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Revisitando a Súmula Vinculante n. 24

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Agenda 04/08/2017 às 15:15

4. Os absurdos decorrentes da SV 24

Para compreender o primeiro absurdo decorrente da inclusão do lançamento tributário como elementar do tipo penal descrito no art. 1º da Lei n. 8.137/1990 é necessário ter presente o conceito de autor de crime. Há, pelo menos, duas teorias para essa definição: a restritiva e a extensiva, como ensina a doutrina:

“Para os que adotam um conceito restritivo, autor será somente aquele que praticar a conduta descrita no núcleo do tipo penal. Todos os demais que, de alguma forma, o auxiliarem, embora não realizem a conduta narrada pelo verbo do tipo penal, serão considerados partícipes.

O conceito extensivo de autor encontra-se numa situação diametralmente oposta à do conceito restritivo. Pelo fato de partir da teoria da equivalência das condições, os adeptos do conceito extensivo não fazem distinção entre autores e partícipes. Todos aqueles que, de alguma forma, colaboram para a prática do fato são considerados autores.”[16]

Portanto, quem de qualquer forma concorra para a prática delituosa será considerado ou autor ou partícipe do crime. No caso do crime contra a ordem tributária definido no art. 1º, autor sem dúvida será o responsável por suprimir ou reduzir tributo ou contribuição, mediante qualquer das condutas descritas nos incisos, porquanto suprimir e reduzir são os verbos nucleares do tipo penal. Via de regra, quem pratica esses verbos é o sujeito passivo da relação jurídico-tributária, isto é, o contribuinte ou responsável tributário. Quem, mesmo não realizado o verbo, concorrer para o crime, será ou autor ou partícipe, conforme se adote a teoria extensiva ou restritiva do conceito de autor.

Se, conforme o entendimento pacificado na SV 24, o crime contra a ordem tributária não se tipifica antes do lançamento definitivo, então o lançamento é elemento do fato típico. Isso significa que aquele que realizar o lançamento terá, em tese, concorrido para a infração, na medida em que contribuiu para a formação do fato típico penal. Agora, pergunta-se: quem é o sujeito responsável pelo lançamento tributário? A resposta está no art. 142 do Código Tributário Nacional (CTN):

“Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.” (Grifou-se)

Então, a autoridade fiscal que efetua o lançamento de um tributo reduzido ou suprimido pelo contribuinte ou responsável é co-autora ou, no mínimo, partícipe do crime contra a ordem tributária. Lógico! Se o lançamento é um elemento do fato típico; se aquele que, de qualquer forma, concorre para a prática do fato típico é autor ou partícipe do crime; se o responsável pelo lançamento é a autoridade administrativa, a conclusão inarredável é que, de acordo com o entendimento sufragado pelo STF através da SV 24, o fiscal de tributos que efetua o lançamento, em tese, concorre para a tipificação da infração penal, logo é co-autor ou partícipe do delito. Para configurar o concurso de agentes, só faltaria o vínculo subjetivo entre o contribuinte ou responsável tributário e o agente fiscal.

Ora, ora, ora... A conclusão, evidentemente, é absurda. Mas é nela que se chega a partir da SV 24.

E não é só.

Segundo o art. 70 do Código de Processo Penal (CPP), a competência para processar a ação penal é, em regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução. Por outro lado, o crime considera-se consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal (art. 14, I, do CP).

Novamente: se o lançamento é um elemento do fato típico descrito no art. 1º da Lei n. 8.137/1990, como está escrito na SV 24, e o crime só se considera consumado quando reunidos todos os elementos da sua definição, a conclusão evidente é que a consumação desse delito depende do lançamento. Onde é feito o lançamento do tributo? Normalmente, na repartição pública onde está lotado o agente fiscal responsável pela lavratura do ato.

Em se tratando de Municípios, não há muitas dificuldades, já que o domicílio do contribuinte deve coincidir com a sede do órgão fiscal municipal. Porém, no caso dos Estados e da União, a coisa muda de figura, pois esses entes não possuem escritórios ou sedes administrativas do órgão fazendário em todos os municípios. A fiscalização é feita de modo regionalizado. Assim, se o domicílio fiscal de um determinado contribuinte não for sede de um escritório da fiscalização tributária do Estado ou da União, a consequência é que os lançamentos de ofício da autoridade fiscal sobre esse contribuinte serão lavrados em um local diferente de onde está sediado o contribuinte.

