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Ações que visam o fornecimento de medicamentos

Uma análise dos argumentos adotados na decisão do Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada nº 175

Agenda 28/05/2017 às 16:42

Com a decisão do STA 175 AgR/CE, vários temas polêmicos como a “judicialização do direito à saúde” e a “reserva do possível” foram abordados pelos Ministros do STF, servindo de plano de fundo para a definição de parâmetros quanto às ações de medicamentos.

RESUMO

O direito à saúde, um direito social, surge na Constituição brasileira como um direito fundamental, devendo, por isso, ter sua aplicabilidade imediata. Derivado do direito à saúde está o direito de acesso aos medicamentos, que gera profundas discussão doutrinárias e jurisprudenciais, especialmente quando se refere à interferência do Poder Judiciário nesta matéria. Com a decisão do Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada nº 175 (STA 175 AgR/CE), vários temas polêmicos sobre o assunto como a “judicialização do direito à saúde” e a “reserva do possível” foram abordados pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), servindo de plano de fundo para a definição de parâmetros no que se refere às ações de medicamentos. Tanto os parâmetros definidos na decisão quanto os temas de fundo desta, foram analisados no presente trabalho e adotadas posições por parte da autora. Para tanto, foi utilizado o método dedutivo, já que se pretendeu a partir de uma análise acerca da evolução histórica dos direitos fundamentais, dos direitos sociais e do direito à saúde, e de uma análise dos temas polêmicos no que se refere ao direito à saúde, para, então, analisar a decisão paradigma do STF no que tange ao direito ao fornecimento de medicamentos. Dessa forma, após empreendida toda a análise conceitual neste trabalho, ao se analisar a decisão na STA 175 AgR/CE, verificou-se que é legítima a interferência do Poder Judiciário quando ocorrida a omissão estatal ou quando as políticas públicas já existentes são ineficazes. Quando da análise pelo Poder Judiciário do direito à saúde, também é frequente o conflito entre princípios constitucionais, devendo utilizar-se da técnica da ponderação. Além disso, percebe-se que apesar do orçamento do Estado ser finito, não se pode simplesmente alegar a incapacidade orçamentária, devendo o Estado garantir ao menos o “mínimo existencial”.  Outrossim, cada caso merece uma análise minuciosa por parte do julgador, não podendo as ações terem decisões repetitivas tendo em vista as peculiaridades de cada caso. Enfim, tem-se por legítima a atuação do Poder Judiciário nas ações de medicamentos, pois cabe a este poder proteger a Constituição e defender os direitos nela assegurados.

 

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo analisar os argumentos adotados na decisão do Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada nº 175 (STA 175 AgR/CE), uma decisão paradigma no que se refere às ações de medicamentos.

O termo “direitos fundamentais”, ao longo dos anos, vem cada vez mais abarcando novos direitos. Após serem reconhecidos os direitos fundamentais ditos de “liberdade”, com o surgimento do Estado Social uma nova categoria de direitos desponta: os direitos de 2ª geração. Esses direitos, num primeiro momento, surgiram na esfera programática. No entanto, com a evolução das legislações, tal como a brasileira através do art. 5º, §1º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), tal direito passou a ter aplicabilidade imediata.

Dentre os direitos sociais se encontra o direito à saúde, o qual, por sua vez, abrange o direito ao acesso a medicamentos. Este tema tem gerado grandes discussões doutrinárias e jurisprudenciais, entre as quais se destacam: (1) a possibilidade de interferência do Poder Judiciário nesta esfera, que envolve escolhas alocativas; (2) a colisão entre regras e princípios, especialmente entre o direito à saúde e à igualdade, ou entre o direito do Estado de não ver lesadas suas finanças públicas em contrapartida do direito à saúde e à vida; (3) a aplicação da “reserva do possível”, que limita os direitos à capacidade financeira do Estado.

Com a decisão do Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada nº 175, teve-se vários dos temas acima elencados abordados pelos Ministros de STF, o que serviu como pano de fundo para a definição de parâmetros no que se refere às ações de medicamentos.

Neste sentido, busca-se com o presente trabalho analisar a decisão tomada pelo STF na STA 175 AgR/CE e expor os parâmetros delineados pelo Tribunal, bem como, adotar posições no que se refere a temas polêmicos referentes às ações de medicamentos.  

Portanto, a fim de encontrar a resposta para o problema suscitado, partiu-se dos seguintes objetivos: a) apresentar a evolução dos direitos fundamentais, em especial do direito à saúde; b) expor os temas de maior relevância abordados pela doutrina no que se refere ao direito à saúde, mais precisamente às ações de medicamentos, com seus pontos contra e a favor para o fornecimento destes; c) expor os argumentos adotados pelos Ministros do STF na STA 175 AgR/CE e analisar os parâmetros definidos em tal julgamento.

Em assim sendo, o primeiro capítulo do presente trabalho apresenta a evolução histórica dos direitos fundamentais, do surgimento dos direitos sociais com o Estado Social, do reconhecimento do direito à saúde e sua evolução internacionalmente e no Brasil.

O segundo capítulo demonstra os temas polêmicos travados na doutrina brasileira no que se refere ao direito à saúde, como a judicialização da saúde, a ponderação entre regras e princípios, e o princípio da reserva do possível.

O terceiro capítulo expõe o caso da STA 175 AgR/CE, julgado pelo Tribunal Pleno do STF; bem como, faz uma abordagem dos argumentos de fundo utilizados pelos Ministros sobre o direito à saúde, argumentos estes que, inclusive, foram abordados mais profundamente no segundo capítulo deste trabalho monográfico; e analisa os parâmetros adotados pelo STF no que se refere às ações de medicamentos.  

Por fim, serão apresentadas as conclusões realizadas pela autora, expondo suas opiniões pessoais e finalizando a exposição do tema estudado.

 

1.  A SAÚDE: UM DIREITO FUNDAMENTAL.

Este capítulo tem por escopo trazer uma breve abordagem histórica acerca dos direitos fundamentais, os quais são comumente divididos em direitos de primeira, segunda e terceira gerações. Esses direitos de segunda geração, que incluem os direitos sociais, requerem uma atuação positiva por parte do Estado, estando incluso nesta geração o direito à saúde, intimamente ligado ao direito à vida e da dignidade da pessoa humana. Assim, com o recorte teórico proporcionado neste capítulo, ter-se-á melhores bases para analisar o tema deste trabalho.

1.1. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS: BREVE HISTÓRICO

Na sociedade primitiva, não havia poder dominante, nem opressão social ou política, pois os bens pertenciam ao conjunto, havendo uma comunhão democrática de interesses. Com o desenvolvimento da sociedade e a criação das propriedades privadas, surgiram as figuras da subordinação e da opressão, visto que o titular da propriedade impunha seu domínio e subordinava todos que se relacionassem à sua propriedade. Surge, então, o Estado “como aparato necessário para sustentar esse sistema de dominação”. (SILVA, 2007, p.150)

Desde, então, conforme salienta Silva (2007, p. 149-150), a sociedade luta para se libertar das opressões sociais e políticas, sendo que a cada “etapa da evolução da Humanidade importa na conquista de novos direitos”, ou, melhor dizendo, na reconquista dos direitos perdidos nos tempos primitivos.

No decorrer da evolução, diversos foram os documentos elaborados que servem como antecedentes formais das declarações de direitos. Dentre eles, destaca-se a Magna Carta (1215—1225) que foi confeccionada com o fito de “proteger os privilégios dos barões e os direitos dos homens livres”; a Petition of Rights (1628), a qual pediu “o reconhecimento de diversos direitos e liberdades para os súditos de sua majestade”; e a Bill os Rights (1688), considerado o documento mais importante, através do qual se reconhecia a supremacia do Parlamento e limitava os poderes reais à declaração de direitos. (SILVA, 2007, p. 152-153)

Conforme se observa, os documentos acima expostos, de origem inglesa, serviam para proteger os altos escalões da sociedade contra a arbitrariedade dos reis, e apesar de se limitarem a uma pequena parcela da sociedade, representam uma evolução na reconquista dos direitos.

Com a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia, em 1776, nos Estados Unidos (EUA), teve-se a primeira declaração de direitos fundamentais, em sentido moderno. Consoante Silva (2007, p.153-154), essa declaração deu forma às bases dos direitos do homem, importando “em limitações do poder estatal como tal, inspiradas na crença na existência de direitos naturais e imprescritíveis do homem”.

Em 1787, foi aprovada a Constituição dos EUA, mas que não continha uma Carta de Direitos. Foram as dez primeiras emendas à Constituição, aprovadas em 1791, que acrescentaram um Bill of Rights do povo americano àquele documento. (TAVARES, 2008, p.442)

Em 1789, foi confeccionada pela Assembléia Constituinte Francesa a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Esta, conforme Silva (2007, p.157), não foi adotada apenas por influência da Declaração de Virgínia, pois os franceses já vinham preparando o advento do Estado Liberal. Importante salientar que, ambas, tem fontes filosóficas e ideológicas européias.

O Estado liberal ganhou grande projeção com a Revolução Francesa, a qual defendia as bandeiras da liberdade, igualdade e fraternidade. (BONAVIDES, 1996, p.30) A doutrina do liberalismo visualizava o Estado como um inimigo da liberdade e que, portanto, deveria ter seus poderes limitados. No entanto, a liberdade que se visava garantir era a da burguesia, essencial para o domínio do poder político, a qual se estendia aos demais indivíduos apenas no campo formal. (BONAVIDES, 1996, p.40 e 44)

Neste contexto tem-se os direitos fundamentais de primeira geração, os direitos da liberdade, que “têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado” (BONAVIDES, 2000, p.517). Dessa forma, sendo os direitos de liberdade contrapostos à razão de Estado, quanto menor a atuação do Estado na vida humana, maior a liberdade dos indivíduos (BONAVIDES, 1996, p.61).

