1 INTRODUÇÃO
Há uma tendência mundial em se combater a discriminação de gênero, e mais facilmente percebida em determinados países – embora nem todos pareçam seguir este caminho. As lutas das mulheres, como o direito de sufrágio, direitos trabalhistas, igualdade na participação política, desnaturalização do machismo e contra a violência de gênero avança em meio a uma sociedade com preconceitos enraizados, em muitos casos oriundos de ideais religiosos.
A violência doméstica tem sido alvo de uma política criminal que procura dar respostas diretas e mais rígidas contra as ações dos agressores, no entanto, ainda falha em se mostrar como um caminho seguro para grande parte das mulheres vítimas destas agressões, que nutrem um sentimento de medo e culpa em razão dos abusos sofridos, ao mesmo tempo em que acreditam que não terão condições financeiras para viver longe do agressor.
Em meio a violência cometida contra a mulher, está incluso o estupro. A antropóloga Débora Diniz esclarece que “o estupro ofende as mulheres, não só no corpo possuído pelo prazer e ímpeto de tortura do agressor, mas principalmente porque nos aliena da única existência possível: a do próprio corpo” e continua “uma mulher vitimada pelo estupro não é só alguém manchada na honra, como pensavam os legisladores do início do século 20 ao despenalizar o aborto por estupro, mas alguém temporariamente alienada da existência” [1].
É tão notória a gravidade do estupro, que o volume I do Relatório da Comissão Nacional da Verdade apontou que o mesmo era utilizado como prática de tortura [2]. O relatório ainda nos fala que “a honra” daqueles considerados inimigos pelo aparato repressivo também foi combatida no corpo de “suas mulheres” [...] Para além de todo tipo de injúrias dirigidas às famílias de presos políticos, também eram constantes as ameaças de estupro de suas filhas e mulheres”. Observa-se, pois, que a ameaça de estupro dos familiares das vítimas de tortura era uma forma de causar danos psicológicos, vez que um ser humano que seja dotado de empatia, embora não consiga imaginar de fato como é ser vítima de tal atrocidade, acredita que os prejuízos são nefastos.
Buscando esclarecer as origens das agressões, os receios das mulheres, e os números que circundam essa relação, dá-se início a inúmeras pesquisas, e é com o foco nestas que este trabalho será exposto.
2 A VIOLÊNCIA DE GÊNERO
A violência de gênero vem recebendo grande proteção legislativa nos últimos anos e os esforços dos movimentos sociais contra a sua naturalização são cada vez mais nítidos e frequentes. Em 7 de Agosto de 2006 entrou em vigor a Lei 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha, com o objetivo de combater a violência de gênero no âmbito doméstico e familiar. Seu motivo e objetivos eram claros: a resposta penal dada contra a violência que milhões de mulheres eram sujeitas parecia ser insuficiente para dar solução e coibir a violência doméstica contra mulheres, destarte, através de uma legislação mais rigorosa esperou-se que casos como o de Maria da Penha Maia Fernandes fossem menos frequentes e, principalmente, menos negligenciados. O relatório da Deputada Jandira Feghali, apresentado na fase do projeto de lei, demonstrou que os Juizados Especial Criminais (JECRIMS) passavam a sensação de impunidade e dava grande margem à reincidência da violência em âmbito doméstico; o fato de 90% dos casos serem arquivados ou levados a transação penal não funcionava como desestímulo aos agressores [3]
Dentro desse viés de proteção à mulher, o Código Penal recebeu uma modificação pela Lei 13.104 de 2015, passando a tratar como homicídio qualificado o feminicídio, ou seja, o homicídio cometido em razão do sexo feminino. A respeito do feminicídio, o artigo 121 traz a seguinte previsão:
“Feminicídio
VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.
§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I - violência doméstica e familiar;
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
Atentando-se ao grande número de mulheres que são assassinadas no âmbito doméstico (70% dos casos [4]), e buscando punir crimes de origem misógina, o parágrafo segundo traz uma clara resposta sobre a aplicação da qualificadora. É uma tentativa, pois, de atacar os resultados mais extremos de uma cultura que subjuga e até mesmo tem ódio das mulheres.
