprometeu com a presente exposição, não se indicou na mesma a solução para a celeuma, ou se protegeu uma parte em detrimento da outra; mas tão somente se elencou aspectos relevantes sobre a questão.
Há de se aditar ao final nota a lamentar o fato de que, em um país como o Brasil, no qual existe um gigantesco déficit habitacional, os financiamentos do SFH estejam inseridos em um contexto tão caótico. Tais empréstimos são obtidos mediante juros subsidiários, em nome da função social dos mesmos. Mesmo assim, encontra-se estabelecida a discussão judicial acerca da regularidade das condições contratuais. Cabe aos jurisprudentes a emissão das decisões definitivas acerca do problema, para que se conduzam os casos concretos a um desfecho em consonância com a vigente noção de justiça.