Essa geração de direito fundamentais, engloba, atualmente, os direitos individuais e políticos (TAVARES, 2008, p.456). Tais direitos, segundo Bonavides (2000, p.517), “já se consolidaram em sua projeção de universalidade formal, não havendo Constituição digna desse nome que os não reconheça em toda a extensão”.

Na época, as Constituições do século XVIII e XIX passaram a incorporar os direitos fundamentais de primeira geração, que se caracterizavam fundamentalmente pelo seu caráter negativo, visto que previam um conjunto de garantias ao indivíduo, as quais exigiam uma abstenção por parte do Estado.

Contudo, o Estado liberal entrou em crise após a Primeira Guerra Mundial e em decorrência do capitalismo monopolista (MAULAZ, 2010). A burguesia, que na Revolução Francesa formulara os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, assim que assumiu o poder, deixou-os apenas na esfera formal. Em decorrência disso, com a Revolução Industrial, passaram a ocorrer atos desumanos da burguesia contra o proletariado, visto que seus direitos ou possuíam vigência parcial ou se situavam apenas no campo formal (BONAVIDES, 1996, p. 44 e 59).

Neste contexto histórico, surge o Estado social, “que representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal” (BONAVIDES, 1996, p.184). Esse novo formato de Estado caracteriza-se, principalmente, por tornar concretos aqueles direitos de primeira geração que antes pairavam apenas no campo formal. Com isso, surge uma nova categoria de direitos, os direitos fundamentais de segunda geração, que abrangem especialmente os direitos sociais, culturais e econômicos. (BONAVIDES, 2000, p.518)

Dessa forma, com o advento do Estado social, o Estado sofre uma ampliação extraordinária na sua seara de atuação (MAULAZ, 2010). Assim, o Estado que, quando liberal, deveria abster-se de atuar na vida da sociedade, ao passar para o Estado social assume uma série de obrigações em tarefas de intervenção no domínio social e econômico, a fim de garantir os direitos sociais.

Essa nova categoria de direitos tinha por objetivo a realização do próprio princípio da igualdade, pois, consoante leciona Tavares (2008, p.457), “de nada vale assegurarem-se as clássicas liberdades se o indivíduo não dispõe das condições materiais necessárias a seu aproveitamento”.

Com essa mudança para o Estado social, os direitos de segunda geração dominaram as Constituições da época, acarretando mudanças em seus conteúdos, passando a ter em seus textos normas diretivas e programáticas, que assim são chamadas “em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade.” (BONAVIDES, 2000, p.518)

Conforme explica Silva (2007, p.160), foi a Constituição mexicana de 1917 que primeiro sistematizou os direitos sociais, “restrita, no entanto, ao critério de participação estatal na ordem econômica e social, sem romper, assim, em definitivo, com o regime capitalista”. Em 1919, a Constituição alemã de Weimar também reconheceu os direitos sociais e econômicos, sendo a que exerceu maior influência no pós-Primeira Guerra Mundial.

Por serem, num primeiro momento, remetidos à esfera programática, os direitos de segunda geração passaram por um ciclo de baixa normatividade ou tiveram eficácia duvidosa, sendo que em muitos dos ordenamentos jurídicos os direitos de liberdade tinham aplicabilidade imediata, enquanto os sociais, mediata (BONAVIDES, 2000, p.518-519). Assim, os direitos de segunda geração davam um direcionamento ao Estado, dependendo da atuação legiferante dos poderes legislativo e executivo para se concretizarem.

Contudo, como toda norma constitucional é norma jurídica válida e vigente e, portanto, de eficácia normativa plena, os direitos ali enunciados devem ser impostos a todos os agentes estatais, sem distinção entre direitos de primeira ou de segunda geração, devendo todos gozar, em certa medida, de aplicabilidade imediata. E, foi com observância a este fator que a CRFB/88 formulou o princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. (BONAVIDES, 2000, p.518)

Importante aqui fazer um destaque ao fato de que a positivação dos direitos fundamentais se dava apenas no âmbito nacional. Porém, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em 1948 pela ONU, os direitos fundamentais ganharam a feição multinacional (SILVA, 2007, p.162).

Como a luta pela ampliação dos direitos fundamentais está em constante evolução, com a partição das nações em desenvolvidas e subdesenvolvidas, surgiu uma terceira geração de direitos fundamentais, assentada, principalmente, na idéia de fraternidade. (BONAVIDES, 2000, p.522) Tais direitos se caracterizam pela sua titularidade coletiva e difusa (TAVARES, 2008, p.457), não se destinando à proteção dos interesses de apenas um indivíduo, um grupo ou determinado Estado, mas sim, tendo como destinatário o gênero humano (BONAVIDES, 2000, p.523).

Para Tavares (2008, p.458),

A conseqüência mais veemente do reconhecimento dessa categoria ampla de interesses foi a de pôr a descoberto a insuficiência estrutural de uma Administração Pública e de um sistema judicial calcados exclusivamente no ideário liberal, que apenas comporta a referência individual, incapaz que é de lidar com fenômenos metaindividuais.

Há autores que inserem, também, uma quarta geração de direitos, tal como Bonavides (2000, p.525) que entende que esta se forma a partir da globalização, abrangendo os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo. O autor conclui que “os direitos de quarta geração compreendiam o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos. Tão-somente com eles será legítima e possível a globalização política”.

Diverge de tal idéia Tavares (2008, p.459), o qual entende ser mais coerente para com as demais gerações, falar na quarta geração de “uma diferenciação de tutela quanto a certos grupos sociais, como, por exemplo, as crianças e os adolescentes, a família, os idosos, os afro-descendentes etc.”

Cabe destacar que a classificação dos direitos fundamentais em gerações é feita para fins didáticos, devendo-se tomar cuidado, conforme assinala Tavares (2008, p.460), para não se ter a idéia de que houveram apenas avanços, visto que na realidade houveram retrocessos e fortes polêmicas sobre os direitos.

Importante, novamente, relembrar que os direitos fundamentais estão em constante evolução e a cada dia novos direitos são conquistados, não havendo, portanto, um rol taxativo. E não se pode ser radicalista a ponto de separar os direitos de cada uma das gerações, pois, muitas vezes, os direitos são dependentes em relação aos outros.

1.2. A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E OS DIREITOS SOCIAIS

A CRFB/88 consagrou os direitos fundamentais em seu título II, sendo, portanto, um dos títulos mais relevantes do texto constitucional. Consoante Severo e Rosa Júnior (2007, p.69), o título II é uma das principais partes da Constituição,

pois consagra a tábua de direitos e deveres fundamentais que a comunidade política brasileira reconhece, dentre os direitos humanos, e assume o compromisso de, conjuntamente com cada um de seus integrantes, possibilitar ao máximo a vivência efetiva e eqüitativa, bem como a garantia do exercício harmônico de cada um estes direitos e deveres.

Tal título possui cinco capítulos – “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, “Dos Direitos Sociais”, “Da Nacionalidade”, “Dos Direitos Políticos”, “Dos Partidos Políticos” – dos quais iremos nos ater apenas ao “Dos Direitos Sociais”.

Silva (2007, p.286-287) conceitua os direitos sociais

como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta e indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais.

Os direitos sociais, conforme exposto anteriormente, surgiram com o Estado Social, em um período em que os direitos fundamentais se encontravam apenas na esfera formal, não bastando a simples abstenção por parte do Estado. O que se precisava era justamente do contrário, da intervenção do Estado no domínio econômico e social, com a finalidade de tornar concretos aqueles direitos denominados de primeira geração. Assim, para estabelecer condições que permitissem a preservação da dignidade da pessoa humana “foi atribuída ao Estado a responsabilidade pela efetivação destes direitos, sendo-lhe conferida a obrigação de oferecer certas prestações aos cidadãos, principalmente aos que se encontravam em situação econômica desfavorecida”. (SEVERO; ROSA JÚNIOR, 2007, p.79)

Dessa forma, ao contrário dos direitos de primeira geração, que trazem apenas a igualdade formal, “para a concessão dos direitos sociais ou da segunda geração são reconhecidas exatamente as diferenças, partindo-se do pressuposto de que os homens encontram-se em situação desigual”. Ainda, os direitos sociais implicam em uma redução dos direitos de liberdade, visto que, por exemplo, ao assegurar o direito social à moradia, delimita-se o direito à propriedade. (SEVERO; ROSA JÚNIOR, 2007, p.80)

Assim sendo, com os direitos sociais busca-se efetivar uma igualdade material, tratando-se desigualmente os desiguais e igualmente os iguais, e isso se dá através de prestações positivas por parte do Estado.

A positivação dos direitos sociais, consoante suso exposto, teve início com a Constituição mexicana de 1917. No entanto, foi a Constituição Alemã de Weimar, de 1919, que influenciou a maior parte das Constituições posteriores. E tal fato não foi diferente no Brasil, que, em 1934, pela primeira vez, teve um título sobre a ordem econômica e social. (SILVA, 2007, p.285)

Importante ressaltar que, como já dito anteriormente, em um primeiro momento, os direitos sociais eram considerados normas de caráter programático, visto que expunham apenas diretrizes para uma atuação futura dos Poderes Legislativo e Executivo, através do poder legiferante. Ou seja, até que houvesse uma atuação por parte do Estado, os direitos sociais não possuíam aplicabilidade, até porque não haviam mecanismos no sistema constitucional que os possibilitasse.