No âmbito da violência sexual, a Lei nº 12.015 de 2009 deu uma nova redação ao artigo 213 do Código Penal, tornando mais abrangente as ações consideradas como estupro; modificação que alcançaria, em sua maioria, mulheres e crianças. A mudança, entretanto, gera uma dúvida de natureza estatística. O aumento no número de estupros [5] [6] que viria a ser percebido nos próximos anos poderia se dar por dois motivos: atos que antes não eram considerados estupros passaram a ser, e por isso os números aumentavam, ou a mudança legislativa não foi suficiente para frear o crescimento ou inibir as condutas. Aparentam estar corretas ambas afirmações: em primeiro lugar, diversas condutas que eram tratadas de forma diversa agora passaram a ser classificadas como estupro, e isso somou-se às estatísticas que já estavam presentes em nossa realidade; além disto, a simples mudança legislativa nem sempre surte efeitos, sejam a curto ou longo prazo, isto porque deve-se levar em conta a motivação do crime e a forma como a sociedade o enxerga em todos os seus contextos, que serão analisados adiante. Ademais, com relação ao motivo do crescimento, como nos fala Débora Diniz “pouco importa: o escândalo não está no crescimento em milhares de vítimas, mas na persistência do abuso. As mulheres ainda são objeto de alienação pelo poder patriarcal, que tem no estupro um de seus indicadores mais perversos” [7].
Apesar dos esforços de setores do Estado, movimentos pelo direito da mulher e de uma grande parcela da população, em termos gerais, o machismo segue presente mostrando sua face através de inúmeros segmentos: desde a discriminação salarial até os estupros e feminicídios. Comum entre todas estas condutas é o menosprezo pela mulher e, em diversos casos, o ódio. Destarte, parece adequado dizer que as diversas formas de discriminação, violência e abusos decorrem de uma visão torpe, carregada de estereótipos, e amplamente difundida, como:
a) incapacidade da mulher para realizar determinadas tarefas, ou superioridade do homem para as completar; o que leva a disparidades salariais ou mesmo para que elas sejam preteridas para cargos que demandem grande responsabilidade, como demonstra uma pesquisa realizada pela Catho, onde os cargos cujo o nível é mais elevado há menos mulheres, e o número percentual reduz a medida que a importância – responsabilidade – dada ao cargo aumenta [8];
b) o dever de servir aliado a ideia de submissão; a ideia pode estar mais clara ao falarmos da divisão do trabalho doméstico ou de como o homem deve ser “o cabeça do lar”, como podem ser menos diretas, como quando aponta-se que a maioria das pessoas concordam com frases como “toda mulher sonha em se casar” ou “uma mulher só se sente realizada quando tem filhos” [9];
c) romantização de situações de abuso; tão presente no cinema, livros e até mesmo no cotidiano, é comum que relações abusivas, em seus mais diversos graus, sejam tratadas com descaso ou mesmo como objetivo a ser alcançado, isto porque ignoram-se as condutas abusivas sob a égide de que aquele sofrimento vale ou valerá a pena, ou mesmo que é “merecido”. O foco é retirado da mulher enquanto pessoa e passa a ser a sua capacidade de satisfazer o terceiro e de se submeter a ele, dando uma conotação positiva ao abuso sofrido;
d) exploração massificada do corpo da mulher; ignorando-se a capacidade intelectual, dá-se demasiado foco ao corpo, em geral sexualizado, reafirmando-se ideais subvalorização. É comum que o enfoque das revistas e programas televisivos com “público-alvo feminino” deem especial atenção à dietas, exercícios para emagrecer ou tonificar músculos, vestimentas, etc., ou seja, o corpo é visto em primeiro plano. Quando a mulher está presente em situações que tem como alvo o público masculino, a sua sexualização é constante - notável exemplo está na publicidade, que utiliza corpos femininos para vender produtos desvicunlados desta temática [10]. Por óbvio que há um grande culto ao corpo, presente tanto em relação ao homem quanto à mulher, todavia, é evidente a desproporção e o enfoque dado.
3 ESTUPRO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
O artigo 213 do Código Penal define o estupro como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, sendo apenado com reclusão de 6 a 10 anos. A mudança na redação do artigo, que foi alterado em 2009 pela Lei 12.015, ampliou o rol de condutas classificadas como estupro, antes apenadas de forma diversa e menos severidade [11]. Além disto, o sexo do sujeito passivo, que antes era apenas feminino, agora abrange o masculino [12].