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Então, suponha-se que um certo contribuinte, cuja sede da sua empresa esteja localizada no Município A, deixa de escriturar determinadas operações de circulação de mercadorias e, com isso, suprime ou reduz o ICMS devido ao seu Estado. O agente fiscal, cuja repartição está localizada no Município B, fiscaliza esse contribuinte e, ao final, lança os tributos devidos.

Nesse caso, o crime, segundo o STF, só se tipificou com o lançamento, que ocorreu no município B. Assim, apesar de as condutas praticadas pelo contribuinte – não escrituração das operações – terem ocorrido no município A, a consumação do delito se deu no município B, onde se reuniu todos os elementos do tipo com o lançamento do tributo.

Portanto, o foro competente para processar a ação penal respectiva será o do município B, e não do município A.

Agora, imagine-se que o contribuinte resolva impugnar o lançamento. Com esse recurso, o lançamento ainda não é definitivo, razão pela qual, de acordo com a SV 24, não se tipificou o crime ainda. A última instância de julgamento do recurso, no caso dos Estados, normalmente é a capital, enquanto no âmbito da União é Brasília. Nessa hipótese, o lançamento será considerado definitivo por ocasião da prolação da decisão administrativa da qual não caiba mais recurso, que se dará na capital do Estado ou da União. Por via de consequência, essas capitais seriam o foro para processar a ação penal desses delitos, já que foi nelas onde se consumaram as infrações penais, com o lançamento definitivo do tributo.

Isso evidentemente não é o que ocorre na prática, dado o absurdo da hipótese. Mas, de novo, a SV 24 leva a essa conclusão.

Muito discute-se sobre a possibilidade de o delito do art. 1º da Lei n. 8.137/1990 ser tentado. Trata-se de questão igualmente tormentosa, a qual fica ainda mais complicada com os dizeres da súmula. De acordo com o Código Penal, considera-se tentado o crime quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente (art. 14, II).

Hugo de Brito Machado entende que o delito do art. 1º não pode ser tentado, na medida em que a tentativa desse delito corresponde à figura consumada do art. 2º da Lei n. 8.137/1990. Ademais disso, o autor realça a distinção entre a tentativa e o crime impossível:

“Na tentativa, o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Entre essas circunstâncias, todavia, não se deve admitir que estejam a ineficácia absoluta do meio, nem a absoluta impropriedade do objeto. Se a conduta meio é ineficaz para alcançar a supressão ou a redução do tributo porque a autoridade administrativa dispõe de instrumentos ordinários de ação que lhe fornecem o conhecimento do fato gerador do tributo, instrumentos que não são de nenhum modo afetados pela ação meio desenvolvida pelo agente, tem-se caraterizado o crime impossível.”[17]

Já Pedro Roberto Decomain entende ser perfeitamente possível a tentativa, por exemplo, “se a fiscalização tributária detectar a falsificação ou omissão antes do vencimento do prazo para o pagamento do tributo, lavrando o correspondente auto de infração”[18]. Essa também é a opinião de Kiyoshi Harada e outros,  para quem “o resultado consistente em ‘suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social’ não acontece porque impedido, por exemplo, por uma fiscalização preventiva do fisco”.[19]

Note-se que a opinião de todos os autores vai de encontro ao enunciado da SV 24. A súmula propõe que o crime só se tipifica com o lançamento definitivo do tributo, logo o lançamento é necessário para se ter por consumado o delito. Os autores, por sua vez, entendem que é justamente o lançamento que impede a consumação do delito ou torna-o impossível.

Partindo-se do pressuposto de que todo autor de um delito deseja consumar a infração, do contrário não teria praticado a conduta que conduz ao resultado, e considerando-se que, segundo a SV 24, o crime contra a ordem tributária previsto no art. 1º da Lei n. 8.137/1990 só se consuma com o lançamento, o contribuinte depende de uma ação fiscal para concretizar o seu delito. Ou seja, depois de praticar as condutas meio para suprimir ou reduzir o tributo, o contribuinte, ansioso por ver consumada a sua infração, precisaria solicitar a presença do fiscal em seu estabelecimento para fiscalizar as suas operações e lançar os tributos que ele, contribuinte, deseja suprimir ou reduzir. Imagine-se a cena: o contribuinte falsifica uma nota fiscal para suprimir ou reduzir o tributo e, ato contínuo, encaminha um expediente para órgão fazendário solicitando o comparecimento de um fiscal em seu estabelecimento, a fim de fazer um pente fino em suas operações, descobrir a fraude e lançar o tributo correspondente. Tudo isso para evitar que o seu crime não passe de uma fracassada tentativa de suprimir ou reduzir o tributo! Caso único do mundo!