Com a CRFB/88, os direitos e garantias fundamentais, inclusive, os direitos sociais, passaram a ter aplicabilidade imediata, conforme se verifica no art. 5º, §1º, da referida Constituição. Este texto constitucional brasileiro, ainda, trouxe outra novidade quanto aos direitos sociais: um capítulo próprio, pois, até então, as Constituições anteriores sempre colocavam os direitos sociais dentro do capítulo da ordem social, o qual era misturado com a ordem econômica. (SILVA, 2007, p.285)

Contudo, os direitos sociais mencionados no art. 6º da CRFB/88, quais sejam: a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, estão separados no texto constitucional, tendo em vista que suas descrições constam do título denominado “Da Ordem Social”. Quanto a este aspecto, Silva (2007, p.285) entende que

o constituinte não atendeu aos melhores critérios metodológicos, mas dá ao jurista a possibilidade de extrair, daqui e de lá, aquilo que constitua o conteúdo dos direitos relativos a cada um daqueles objetos sociais, deles tratando aqui, deixando para tratar, na ordem social, de seus mecanismos e aspectos organizacionais.

Severo e Rosa Júnior (2007, p.82) classificam os direitos sociais em três classes: 1) direitos genéricos ou potenciais, os quais estão elencados no art. 6º da CRFB/88; 2) direitos específicos ou concretizados, que são os previstos no art. 7º, constituindo os direitos dos trabalhadores, e os previstos no art. 201, que são os direitos relativos à Previdência Social; 3) direitos sociais de participação, que são os descritos nos arts. 10 e 11 da CRFB/88.

Quanto à titularidade dos direitos sociais, tanto os direitos descritos no art. 7º, como os descritos no art. 10 e 11 da CRFB/88, refere-se apenas aos trabalhadores, urbanos ou rurais. (TAVARES, 2008, p.481)

Já o art. 6º da CRFB/88 não apresenta restrição quanto aos titulares dos direitos, exceto àqueles que têm a titularidade indicada, como o direito à infância e à proteção da maternidade, sendo que, conforme Tavares (2008, p.481), “a conclusão seria a do alcance geral desses direitos, justamente em âmbito no qual, a priori¸ admitir-se-iam certas restrições quanto a sua titularidade”.

Em suma, os direitos sociais requerem uma intervenção por parte do Estado, a fim de assegurar a igualdade material e possibilitar o gozo dos direitos de liberdade. Esses direitos, segundo a CRFB/88, gozam de aplicabilidade imediata, portanto, não constam no texto constitucional apenas como diretrizes, mas sim, devem se apresentar efetivamente, tendo como titulares tanto os trabalhadores (art. 7º, 11 e 10 da CRFB;88) como a coletividade (art. 6º), que é o caso do direito à saúde, que será analisado no próximo item.

1.3. O DIREITO À SAÚDE

Este item tem por objetivo expor as raízes históricas do direito à saúde, tanto no nível internacional quanto no em nível nacional, e ressaltar as características deste direito social fundamental na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

O direito à saúde, no âmbito internacional, teve previsão expressa pela primeira vez na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em seu art. 25, o qual dispõe: “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar [...]” (ONU, 1948). (SARLET, 2007)

Em 1966, o direito à saúde foi novamente abordado no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o qual foi ratificado pelo Brasil através do Decreto nº 591 de 06 de julho de 1992 e que dispõe: “Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental”. Posteriormente, outros documentos internacionais abordaram também o direito à saúde, tais como a Convenção dos Direitos da Criança e a Convenção Americana dos Direitos Humanos (SARLET, 2007).

No âmbito nacional, a proteção à saúde pública inicia-se com a vinda da Corte Portuguesa, no século XIX, se restringindo às ações como combate à lepra e à peste e certo controle sanitário. No entanto, ações de saúde mais efetivas se deram, somente, entre 1870 e 1930, com a adoção do modelo “campanhista”, obtendo sucesso no controle de doenças endêmicas. Contudo, nesse período, não haviam ações públicas curativas. (BARROSO, 2007)

A partir da década de 30, com a estruturação básica do sistema público de saúde, passa-se a realizar as ações de caráter curativo. No entanto, “a saúde pública não era universalizada em sua dimensão curativa, restringindo-se a beneficiar os trabalhadores que contribuem para os institutos de previdência”. (BARROSO, 2007)

Com o regime militar foi criado o INPS – Instituto Nacional de Previdência Social, mas somente os trabalhadores urbanos com carteira assinada eram contribuintes do sistema e tinham direito a atendimento na rede pública à saúde. (BARROSO, 2007)

Em 1988, foi promulgada a atual Constituição Federal, que se alicerça sob o manto do Estado Democrático de Direito, tendo sido produzida visando satisfazer diversos setores sociais, se voltando, mormente, para a realização da ampla cidadania, de modo que ficou conhecida como a “Constituição Cidadã”. (SILVA, 2007, p.90) 

Dentre os direitos relacionados à realização da ampla cidadania, foi estabelecida a universalização dos serviços públicos de saúde, não estando mais o acesso à prestação do serviço de saúde restrito aos trabalhadores com carteira assinada e contribuintes do sistema. (BARROSO, 2007)

Assim, a saúde foi consagrada pela primeira vez em uma Constituição Brasileira, através do art. 6º e artigos 196 a 200, como direito fundamental da pessoa humana. Sobre este assunto, afirma Sarlet (2007) que

a nossa Constituição vigente, afinada com a evolução constitucional contemporânea e o direito internacional, não só agasalhou a saúde como bem jurídico digno de tutela constitucional, mas foi mais além, consagrando a saúde como direito fundamental, outorgando-lhe, de tal sorte, uma proteção jurídica diferenciada no âmbito da ordem jurídico-constitucional pátria.

O direito à saúde é considerado um direito social e como tal está elencado dentre os direitos fundamentais de segunda geração.  Portanto, são aqueles direitos que exigem uma atuação positiva por parte do Estado, tornando concretos os direitos de primeira geração que antes pairavam somente no campo formal.

Conforme leciona Sarlet (2007), o direito à saúde pode ser tanto direito de defesa (negativos) como direito a prestações (positivos), pois dependendo da função no caso concreto, pode ser conduzido a ambas as categorias. Neste sentido, o autor explica que

o direito à saúde pode ser considerado como constituindo simultaneamente direito de defesa, no sentido de impedir ingerências indevidas por parte do Estado a terceiros na saúde do titular, bem como – e esta a dimensão mais problemática – impondo ao Estado a realização de políticas públicas que busquem a efetivação deste direito para a população, tornando, para além disso, o particular credor de prestações materiais que dizem com a saúde, tais como atendimento médico e hospitalar, fornecimento de medicamentos, realização de exames da mais variada natureza, enfim, toda e qualquer prestação indispensável para a realização concreta deste direito à saúde.

Importante ressaltar que a saúde como direito fundamental social, está intimamente ligada ao direito à vida e ao princípio da dignidade da pessoa humana. (RIGO, 2007, p.175) O art. 1º da CRFB/88 traz a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito e o art. 5º assegura “a inviolabilidade do direito à vida, que tem, ainda, sua proteção reforçada por se tornar cláusula pétrea, consoante o disposto no art. 60, §4º, IV”. (FREITAS LIMA, 2006)

Além disso, conforme se observa no art. 196 da CRFB/88, a saúde é tanto um direito como um dever. A saúde é um direito fundamental, previsto genericamente no art. 6º da CRFB/88, que, juntamente com os artigos 196 a 200, e os pactos internacionais ratificados pelo Brasil, formam o rol de direitos ligados à saúde, a qual é direito de todas as pessoas, sem distinções. A saúde, também, é um dever, um dever do Estado em efetivar este direito, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Convém, ainda, destacar que, conforme art. 5º, §1º, da CRFB/88, as normas dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Ou seja, tais direitos não podem ser considerados meras normas programáticas sem força normativa, mas sim, deve-se entender que a aplicabilidade imediata impõe a maximização da eficácia e efetividade desses direitos. (SARLET, 2007) Portanto, sendo a saúde um direito fundamental, esta deve ter aplicabilidade imediata.

Sobre esse assunto, Sarlet (2007) afirma que a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais

traduz uma decisão inequívoca do nosso Constituinte no sentido de outorgar às normas de direitos fundamentais uma normatividade reforçada e, de modo especial, revela que as normas de direitos e garantias fundamentais não mais se encontram na dependência de uma concretização pelo legislador infraconstitucional, para que possam vir a gerar a plenitude de seus efeitos [...].

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Com isso, verifica-se que a saúde é um direito fundamental social, que está intimamente ligado ao direito à vida e ao princípio da dignidade da pessoa humana. Além disso, a saúde é direito de todos e dever do Estado, possuindo aplicabilidade imediata, ou seja, possuindo força normativa.

Convém aqui ressaltar um ponto importante para entender as disposições constitucionais do direito à saúde: a competência. A competência para legislar sobre proteção e defesa da saúde é concorrente da União, Estados e Municípios (art. 24, XII, da CRFB/88). Isso significa dizer que cabe à União estabelecer normas gerais, aos Estados editar normas suplementares, e aos Municípios legislar sobre assuntos locais. Além disso, é competência comum, quanto ao aspecto administrativo, cuidar da saúde e assistência pública (art. 23, II, da CRFB/88). (BARROSO, 2007, p.14-15)

Segundo Barroso, apesar da competência comum, tal fato não significa que União, Estados e Municípios detêm competência irrestrita. Isso, nas suas palavras, “acarretaria a ineficiência na prestação dos serviços da saúde, com a mobilização de recursos federais, estaduais e municipais para realizar as mesmas tarefas”. (BARROSO, 2007, p.15) Para estabelecer o modelo e a estrutura do SUS, a fim de evitar esses problemas, em 1990 foi aprovada a Lei 8080/90.