Importante salientar que a Lei nº 8.072, conhecida como Lei dos Crimes Hediondos, incluiu o estupro na modalidade simples ou qualificada como crime hediondo, ou seja, o legislador entendeu que o crime de estupro é tão abjeto que a forma como ele deve ser tratado diferente dos demais. Assim, a pena se faz mais severa no que tange sua execução, por exemplo, aumentando o tempo necessário para progressão regime. O rol de crimes presentes na referida lei é pequeno quando comparado a quantidade total de crimes previstos em nosso ordenamento, o que evidencia a preocupação do legislador quanto a punição do estupro, já que está ali elencado apenas por seu caráter repugnante, e não por lobby legislativo.
Sensíveis alterações podem ser percebidas quanto ao objeto de proteção. Deixou-se de enxergar o objeto central de proteção como os “costumes”, e mirou a proteção da “dignidade sexual”. Importante passo para dar à vítima a importância que tem dentro deste crime, e que ela é o sujeito passível de proteção. Além disto, como ensina Mirabete, a dignidade da qual se trata é aquela que é intrínseca a cada ser humano, a mesma prevista pela constituição ao falar sobre a “dignidade da pessoa humana”, e por esse motivo não deve ser ligada a moralismos; a mudança legislativa surgiu com o intuito de livrar-se deste conceito arcaico [13].
O abandono dos ideias morais que cercavam o estupro é percebido pelos termos utilizados na antiga e nova legislação bem como o abandono de alguns ideais. Era possível, pois, a extinção da punibilidade quando a mulher se casasse com o ofensor, ou, casando-se com terceiro, deixasse de demonstrar interesse no prosseguimento do feito, como observa-se com a redação dos incisos VII e VIII:
Art. 107 - Extingue-se a punibilidade:
VII - pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código;
VIII - pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebração [14];
A Lei 11.106 de 2005, responsável pela supressão dos incisos mencionados, também retirou a expressão “mulher honesta” do Código. A adição da palavra “honesta” como adjetivo em um tipo penal, parece passar a ideia de que as vítimas de um crime mereçam ou não proteção, e a proteção que lhes é dada passa pelo julgo moral da sociedade. A expressão era trazida pelo artigo 215 do Código Penal, que dizia ser crime “ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude”. Ainda que alguns venham a defender a palavra em razão do ano em que o Código fora escrito – que ainda não teria razão para tanto –, assombroso foi o tempo necessário para suprimir essa distinção vergonhosa. Ainda em relação a Lei 11.106, Maria do Rosário, Deputada Federal, diz que:
"Talvez o mais importante tenha sido justamente quebrar esse sentido de crimes contra os costumes. Porque a ideia de costumes é de que o ofendido era o homem ou a sociedade como um todo, não a mulher, não a vítima. Então eu posso com tranquilidade dizer que a Lei 11.106 é um dos dispositivos pioneiros que movimentaram uma rede de proteção, de maior atenção aos direitos humanos das mulheres, das crianças, e sobretudo no enfrentamento à exploração sexual no Brasil" [15].
Assim, avança-se pois em direção a proteção da mulher enquanto indivíduo a ser respeitado, e não em razão do que ela venha a representar para a sociedade ou marido.
4 A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA A MULHER NO BRASIL
O anuário de segurança pública de 2016 demonstrou que houve 45.460 casos de estupros no Brasil em 2015 [16]. Em relação a qualidade das vítimas destes crimes, a nota técnica nº 11 do IPEA, “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde”, demonstrou que, das notificações de 2011, 88,5% das vítimas eram do sexo feminino, enquanto que os agressores eram em mais de 90% das vezes do sexo masculino [17]. Quanto a este último estudo, importante salientar que as crianças (até 13 anos) representaram 50,7% dos casos, adolescentes (entre 14 e 17 anos) 19,4% e os adultos (maior de 18 anos) 29,9%. Na análise é possível perceber que o estupro cometido contra os mais novos têm como agressor, em geral, algum conhecido da vítima, a medida que a idade das vítimas avança, os desconhecidos passam a ser os principais agressores.