E se o fiscal não atender ao reclamo do contribuinte, isto é, se o fiscal não efetuar o lançamento? O contribuinte já terá praticado pelo menos um ato de execução do crime, consistente na falsificação da nota fiscal para suprimir ou reduzir tributo. O crime, segundo a SV 24, não se consumou, porque não houve lançamento. O lançamento é um ato privativo do fiscal (art. 142 do CTN). Logo, o crime não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do contribuinte, que foi a omissão do fiscal. Crime tentado? Fosse qualquer crime ninguém teria dúvidas de que sim, o crime foi tentado, razão pela qual o seu agente deve ser punido com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços (art. 14, parágrafo único do CP). Mas, no caso de crime contra a ordem tributária, o buraco é mais embaixo.

Na hipótese aventada, sem dúvidas o contribuinte já terá praticado um ato de execução (falsificar a nota fiscal). Como o crime não se consumou porque ausente o lançamento, se o Ministério Público tiver conhecimento da fraude fiscal, poderia muito bem denunciar o contribuinte pela tentativa de sonegação fiscal. Porém, conforme o entendimento do STF, sem o lançamento o crime não se tipifica por “falta irremediável de elemento normativo do tipo”, não se justificando a “abertura ou continuação de inquérito policial, nem de qualquer procedimento investigatório do Ministério Público”, razão pela qual a investigação criminal deve ser trancada.[20]

Quer dizer, só depois do lançamento definitivo é que se poderia deflagrar a ação penal, mas aí já se estaria diante de um crime consumado, e não tentado. Portanto, o crime tentado não pode ser punido. Conclusão: a SV 24 criou uma hipótese muito peculiar de tentativa impunível, na medida em que, caso o lançamento, por qualquer motivo, não seja efetuado, todos os atos executórios do crime tributário já praticados pelo contribuinte ficarão impunes porque não serão nem sequer investigados.

Poder-se-ia discorrer mais sobre outras aberrações jurídicas decorrentes da SV 24, mas apenas essas já ilustram bem o equívoco em que incorreu o STF ao aprovar a famigerada súmula vinculante.

Agora, não é crível que os Ministros do STF tenham cometido um equívoco tão evidente. O mais provável é que o enunciado da SV 24 foi apenas um subterfúgio utilizado pela Suprema Corte para tentar superar uma possível contradição entre as decisões administrativas e judiciais envolvendo crimes tributários. O estranho é que essa preocupação não encontra eco quando se trata de apurar e punir outros crimes.

Sobre o autor
Leandro G. M. Govinda

Leandro G.M. Govinda formou-se em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina e é especialista em Direito Tributário pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Foi pesquisador do CNPq, escriturário do Banco do Brasil, Técnico da Receita Federal, Auditor-Fiscal da Receita Federal e Procurador da Fazenda Nacional. Atualmente, é Promotor de Justiça do Ministério Público de Santa Catarina, Professor da Escola do Ministério Público e integrante do Conselho Editorial da Revista Jurídica Atuação do Ministério Público Catarinense. Escreveu artigos publicados na Revista Tributária e de Finanças Públicas, na Revista Fórum de Direito Tributário e na Revista dos Tribunais (RTSUL).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOVINDA, Leandro G. M.. Revisitando a Súmula Vinculante n. 24. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5147, 4 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57928. Acesso em: 17 mai. 2024.

Mais informações

Outras publicações do autor: A polêmica sobre a falsidade ideológica das faturas nas importações. RTFP, n. 106, set./out. 2012. Tributos e penalidades no despacho antecipado de mercadorias a granel. RTFP, n. 70, set./out. 2006. Controle sobre as operações por conta e ordem de terceiros nos regimes aduaneiros especiais. RTFP, n. 60, jan./fev. 2005. A falta de interesse de agir dos municípios nas ações demolitórias. RT Sul, v. 6-7-8.

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