Neste ínterim,

A Lei nº 8.080/90 procurou ainda definir o que cabe a cada um dos entes federativos na matéria. À direção nacional do SUS, atribuiu a competência de “prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o aperfeiçoamento da sua atuação institucional” (art. 16, XIII), devendo “promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal” (art. 16, XV). À direção estadual do SUS, a Lei nº 8.080/90, em seu art. 17, atribuiu as competências de promover a descentralização para os Municípios dos serviços e das ações de saúde, de lhes prestar apoio técnico e financeiro, e de executar supletivamente ações e serviços de saúde. Por fim, à direção municipal do SUS, incumbiu de planejar, organizar, controlar, gerir e executar os serviços públicos de saúde (art. 18, I e III). (BARROSO, 2007, p.16)

Por todo o exposto, percebe-se que o direito fundamental social da saúde, o qual possui aplicabilidade imediata, requer a prestação positiva por parte da União, Estados e Municípios, cada um exercendo sua competência, conforme a legislação, para o fim de proporcionar a maior eficácia possível da norma constitucional.

 

2.    POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS NO QUE SE REFERE ÀS AÇÕES QUE PLEITEIAM O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS

 

O direito à saúde, como um direito social prestacional, apresenta algumas questões de grande discussão pública, estando, dentre elas, as relacionadas ao fornecimento de medicamentos por parte do Estado.

No que se refere a este tipo de ação judicial, há uma série de posições doutrinárias e jurisprudenciais, contrárias e a favor ao fornecimento de medicamentos, que se debatem com temas delicados, tais como a interferência do Poder Judiciário em matéria de saúde, ponderação entre princípios constitucionais e o princípio da “reserva do possível”, os quais serão tratados neste capítulo.

 

2.1. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

As normas jurídicas internas de um país, para serem consideradas válidas, devem estar conformes com a Constituição quanto ao conteúdo e ao procedimento. Contudo, quando isto não ocorre, necessário que haja um órgão de controle, para que retire essa norma do mundo jurídico.

Kelsen (2003, p.240) entendia que tal tarefa deveria ser atribuída a um Tribunal Constitucional, o qual realizaria a jurisdição constitucional. Isto, pois, não seria razoável outorgar tal tarefa aos órgãos que devem ter seus atos controlados ou ao órgão que produziu suas normas, visto que assim não se conseguiria estabelecer limites ao poder, impedindo uma eficaz garantia à Constituição.

A esse Tribunal Constitucional caberia exercer um papel de legislador negativo, de modo que ao deixar de aplicar a lei considerada inconstitucional a um caso concreto, era como se criasse uma lei ab-rogatória, retirando a norma do mundo jurídico. (KELSEN, 2003, p. 263-264, 305)

Entretanto, a fim de que os juízes não se valessem de suas opiniões políticas, afetando a autonomia do Poder Legislativo, Kelsen entendia que era necessário o máximo de exatidão de conteúdo da norma constitucional sem termos genéricos e indeterminados, para não haver margem de discricionariedade. Desse modo, ficaria reservada ao Tribunal Constitucional apenas a tarefa de descobrir e aplicar o sentido correto da Constituição. (CRUZ, 2004, p.119)

Contudo, a teoria de Kelsen era baseada num Estado Liberal, cujas Constituições possuíam normas de caráter negativo, ou seja, que exigiam uma abstenção por parte do Estado. Com a passagem do Estado Liberal para o Estado Social, as Constituições passaram a abranger normas que exigiam uma atuação positiva por parte do Estado, que, na época, eram entendidas como de conteúdo programático, e que possuíam, muitas vezes, termos abstratos.

Essa série de intervenções estatais na sociedade que a Constituição exigia para a garantia dos direitos de segunda geração, os quais já foram abordados no capítulo anterior, passou a provocar um inchaço na máquina estatal, de modo que o Estado não conseguia manter todos esses direitos. (MEYER, 2008, p.30)

Dessa forma, passou a ser insuficiente a atuação do Tribunal Constitucional apenas como legislador negativo, proferindo decisões ab-rogatórias de direito. Até porque dessa forma não era mais possível conferir plena eficácia aos textos constitucionais, os quais traziam em seu corpo inúmeras normas programáticas, que, por vezes, necessitavam que fossem supridas as inércias do Poder Executivo e Legislativo.

Por isso, para minimizar a falta de atuação dos demais órgãos estatais, foi atribuída “ao Judiciário a função de controlar as omissões inconstitucionais perpetradas pelos poderes constituídos” (VIEIRA, 2002, p.37). Assim, o Poder Judiciário se tornou “o poder da vez”  (MEYER, 2008, p.30), passando a “devolver” os direitos que os demais poderes tentavam retirar, tornando efetivos os direitos fundamentais quando da omissão estatal, através da criação do direito, passando a exercer, assim, uma atividade legiferante positiva (VIEIRA, 2002, p.37).

Sobre essa nova atuação por parte do Poder Judiciário, Maulaz (2010) afirma que

Do Poder Judiciário exige-se uma aplicação construtiva do direito material vigente de modo a alcançar seus fins últimos na perspectiva do ordenamento jurídico positivo. No paradigma do Estado social, cabe ao juiz, no exercício da função jurisdicional, “uma tarefa densificadora e concretizadora do direito, a fim de se garantir, sob o princípio da igualdade materializada, a Justiça no caso concreto”.

Com a ampliação da jurisdição constitucional e o consequente aumento da demanda judicial, vem ocorrendo a judicialização das relações políticas e sociais. (BARROSO, 2005)

Neste contexto, frise-se que o termo “judicialização” pode ser utilizado tanto para identificar o ingresso em juízo de causas políticas, vez que é de preferência do autor utilizar-se dessa via; como “no sentido constitucional, a judicialização refere-se ao novo estatuto dos direitos fundamentais e à superação do modelo da separação dos poderes do Estado, que levaria à ampliação dos poderes de intervenção dos tribunais na política”. (MACIEL, KOERNER, 2002, P.114-115)

Barroso (2009) enumera as três principais causas da judicialização no Brasil: a) redemocratização do país, que se materializou através da Constituição de 1988, a qual criou inúmeros direitos fundamentais, e que reavivou a cidadania, gerando uma maior busca por parte das pessoas em proteger seus direitos, aumentando a demanda judicial; b) a constitucionalização abrangente, pois várias matérias tornaram-se constitucionais, como o direito à saúde, por exemplo, aumentando a busca pela efetividade destes direitos que antes ficavam apenas na esfera da legislação ordinária; c) o sistema brasileiro de constitucionalidade, que tem aspectos tanto do sistema difuso como do concentrado, de modo que do juiz ao STF, todos interpretam a Constituição, além do fato de que “quase qualquer questão política ou moralmente relevante pode ser alçada ao STF”.

Ainda, segundo Barroso (2009), as principais objeções à judicialização no Brasil se referem: (1) aos riscos à legitimidade democrática, pois poderia trazer risco à democracia, o fato de os juízes, agentes públicos não eleitos, desempenharem um poder político e de invalidar atos dos outros Poderes. Contudo, o autor afasta esta objeção sob o fundamento normativo de que é a Constituição que atribui esse poder ao Judiciário, sendo que este poder que torna concretas as decisões tomadas pelo constituinte, atribuindo sentido às expressões vagas, tornando-se, assim, co-participantes do processo de criação do Direito. Além disso, o fundamento filosófico utilizado pelo autor se baseia no papel que a Constituição atribuiu ao Judiciário de proteger os direitos fundamentais, mesmo que isso seja contra a vontade da maioria. Nas palavras de Barroso, “a jurisdição constitucional bem exercida é antes uma garantia para a democracia do que um risco”, mas suas decisões só são legítimas se baseadas na Constituição e fundamentadas racionalmente. (2) à politização da Justiça, que segundo Barroso “uma decisão judicial jamais será política no sentido de livre escolha, de discricionariedade plena”, salientando que, mesmo havendo mais de uma solução, o juiz deve buscar a decisão mais justa e correta, utilizando-se da argumentação racional, de modo que, assim, não apresentará riscos. (3) e à capacidade institucional do Judiciário, o qual tem a palavra final na interpretação das normas constitucionais, mas nem sempre dispõe de informações e conhecimento necessário para avaliar o impacto de suas decisões. Quanto a tal fato, Barroso afirma que “o Judiciário quase sempre pode, mas nem sempre deve interferir”, devendo fazer uma avaliação criteriosa de sua atuação e, por vezes, deixar aos demais poderes a tarefa de decidir.

Assim, verifica-se que o Poder Judiciário não pode abster-se de decidir por não haver norma, nem mesmo deixar de aplicar uma norma, por ser de conteúdo abstrato, mas, sim, deve atuar, suprindo as omissões legislativas.

Desse modo, mesmo sendo o direito à saúde um direito de segunda geração, antes entendido como mera norma programática, deve o Tribunal Constitucional como guardião à Constituição defendê-lo e dotá-lo de máxima eficácia.

Até porque a própria CRFB/88 consagra o princípio da inafastabilidade do Judiciário, em seu art. 5º, XXXV, pelo qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Desse modo, toda lesão ou ameaça ao direito de saúde pode vir a ser pleiteada e deve ser apreciada pelo Poder Judiciário.

Ademais, a CRFB/88 consagrou em seu art. 5º, §1º, a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, sem qualquer distinção entre direitos de primeira ou de segunda geração, de modo que o direito à saúde deve ser imediatamente aplicado. Assim, diante da omissão estatal, seja pela falta de lei ou não sendo esta devidamente cumprida, cumpre ao Poder Judiciário intervir, suprindo essa omissão por parte do Estado. (BARROSO, 2007, p.21) Com isso, percebe-se o papel ativo e decisivo do Judiciário na concretização da Constituição. (BARROSO, 2007, p.6)

Pelo exposto anteriormente, constata-se a judicialização do direito à saúde, tendo em vista que as matérias referentes a tal tema tornaram-se constitucionais com a CRFB/88; que há constante procura por parte das pessoas em proteger o seu direito à saúde, principalmente quanto ao fornecimento de medicamentos; e que mesmo sendo uma questão política por influenciar na alocação dos recursos públicos, não pode o Judiciário abster-se de decidir, e sim, deve buscar dar maior efetividade a este direito fundamental.