Deve-se ter em mente, ao analisar os dados, que o estupro é um crime com alto número de subnotificação, ou seja, uma quantidade muito baixa de crimes cometidos é notificada às autoridades competentes, fazendo com que o número total de casos de estupro seja muito maior do que as estatísticas oficiais. Não há precisão sobre a subnotificação do estupro no Brasil, todavia, Faúndes estimou que apenas 10% dos estupros chegariam ao conhecimento da polícia [18]. Para Greco:
“A conduta de violentar uma mulher, forçando-a ao coito contra sua vontade, não somente a inferioriza, como também a afeta psicologicamente, levando-a, muitas vezes, ao suicídio. A sociedade, a seu turno, tomando conhecimento do estupro, passa a estigmatizar a vítima […]. A conjugação de todos esses fatores faz com que a vítima, mesmo depois de violentada, não comunique o fato à autoridade policial” [19].
Apesar dos altíssimos números de estupro, há uma ideia que persiste no imaginário popular a respeito da responsabilidade da vítima por estes atos. É comum se pensar que as roupas da vítima influenciaram, ou até mesmo foram as responsáveis pelo ataque sexual sofrido; em casos mais extremos, afirma-se que, ao mostrar o corpo, essas mulheres mereçam sofrer abuso; é o que demonstrou uma polêmica pesquisa realizada pelo IPEA a respeito da tolerância social à violência contra as mulheres [20]. Ao elaborar a afirmação “se as mulheres soubessem se comportar, haveriam menos estupros”, 58,5% dos entrevistados concordaram com a frase, demonstrando a culpabilização da vítima e tentando associar o seu “mau comportamento” com o crime por ela sofrido. Quando a mesma pesquisa fez a seguinte afirmação “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” 26% concordaram com a frase. Esta frase merece um destaque especial em sua análise em razão da repercussão que gerou. Ao divulgar uma análise da pesquisa, o IPEA cometeu um erro, e trocou os gráficos, fazendo-se entender que os que concordavam com a frase eram 65% dos entrevistados. O caso repercutiu em diversos setores da mídia e deu início a vários protestos, como a campanha “Eu não mereço ser estuprada”. Após constatado o erro, o IPEA fez uma errata e o diretor de Estudos e Políticas Rafael Guerreiro Osório pediu exoneração [21].
O que chama a atenção no erro cometido pelo IPEA não foi o erro em si, mas a reação de muitos diante dessa constatação. Alvo de inúmeras piadas, perdeu-se o foco no assombroso número que ainda representava os 26% que concordavam com a frase. O fato de ¼ dos entrevistados concordarem com a afirmação parecia menos importante do que desqualificar o órgão pelo erro na divulgação dos resultados. A violência sofrida pela mulher, e apoiada por 26% da população ganhou caráter secundário em uma briga de egos e posição política. Houve até os que disseram que “apenas 26% concordaram” [22]. Parece preocupante, mesmo considerando que sejam 26%, e não 65%, que haja esse volume de pessoas concordando que a expressão da liberdade feminina através da escolha das próprias vestimentas mereça ser punida com o abuso sexual.
Marina Pinheiro nos diz que “assim como a culpabilização das vítimas de estupro, respostas negativas das autoridades e as descrenças aos relatos de abuso afetam a decisão das vítimas em denunciar“ [23]. Apesar da palavra da vítima ser um dos poucos meios probatórios do crime de estupro, quando não o único, é comum que não se dê a ela valor, ou que hajam dúvidas quanto a veracidade daquilo que a vítima afirma. O judiciário aponta pelo crédito na palavra, como se vê nos julgamentos abaixo:
“Cabe frisar que, a despeito da tese sustentada pela combativa defensoria técnica alegação de fragilidade probatória -, a palavra da vítima é de fundamental importância na elucidação dos fatos e da sua autoria, em matéria de crimes sexuais, visto que perpetrados, no mais das vezes, sob o signo da clandestinidade” (Apelação Criminal nº 0030111-15.2005.8.26.0576, rel. Des. Moreira da Silva, 8ª Câmara Criminal, 29/09/2011)”
““[a] palavra da vítima, em sede de crime de estupro ou atentado violento ao pudor, em regra, é elemento de convicção de alta importância, levando-se em conta que estes crimes, geralmente. não há testemunhas ou deixam vestígios” (STJ, HC 135.972/SP, 5ª Turma, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJe de 07/12/2009.). “
No entanto, não são raras as reportagens jornalísticas que apontam para a dificuldade da vítima em procurar ajuda em uma Delegacia e fazer o Boletim de Ocorrência[24] [25]. Os relatos das mulheres apontam para problemas quanto a dificuldade de se fazerem ser acreditadas quando revelam ter sido estupradas; chegam a ser questionadas se não estão caluniando, tem de repetir diversas vezes os fatos, após terem sido violentadas. Embora não seja essencial a elaboração do B.O, muitas são aconselhadas a fazer, já que as investigações em geral são realizadas a partir de sua elaboração. O estranho é que essa descrença quanto a palavra da vítima aparenta ser seletiva, vez que, pelo menos este que escreve, jamais viu alguém ser indagado a respeito do celular que lhe fora furtado, ou do relógio que lhe roubaram.