No entanto, apesar do exposto, existem autores que defendem que o Poder Judiciário não deve intervir nos assuntos de políticas públicas referente à saúde.

Neste sentido, Severo e Júnior (2007, p.87) afirmam que, por ser um direito social genérico, o direito à saúde depende de alocação política dos recursos estatais, não cabendo ao Judiciário definir como devem ser os gastos orçamentários, mas somente verificar se atendem às exigências da lei.

Expondo sobre essa corrente, Sarlet afirma que o principal argumento, pelo fato de as políticas públicas tratarem com recursos públicos, é porque

apenas o legislador democraticamente legitimado quem possui competência para decidir sobre a afetação desses recursos, falando-se, neste contexto, de um princípio da reserva parlamentar em matéria orçamentária, diretamente deduzido do princípio democrático e vinculado, por igual, ao princípio da separação dos poderes.

Contrária a esses pensamentos, Rigo (2007, p.173-185) afirma que essa intervenção é legítima, contribuindo para que a atuação do Estado seja harmônica, através de seus três poderes. Alega, ainda, que se os demais poderes suprissem as necessidades dos cidadãos, a intervenção do Judiciário não seria necessária.

Também, Machado (2007) leciona que

A intervenção do Poder Judiciário na atividade administrativa (=executiva) do Poder Executivo e Legislativo não é indevida, pois não se vislumbra ofensa ao artigo 2º da Constituição, nem a ocorrência da substituição do Estado-Administração pelo Poder Judiciário, pois “ao afirmar que os Poderes da União são independentes e harmônicos, o texto constitucional consagrou, respectivamente, as teorias da separação dos poderes e dos freios e contrapesos”.

Com isso, o Poder Judiciário contrabalanceia com sua atuação jurisdicional, agindo quando há abusos pela falta de atuação por parte dos demais poderes. Ademais, os “atos tendentes a fragilizá-los ou vulnerá-los violam o sistema e extrapolam a discricionariedade”. Em assim sendo, concretizar esses direitos por meio do Judiciário, é uma medida que visa apenas ajustar o desvio de conduta da Administração. (MACHADO, 2007)

Cumpre observar que assim como a “judicialização”, por si só, provoca objeções, a “judicialização à saúde” apresenta, além das já elencadas, outras mais, tais como: a) o art. 196 da CRFB/88 afirma que a o direito à saúde será “garantido mediante políticas sociais e econômicas” e não através de decisões judiciais; b) a afirmação de que o Poder Executivo, por possuir visão global dos recursos disponíveis, seria o melhor para tomar decisões quanto ao orçamento; c)  a retirada do poder de decidir o modo como os recursos públicos são gastos pelos legitimados pelo povo; d) o fato de o orçamento ser escasso e, portanto, devendo ser aplicado o princípio da reserva do possível, cujo tema será analisado mais profundamente nos próximos itens; e) as decisões judiciais provocam a desorganização da Administração Pública, retirando o orçamento de uma área para conseguir cumprir a decisão judicial; f) o benefício da população quando de uma decisão individual que determina o fornecimento de um medicamento é muito menor do que se o valor deste medicamento fosse aplicado em outras políticas de saúde pública como saneamento básico; g) quem, principalmente, se beneficia com essas decisões judiciais são aqueles que possuem acesso qualificado à Justiça, que conhecem seus direitos e podem arcar com os custos do processo judicial; h) o fato de o Poder Judiciário não dominar o conhecimento específico para verificar se tal medicamento é efetivamente necessário à vida. (BARROSO, 2007, p.22-27)

Apesar das várias objeções levantadas, cabe aqui destacar os dizeres de Barroso (2007, p.4):

O Judiciário não pode ser menos do que deve ser, deixando de tutelar direitos fundamentais que podem ser promovidos com a sua atuação. De outra parte, não deve querer mais do que pode ser, presumindo demais de si mesmo e, a pretexto de promover os direitos fundamentais de uns, causar grave lesão a direitos da mesma natureza de outros tantos.

Por fim, percebe-se que devido aos rearranjos institucionais do Tribunal Constitucional e do Poder Judiciário ao longo da história, têm ocorrido a judicialização do direito à saúde. E essa intervenção do Judiciário procura apenas tornar concreto o direito à prestação universalizada do serviço de saúde, buscando dar maior eficácia ao texto constitucional e, assim, exercer a função de garante da Constituição. Tal fato pode ser observado na decisão objeto deste trabalho, tomada pelo STF, a qual buscou definir parâmetros de medidas a serem adotadas para as ações de medicamentos.

 

2.2. Colisão entre regras e princípios: a técnica da ponderação

A Constituição, nas palavras de Canotilho  (2003, p.1159-1160), constitui-se como um “sistema aberto de regras e princípios”. Isto quer dizer que a Constituição não se baseia apenas em regras, mas também em princípios, sendo que ambos constituem-se como espécies de normas.

Canotilho (2003, p.1160-1161) sugere alguns critérios de diferenciação entre regras e princípios, quais sejam:

a) Grau de abstração: os princípios são normas com um grau de abstracção relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstracção relativamente reduzida.

b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador, do juiz), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação directa.

c) Carácter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza estruturante ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex.: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex.: princípio do Estado de Direito).

d) “Proximidade” da idéia de direito:os princípios são “Standards” juridicamente vinculantes radicados nas exigências de “justiça” (Dworkin) ou na “idéia de direito” (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional.

f) natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.

Pelas características apresentadas sabe-se que um modelo exclusivamente de regras, limitaria a racionalidade prática, exigindo uma disciplina legislativa exaustiva e completa e, embora se pudesse ter um sistema de segurança, não haveria como complementar e desenvolver o sistema. Por outro lado, se o modelo fosse exclusivamente de princípios, faltaria segurança jurídica por sua condição indeterminada e imprecisa. (CANOTILHO, 2004, p.1160-1161)

Por isso, necessário que a Constituição seja formada por regras e princípios, visto que ambos se complementam. As regras, conforme explica Barroso (2010, p.210), têm como principal valor a segurança jurídica, expressando decisões políticas do legislador que se materializam em uma determinação objetiva de conduta. Os princípios, por sua vez, “funcionam como referencial geral para o intérprete, como um farol que ilumina os caminhos a serem percorridos”, são eles que “dão identidade ideológica e ética ao sistema jurídico” e, por seu conteúdo aberto, proporcionam uma atividade integrativa e construtiva do intérprete.

Desse modo, como parte das cláusulas constitucionais têm um conteúdo aberto e principiológico, e os princípios, por sua vez, possuem alto teor de abstração, por sua abstratividade, as normas constitucionais revelam-se pelo caráter geral e indeterminado, através de palavras imprecisas e de conteúdo vago. Assim, para sua aplicação e compreensão, tais normas constitucionais conferem grande margem de atuação aos intérpretes quando de seu preenchimento decorrente da atividade de interpretação, mas essa atuação deve circunscrever-se ao âmbito normativo prescrito pelo texto constitucional. (TAVARES, 2008, p.82-83)

Quanto à textura aberta das normas constitucionais, isso permite que estas não envelheçam, tornando tais normas capazes de se adequarem às necessidades sociais contemporâneas. Contudo, é “absolutamente indispensável que o julgador exponha analítica e expressamente o raciocínio e a argumentação que o conduziram a uma determinada conclusão, permitindo assim que as partes possam controlá-la”. (BARROSO, BARCELLOS, 2003)

Um problema surge quanto ao modo de aplicação e solução de conflitos entre regras e princípios. Assim, no caso de incompatibilidade entre regras aplica-se o “tudo ou nada” (BARROSO, 2010, p.208), ou seja, ou a regra é válida ou é inválida, sendo que suas antinomias são resolvidas, geralmente, pelos critérios cronológico (lei posterior revoga a anterior), hierárquico (lei superior revoga a lei inferior) e da especialidade (lei especial revoga a lei geral). (MARMELSTEIN LIMA, 2002)

Já, quando há colisão entre princípios, não há como simplesmente deixar de aplicar um deles. Na opinião de Barroso (2010, p.209), não há como determinar em abstrato a prevalência de um princípio sobre o outro. Para o autor, somente no caso concreto, poderá dar-se maior importância a um princípio do que a outro, de acordo com o “peso” que assumem na situação específica.

Neste caso, quando da colisão entre princípios, deve o intérprete utilizar-se da técnica da ponderação, devendo-se analisar no caso concreto qual princípio deve prevalecer sobre o outro e proporcionando a maior intensidade possível aos princípios, visto que são “mandados de otimização”.(BARROSO, 2010, p.209)

Sobre o assunto, Marmelstein Lima (2002) afirma que

somente diante do caso concreto será possível resolver o problema da aparente colisão de princípios, através de um[a] ponderação (objetiva e subjetiva) de valores, pois, ao contrário do que ocorre com a antinomia de regras, não há, a priori, critérios formais (meta-normas) e Standards prestabelecidos para resolvê-lo.

Assim, percebe-se que se afigura ainda maior o dever de motivar, quando de uma decisão envolvendo a técnica da ponderação, visto que

o julgador percorre um caminho muito mais longo e acidentado para chegar à conclusão. É seu dever constitucional guiar as partes por essa viagem, demonstrando, em cada ponto, porque decidiu por uma direção ou sentido e não por outro. (BARROSO, BARCELLOS, 2003) 

Esta necessidade de expor as razões jurídicas surge como uma forma de compensação do poder conferido pela interpretação ao intérprete, a fim de conferir legitimidade à decisão proferida.

Além disso, importante ressaltar que estão previstos na Constituição diversos direitos fundamentais, os quais retratam os interesses de diversas classes da sociedade, tanto que a CRFB/88 ficou conhecida como a “Constituição cidadã”. E, por abranger diversas normas a fim de contentar as várias classes sociais, bem como, pelo conteúdo amplamente abstrato dos direitos afirmados na Constituição, a colisão entre princípios é frequente e também ocorre no que se refere ao direito à saúde e ao acesso de medicamentos.

Neste sentido, pode-se citar a colisão entre o princípio da isonomia com os princípios do direito à vida e da dignidade da pessoa humana, quando, por exemplo, uma pessoa pede precedência na fila de transplantes, por correr risco de morte. (POITTEVIN, 2007, p.169) Se, por um lado, não se concede a precedência, pode-se estar ferindo o princípio do direito à vida; por outro, ao conceder a possibilidade dessa pessoa estar passando na frente de outras, que podem apresentar um risco de morte tão grave quanto, está-se ferindo o princípio da isonomia. E isso também pode ocorrer quanto aos medicamentos, quando uma pessoa solicita medicamento de alto custo não oferecido pelo Estado, sob o argumento de risco de morte, em detrimento do fornecimento de muitos outros medicamentos a outras pessoas, que também podem estar sob esse risco. Como, então, resolver estes casos?

Para buscar resolver esses impasses, deve-se utilizar a técnica da ponderação, anteriormente mencionada. Mas, sobretudo, deve-se analisar o caso concreto, de modo que, a partir de uma análise de qual princípio que tem mais peso no caso concreto, o outro cede a este princípio. (POITTEVIN, 2007, p.169) Por isso, ao escolher a preponderância de um princípio sobre o outro, deve-se demonstrar exaustivamente os motivos que o levaram a escolher tal caminho, pois ambos são aceitáveis.

Uma situação destas é dramática. Não se pode em nenhum momento dizer que seja uma situação fácil ao julgador aplicar a ponderação entre princípios, pois na prática estar-se-á lidando com a vida das pessoas.

 

2.3. O PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL

Os direitos sociais, como dito anteriormente, são direitos que dependem de uma prestação positiva por parte do ente estatal. E, para se concretizar essas prestações, são consumidos recursos estatais, os quais são finitos. Desse modo, surge um dos principais tópicos que tratam sobre a limitação ao direito da saúde: o princípio da “reserva do possível”.

O termo “reserva do possível” surgiu na Alemanha, a partir do início dos anos de 1970, sendo acolhido e desenvolvido na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, a partir do caso numerus clausus, o qual tratava sobre o direito de acesso ao ensino superior. (SARLET; FIGUEIREDO, 2007, p.188)

Segundo Sarlet e Figueiredo (2007, p.188), de acordo com a noção de reserva do possível, “a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos”.

Ao conceituar a “reserva do possível”, Rigo (2007, p.177) afirma que, em resumo, “a pessoa somente pode exigir do Estado uma prestação que seja razoável para o Estado cumprir”. Ou seja, a prestação dos direitos sociais pelo Estado está diretamente relacionada ao limite orçamentário estatal, o que não ocorre diferentemente com a saúde, cuja prestação está limitada faticamente devido à escassez de recursos.

Esse argumento, consoante afirmam Sarlet (2007, p.12) e Barroso (2007, p.24), tem sido um dos mais freqüentes daqueles contrários à judicialização brasileira excessiva no que se refere ao direito à saúde. Isso se deve ao fato “de que se cuida de direito que, por sua dimensão econômica, implica alocação de recursos materiais e humanos, encontrando-se, por esta razão, na dependência da efetiva disponibilidade destes recursos” (SARLET, 2007, p.12-13).

Convém aqui destacar que, consoante Sarlet e Figueiredo (2007, p.189), a reserva do possível apresenta uma dimensão tríplice, que abrange:

a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição de receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade.

A corrente que defende a aplicação da reserva do possível predominava em julgados mais antigos, principalmente, sob os argumentos de que “os recursos públicos seriam insuficientes para atender às necessidades sociais” e que “investir recursos em determinado setor sempre implica em deixar de investi-los em outros” (BARROSO, 2007, p.24). Barroso (2007, p.24) apresenta, como exemplo, a decisão da apelação cível 1994.001.01749, proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, através do qual se negou a concessão de medida cautelar a paciente portador de insuficiência renal, sob o argumento de o medicamento ser de alto custo, o que privilegiaria uma pessoa em detrimento de outros, bem como o fato de não dever o Poder Judiciário interferir em políticas públicas.

Seguindo essa corrente, Pereira e Coelho (2007, p.163) entendem que não havendo a razoabilidade da pretensão individual ou social ou, ainda, a disponibilidade financeira de efetivar a pretensão, deve o Poder Público invocar o princípio da reserva do possível, embora deva se valer, primeiro, “de todos os meios possíveis para adequar sua possibilidade as necessidades essenciais dos cidadãos”.

Ainda, Molinário e Milhoranza (2007, p.224) afirmam que a posição do Ministro Eros Grau, em seu texto “Despesa pública – Princípio da Legalidade – Decisão Judicial”, publicado em 1994 (que retrata a predominância dessa posição na época), era no sentido de que “a administração não deve cumprir as decisões do Poder Judiciário quando comprovada a ‘exaustão da capacidade orçamentária’”. Consoante os autores, os quais afirmam não concordar com tal posição, se colocaria o orçamento acima da vida humana.

Do exposto, o que se verifica, principalmente, é que a reserva do possível se constitui como um limite fático à atuação dos tribunais, na medida em que se apresenta por um lado a falta de recursos estatais que devem ser distribuídos para o atendimento dos direitos sociais da população e, por outro, a necessidade de, individualmente, se efetivar um direito social.

Sobre este aspecto, Sarlet (2007, p.13) toma a posição

no sentido de que sempre onde nos encontramos diante de prestações de cunho emergencial, cujo indeferimento acarretaria o comprometimento irreversível ou mesmo o sacrifício de outros bens essenciais, notadamente – em se cuidando da saúde – da própria vida, integridade física e dignidade da pessoa humana, haveremos de reconhecer o direito subjetivo do particular à prestação reclamada em Juízo.

No sentido de que a reserva do possível encontra limitação no princípio da dignidade da pessoa humana têm sido a posição adotada pelo STF, conforme se verifica na ADPF 45-DF. Descrevendo tal posição do STF, Cassol (2007, p.10) afirma que o Estado, deve disponibilizar o mínimo existencial, que está diretamente ligado à dignidade da pessoa humana. Ainda, retratando a sua posição adotada frente à matéria, Cassol afirma que a “reserva do possível” não pode ser invocada pelo Estado com o intuito de exonerar-se dolosamente do cumprimento das obrigações impostas pela Constituição.

Partindo de tais pensamentos, Gandini, Barione e Souza (2008) afirmam que “a limitação orçamentária não pode ser óbice a impedir a concretização do direito fundamental à saúde pelo Poder Judiciário” e Rigo (2007, p.178) assevera que “não há como entender razoável a alegação de falta de recursos econômicos por parte do Estado como justificativa para a não observância de direito humano, sem o balanceamento com o mínimo existencial”.

Opinam Sarlet e Figueiredo (2007, p.196) nos seguintes termos

As objeções atreladas à reserva do possível não poderão prevalecer nesta hipótese, exigíveis, portanto, providências que assegurem, no caso concreto, a prevalência da vida e da dignidade da pessoa, inclusive o cogente direcionamento ou redirecionamento de prioridade em matéria de alocação de recursos, pois é disso que no fundo se está a tratar. Até mesmo a tese de que a reserva do possível poderia servir de argumento eficiente a afastar a responsabilidade do Estado (por ação ou omissão, vale dizer!) não nos parece possa ser aceita, ainda mais de modo generalizado, na esfera das prestações que inequivocadamente dizem com o mínimo existencial.

Conforme se observa o argumento da “reserva do possível” não tem prevalecido, o que inclusive se poderá verificar através do julgado a ser analisado no próximo capítulo. Rigo (2007, p.178), ainda, entende que sempre que invocada a “reserva do possível” deve-se sopesar com a idéia do “mínimo existencial.

Sarlet e Figueiredo (2007, p.184) afirmam que o mínimo existencial compreende “como todo o conjunto de prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida condigna, no sentido de uma vida saudável”. Ainda, retrata o desdobramento do conteúdo e alcance do mínimo existencial em um

assim designado mínimo fisiológico, que constitui, por compreender as condições materiais mínimas para uma vida condigna, no sentido da proteção contra necessidades de caráter existencial básico, o conteúdo essencial da garantia do mínimo existencial, e um designado mínimo existencial sociocultural, que, para além da proteção básica já referida, objetiva assegurar ao indivíduo um mínimo de inserção – em termos de tendencial igualdade – na vida social. (SARLET; FIGUEIREDO 2007, p.181)

Ainda, asseveram os autores, que a garantia de um direito fundamental a esse mínimo existencial “opera como parâmetro mínimo dessa efetividade, impedindo tanto omissões quanto medidas de proteção e promoção insuficientes por parte dos atores estatais, assim como na esfera das relações entre particulares, quando for o caso”. (SARLET; FIGUEIREDO, 2007, p.201)

Esse mínimo existencial, contudo, está sujeito à demonstração através de provas sobre as necessidades de cada um em cada caso, “assim como em relação às alternativas efetivamente eficientes e indispensáveis de tratamento”. Tal fato resguarda o direito de ser tratado como igual, à medida que se efetiva o mínimo existencial conforme as circunstâncias de cada indivíduo. (SARLET, 2007, p.202-203)

A solução entre a colisão dos princípios do mínimo existencial e da reserva do possível deve se dar através da ponderação no caso concreto, aplicando-se o princípio da proporcionalidade. (GANDINI; BARIONE; SOUZA, 2008) Até porque, numa demanda judicial sempre existirá dois interesses em conflito, como o direito orçamentário do Estado contra o direito à saúde do indivíduo, ou mesmo o direito ao medicamento de um cidadão contra o direito à igualdade de todos.