Essa descrença quanto a palavra da vítima pode ser notada na sugestão legislativa nº 7, de 2017, cuja a proposta é tornar a falsa acusação de estupro em crime hediondo e inafiançável [26]. A proposta, com origem no programa e-Cidadania, busca diferenciar a falsa acusação de estupro do crime de denunciação caluniosa em geral, prevista no artigo 339 do Código Penal. O artigo traz a seguinte redação:
“Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa.
§ 1º - A pena é aumentada de sexta parte, se o agente se serve de anonimato ou de nome suposto.
§ 2º - A pena é diminuída de metade, se a imputação é de prática de contravenção”
Já há, pois, previsão legal para aqueles que buscam induzir a autoridade em erro, e a consequente punição do caluniador. O objeto jurídico, no entanto, não é a proteção da moral ou honra do que fora falsamente acusado, mas a administração da justiça [27]. O crime é apenado de forma muito mais grave que o furto simples, por exemplo. É estranho, pois, que a denunciação caluniosa de estupro, cujas as principais vítimas são mulheres, e os principais autores são homens, seja a única denunciação caluniosa a ser elevada a um patamar cuja as penas são mais severas. O autor da proposta afirma que “80% das denúncias de estupro são falsas” [28], todavia, não há nenhum estudo ou pesquisa para fundar essa afirmação. Parece, pois, se basear no estereótipo da pouca validade das afirmações das mulheres. Além disso, vai completamente contra as pesquisas acima elencadas; como já foi citado, a maior parte dos crimes de estupro cometidos contra adultos tem como autores desconhecidos da vítima (60,5% dos casos), diante disto, qual seria a utilidade de 80% das mulheres acusarem falsamente alguém, já que na maior parte das vezes sequer conhecem os agressores? Sequer a chamada “síndrome da mulher de potífar” - figura criminológica de origem duvidosa e com raízes cristãs – conseguiria dar respaldo a essa lógica. Parece ser, como nas palavras da promotora Sílvia Chakian, “fruto de um preconceito com relação às mulheres. É como se a palavra delas não fosse digna de crédito” [29].
Há também grave problema, para a população em geral, a respeito da percepção sobre a liberdade da mulher em optar ou não pela relação sexual. Dos entrevistados pelo IPEA, 27,2% responderam que a mulher casada deve satisfazer o marido na cama, mesmo quando não tem vontade [30]. A desvalorização da capacidade optativa da mulher casada, como se esta tivesse o dever de “servir ao marido”, ainda que contra sua vontade, também está presente na doutrina jurídica, vez que Heleno Fragoso, verbi gratia, não admitia o crime de estupro de marido contra mulher [31]. A premissa de que, uma vez dito sim, não se pode mais dizer não, parece nortear esse tipo de afirmação, não levando em conta a complexidade da mulher enquanto indivíduo e sujeito de direitos. O número de pessoas que discordam da afirmação “um homem pode xingar e gritar com a própria mulher” é de 89,2%, ou seja, 89,2% discordam que um homem deva ofender verbalmente a mulher ou tratá-la com desrespeito, ao mesmo tempo que 27,2 % afirmam que ele pode estuprá-la. Desta forma, parece que, parte da população sequer enxerga o fato de obrigar a própria mulher a fazer sexo contra a sua vontade como o que de fato é: estupro.