Nas palavras de Gandini, Barione e Souza (2008), “não há dúvida de que a ponderação de interesses, feita nas particularidades de cada caso concreto, é a melhor forma de se aferir o grau de imprescindibilidade da concessão da tutela pelo Poder Judiciário”. Ainda, prossegue o autor, opinando no sentido de que “nos casos em que ficar constatada a urgência da medida jurisdicional, o argumento da reserva do possível deverá ceder para que a saúde e a integridade do paciente sejam preservados”.

Em suma, sabe-se que os orçamentos do Estado são finitos, mas que não se deve aplicar irrestritivamente o princípio da reserva do possível. Isto, pois, deve ser assegurado pelo Estado o “mínimo existencial” necessário para cada pessoa, fato este que deve ser analisado no caso concreto. E é nesse caso concreto que deve haver a ponderação entre os princípios, não excluindo um para aplicar o outro, mas buscando aplicá-los cada um em sua medida, de modo a proporcionar ao caso concreto uma solução mais justa e que assegure a dignidade da pessoa humana acima de tudo.

 

3. UMA ANÁLISE DOS ARGUMENTOS ADOTADOS NA DECISÃO DO AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA Nº 175

 

Neste capítulo, tem-se como finalidade esmiuçar a decisão objeto deste trabalho. Para tanto, será feita uma apresentação rápida sobre o caso, expondo os fatos, os argumentos e os meios jurídicos utilizados até chegar à STA nº 175 AgR/CE, que assumiu grande relevância perante o mundo jurídico, na medida em que passou a servir como paradigma para os demais tribunais, e definiu parâmetros no que se refere às ações de medicamentos. Por fim, serão expostos alguns argumentos utilizados pelos ministros em sua motivação, trazendo à baila como doutrina e jurisprudência vêm tratando o assunto.

 

3.1.UMA EXPOSIÇÃO SINTÉTICA DO CASO exposto no agravo regimental na suspensão de tutela antecipada nº 175

O Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública, com pedido de tutela antecipada, contra a União, o Estado do Ceará e o Município de Fortaleza, para o fornecimento do medicamento ZAVESCA (miglustat) para Clarice Abreu de Castro Neves. Tal medicamento era necessário para aumentar a sobrevida, melhora na qualidade de vida da paciente, bem como, para controlar a doença Niemann-Pick Tipo C, a qual causa uma série de distúrbios neuropsiquiátricos, tais como “movimentos involuntários, ataxia da marcha e dos membros, disartria e limitações de progresso escolar e paralisias progressivas” (BRASIL, TRF 5ª Região, 2007).

O fato é que os pais de Clarice não possuíam condições financeiras para custear o medicamento, o qual possuía custo estimado mensal de R$52.000,00, além de tal medicamento ainda estar, na época, pendente de registro da ANVISA.

Assim, o Ministério Público ajuizou ação civil pública, que foi extinta sem julgamento de mérito, por entender o juiz de 1º grau que o Ministério Público Federal não possuía legitimidade ativa, “com base na maioridade da pessoa doente e no fato de que o MPF não poderia substituir a Defensoria Pública”. (BRASIL, TRF 5ª Região, 2007).

Tal fato resultou na Apelação Cível nº 2006.81.00.003148-1 proposta pelo Ministério Público Federal perante o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, alegando que a “ele cabe a defesa de direitos individuais indisponíveis, como a saúde” (BRASIL, TRF 5ª Região, 2007).

A 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região entendeu ser o Ministério Público parte legítima para o ajuizamento da ação na defesa de direitos individuais indisponíveis, sendo a saúde considerada como um desses direitos e merecedora de amparo através da ação civil pública. Quanto ao argumento contrário à legitimidade do Ministério Público em relação à maioridade da pessoa doente, o posicionamento do Tribunal foi no sentido de que “ainda que a pessoa a ser beneficiada com a medida de proteção de direito individual indisponível, seja maior de idade, [...] sua carência de recursos, que coloca em risco sua saúde e sua vida, confere legitimidade ao Ministério Público” (BRASIL, TRF 5ª Região, 2007). Além disso, com base no entendimento de que cumpridos os requisitos para o deferimento da tutela antecipada, esta restou deferida, nos termos em que postulada.

Deste acórdão foi formulado pela União o pedido de suspensão de tutela antecipada nº 175, que restou indeferido pela Presidência do STF, “em consonância com prévio parecer da Procuradoria-Geral da República [...] por não se constatar, no caso, grave lesão à ordem, à economia e à saúde públicas” (BRASIL, STF, 2010).

Ainda, desta decisão foi interposto o Agravo Regimental pela União, o STA nº 175 AgR/CE, através do qual o ente estatal alegou

que a decisão objeto do pedido de suspensão viola o princípio da separação dos poderes e as normas e regulamentos do SUS, bem como desconsidera a função exclusiva da Administração em definir políticas públicas, caracterizando-se, nestes casos, indevida interferência do Poder Judiciário nas diretrizes de políticas públicas.

A União, também, argumentou que

causa grave lesão às finanças e à saúde públicas a determinação de desembolso de considerável quantia para a aquisição do medicamento de alto custo pela União, pois isto implicará deslocamento de esforços e recursos estatais, descontinuidade da prestação dos serviços de saúde ao restante da população e possibilidade de efeito multiplicador.

Esses foram os principais pontos levantados pela União no Agravo Regimental, e que são os mais relevantes para o presente trabalho. A análise dos argumentos adotados pelo STF, que definiram certos parâmetros para as ações de medicamento, será realizada a seguir.

 

3.2. Os parâmetros definidos pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento

O acórdão proferido no Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada nº 175-CE, segundo Souza (2012), é considerado uma decisão paradigmática, por três razões que enumera, quais sejam:

Primeiro, pelo motivo de ser a primeira decisão do órgão Pleno do Supremo Tribunal Federal após a Audiência Pública da Saúde, a qual ouviu 50 especialistas no assunto, nos dias nos dias 27, 28 e 29 de abril, e 4, 6 e 7 de maio de 2009. Segundo, com base na aplicação do Art. 127 do Regimento Interno no Supremo Tribunal Federal, o qual permite o julgamento conjunto de processos que versarem sobre a mesma questão jurídica, sendo, então, a mesma decisão tomada em vários casos, todos julgados no dia 17 de março de 2010. E, por último, pelo fato de que o voto do relator na decisão unânime do Agravo em questão analisou com profundidade o tema da judicialização da saúde brasileira, estabelecendo critérios ou parâmetros que podem ser seguidos pelos tribunais inferiores (e até mesmo pelo próprio Supremo Tribunal Federal), tornando-se, assim, uma decisão que deve ser levada em conta quando se tem um caso concreto que verse sobre a efetivação das políticas públicas da saúde.

Por também entender que esta decisão serve como paradigma para as decisões dos tribunais e tendo em vista os parâmetros fixados na decisão, passa-se, neste momento, a analisá-los.

O Ministro Gilmar Mendes, relator do caso em comento, afirma que alguns pontos foram analisados e concluídos com a Audiência Pública realizada para ouvir os especialistas em matéria de Saúde Pública. (BRASIL, STF, 2010)

Um dos fatos que se chegou à conclusão, foi de que o problema no Brasil não se refere à interferência do Poder Judiciário na criação e implementação de políticas públicas, mas sim, apenas à determinação judicial para o cumprimento efetivo das já existentes. Por isso, o primeiro parâmetro, definido pelo Ministro, o qual deve ser analisado pelo julgador, “é a existência, ou não, de política estatal que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte”. (BRASIL, STF, 2010)

Torronteguy (2010, p. 232) ao analisar tal caso, comenta que havendo política estatal específica, “o Judiciário deve fazê-la cumprir e, neste caso, não há que se falar em interferência judicial na esfera administrativa, pois o julgador não estará criando política, apenas ordenando o seu devido cumprimento”.

Caso não esteja entre as políticas públicas do SUS a prestação da saúde pleiteada, nas palavras de Gilmar Mendes, “é imprescindível distinguir se a não prestação decorre de (1) omissão legislativa ou administrativa, (2) de uma decisão administrativa de não fornecê-la ou (3) de uma vedação legal a sua dispensação”. (BRASIL, STF, 2010)

Preambularmente, com base no item 3 (vedação legal a sua dispensação), deve-se verificar se o medicamento analisado possui ou não registro na ANVISA, “condição esta necessária para atestar a segurança e o benefício do produto”. Isto, pois, “é vedado à Administração Pública fornecer fármaco que não possui registro na ANVISA”, conforme art. 12 da Lei 6360/76. Tal vedação pode ser excepcionada pela própria legislação, como a prevista no art. 8º da Lei nº 9782/99. (BRASIL, STF, 2010)

Em seguida, analisando o item 2 (decisão administrativa de não fornecê-la), o ministro afirma que deve ser considerada “a existência da motivação para o não fornecimento de determinada ação de saúde pelo SUS”. (BRASIL, STF, 2010) Por vezes, tal decisão do SUS se dá por inexistirem evidências científicas suficientes para autorizar a inclusão do fármaco.

Assim, quando o SUS decide não fornecer o medicamento, pode ocorrer de: (A) o SUS fornecer tratamento alternativo, caso em que deve “ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente” (BRASIL, STF, 2010). Contudo, por vezes, em razão específica do organismo da pessoa, o tratamento do SUS pode não ser eficaz, podendo o Poder Judiciário determinar tratamento diferente do fornecido pelo SUS, após ampla comprovação do fato; (B) o SUS não tem tratamento específico para determinada doença, caso em que, segundo Gilmar Mendes, é necessário “diferenciar os tratamentos puramente experimentais dos novos tratamentos ainda não testados pelo Sistema de Saúde brasileiro” (BRASIL, STF, 2010). No caso dos tratamentos experimentais, o fármaco não pode ser comprado em nenhum país, pois nunca foi aprovado e avaliado, estando o acesso disponibilizado apenas para estudos clínicos, caso em que o Estado não pode ser condenado a fornecê-lo. Já, no caso de novos tratamentos ainda não incorporados pelo SUS, mas aprovados em outros países e por vezes disponíveis na rede privada, o que se pode verificar é que a burocracia administrativa nem sempre acompanha a evolução médica, sendo que a omissão administrativa, item 1, “no tratamento de determinada patologia poderá ser objeto de impugnação judicial, tanto por ações individuais como coletivas” (BRASIL, STF, 2010), desde que com ampla produção de provas.  

Ainda, com relação aos casos de omissão (item 1), consoante Souza (2012), “é necessário fazer uma verificação mais detalhada nos casos de omissão, tendo em vista que são situações excepcionais que impõem maior cautela ao julgador, principalmente no momento de deferimento ou não da tutela antecipada”. Por isso, há a necessidade de ampla produção de provas e a análise específica em cada caso concreto, não devendo haver uma decisão padrão quando se refere ao direito à saúde.

Sobre a omissão legislativa, embora não enfrentada diretamente na decisão em análise, Torronteguy (2010, P.234) afirma que

é importante refletir sobre as conseqüências da omissão do legislador, considerando, por um lado, a pouca efetividade do mandado de injunção no direito brasileiro e, por outro, as necessidades concretas de atuação legislativa, como é o caso da regulamentação da Emenda Constitucional n. 29 sobre o financiamento da saúde pública.

Por todo o exposto, em resumo, verifica-se que os parâmetros definidos pelo Ministro Gilmar Mendes foram: (1) se há política pública se comprometendo a fornecer certo tipo de medicamento e o Estado não o fornece, o Poder Judiciário deve garantir o cumprimento de tal política pública; (2) é vedado, a princípio, à Administração Pública fornecer fármaco que não possui registro na ANVISA, podendo tal vedação ser excepcionada pela legislação; (3) deve-se analisar a motivação para o não fornecimento de determinação ação de saúde pelo SUS; (4) deve-se dar preferência ao tratamento do SUS, salvo se comprovado que o tratamento é ineficaz ao paciente, caso em que poderá o Poder Judiciário determinar o fornecimento de outro medicamento não previsto no SUS; (5) o Estado não pode ser condenado a fornecer tratamentos experimentais, pois os medicamentos não foram aprovados e avaliados, e nem podem ser comercializados em nenhum país; (6) nos casos de novos tratamentos que, por omissão administrativa e pela burocracia, ainda não se encontram incorporados pelo SUS, mediante ampla comprovação probatória, podem ser objeto de impugnação judicial.

Fazendo um apanhado geral sobre os parâmetros tomados na decisão do STF, Torronteguy (2010, p.235) afirma que

Tais critérios não são de cumprimento obrigatório, ou seja, não vinculam as decisões dos magistrados que, diariamente, em todos os cantos do país, trabalham em processos envolvendo o direito à saúde. Não obstante isso, essas balizas, apresentadas com ponderação no voto do Ministro Relator, significam um passo importante para o aperfeiçoamento do direito sanitário. Sua maior contribuição é refinar a técnica jurídica para a aplicação do mandamento constitucional de que saúde é direito de todos e dever do Estado. Uma vez delimitados tais parâmetros, o grande desafio é aplicá-los.

Assim, com base nesses parâmetros, os magistrados possuem um norte para decidirem os seus casos concretos, salientando que as ações que se referem ao direito à saúde não devem possuir sentenças uniformes para demandas semelhantes, e sim, deve ser analisado cada caso concreto com suas peculiaridades e, por vezes, com ampla produção de provas, a fim de que se possa entregar a resposta jurisdicional da forma mais justa possível.

Além dos parâmetros definidos na decisão, outras questões de pertinência para este trabalho foram abordadas, as quais serão analisadas no tópico a seguir.

 

3.3.  Análise dos argumentos adotados na decisão do agravo regimental na suspensão de tutela antecipada nº 175

Como o enfoque principal dado ao acórdão foram os parâmetros definidos pelo STF no que se refere às ações que visam o fornecimento de medicamentos, mas não menos importantes se afiguram outras questões de relevância jurídica para a matéria, este capítulo passa a analisar as questões de fundo na argumentação dos Ministros do STF na decisão objeto deste trabalho.

3.3.1. A conceitução do direito à saúde na STA nº 175 Agr/CE

O direito à saúde, segundo o art. 196 da CRFB/88, “é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

O Ministro Gilmar Mendes ao fundamentar sua decisão, esmiúça o conceito constitucional de direito à saúde e afirma que dizer que tal norma é apenas de conteúdo programático, significa negar a força normativa da Constituição. (BRASIL, STF, 2010) Isto, pois, apesar de num primeiro momento os direitos de segunda geração terem sido tidos como normas programáticas, não mais vigora esta idéia, até porque o art. 5º, §1º, da CRFB/88 impõe a aplicação imediata dos direitos fundamentais, estando o direito à saúde dentre eles.

Partindo do conceito acima exposto, como “direito de todos”, o Ministro entende ser o direito à saúde tanto um direito individual quanto um direito coletivo. Mas esse direito não é “absoluto a todo e qualquer procedimento necessário para a proteção, promoção e recuperação da saúde”, mas sim, “há um direito público subjetivo a políticas públicas que promovam, protejam e recuperem a saúde”. Ademais, a garantia de prestação individual de saúde, segundo o Ministro “estaria condicionada ao não comprometimento do funcionamento do Sistema único de Saúde (SUS), o que, por certo, deve ser sempre demonstrado e fundamentado de forma clara e concreta, caso a caso”. (BRASIL, STF, 2010) Conforme já visto anteriormente, a saúde é um direito de todos, não estando condicionada a prestação de serviços a critérios como o era antes, isto, pois, a atual Constituição instaurou a universalização dos serviços de saúde.

Como já mencionado, a saúde não é só um direito fundamental, mas também se afigura como um dever de prestação por parte do Estado, seja União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Além disso, conforme o art. 196 da CRFB/88, o direito à saúde é “garantido mediante políticas sociais e econômicas” e isso implica na “necessidade de formulação de políticas públicas que concretizem o direito à saúde por meio de escolhas alocativas”. (BRASIL, STF, 2010) Essas políticas sociais e econômicas devem visar “à redução do risco de doença e de outros agravos”, o que evidencia sua dimensão preventiva. (BRASIL, STF, 2010) Outrossim, também devem ter como objetivo o “acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde”. (BRASIL, STF, 2010) Isso significa dizer que as políticas públicas devem alcançar a população como um todo.

O direito à saúde, como visto, faz parte do rol de direitos fundamentais, e, por sua fundamentalidade, nas palavras do Ministro Celso de Mello,

impõe, ao Poder Público, um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional. (BRASIL, STF, 2010)

Relata o Ministro que não basta o mero reconhecimento formal do direito, sendo essencial que este seja integralmente respeitado e plenamente garantido. (BRASIL, STF, 2010)

Salientando a importância do direito à saúde, o Ministro Celso de Mello ensina que

O alto significado social e o irrecusável valor constitucional de que se reveste o direito à saúde não podem ser menosprezados pelo Estado, sob pena de grave e injusta frustração de um inafastável compromisso constitucional, que tem, no aparelho estatal, o seu precípuo destinatário. (BRASIL, 2010)

Assim, verifica-se que o direito à saúde é um direito de todos e um dever do Estado, sendo um direito fundamental, que por sua fundamentalidade deve ser respeitado e plenamente garantido, além de ter sua aplicação imediata, sob pena de se estar violando à Constituição. E quando isso ocorre, cabe ao Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição, atuar de modo a promover a concretização constitucional e garantir a maior eficácia ao texto fundamental. 

3.2.2. Competência Solidária entre os Entes Federativos

Um dos argumentos levantados pela União no Agravo Regimental foi o da “ilegitimidade passiva da União e ofensa ao sistema de repartição de competências [...], como a inexistência de responsabilidade solidária entre os integrantes do SUS, ante a ausência de previsão normativa [...]” (BRASIL, STF, 2010).

Segundo o art. 23, II, da CRFB/88, “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: [...] II - cuidar da saúde [...]”.

Portanto, tanto a União, como os Estados, Distrito Federal e Municípios são responsáveis solidários “pela saúde, tanto do indivíduo quanto da coletividade e, dessa forma, são legitimados passivos nas demandas cuja causa de pedir é a negativa, pelo SUS (seja pelo gestor municipal, estadual, ou federal), de prestações na área da saúde”. (BRASIL, STF, 2010)

Conforme argumenta Gilmar Mendes, o fato de ser descentralizado os serviços do SUS e os recursos financeiros serem entregues em percentuais diferentes para cada ente da federação não afasta a solidariedade, mas “apenas reforça a obrigação solidária e subsidiária entre eles”. (BRASIL, STF, 2010)

Além disso, com a realização da Audiência Pública sobre a saúde ficou consignada que a responsabilidade dos entes da Federação é solidária, entendimento este que está presente em diversos outros julgados:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. 1. Possibilidade de o Poder Judiciário determinar políticas públicas. Precedentes. 2. Responsabilidade solidária dos entes federados. Precedentes. 3. Configuração de litisconsórcio passivo necessário afastado na origem. 4. Alegado descumprimento de limite orçamentário previsto em portaria. Análise de norma infraconstitucional. Ofensa constitucional indireta. 5. Agravo regimental ao qual se nega provimento. (BRASIL, STF, 2012)

Desse modo, quanto à prestação dos serviços de saúde a competência é comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, de modo que estão abarcados no conceito de Estado, previsto no art. 196 da CRFB/88, todos os entes federativos. Contudo, tal competência não é irrestrita para os entes estatais, estando esta limitada pela Lei 8080/90, que definiu a estrutura do SUS. Por fim, por todos os fundamentos expostos e sendo competência comum dos entes federativos, tem-se que a responsabilidade é solidária no que tange ao direito à saúde.

3.3.3. A Judicialização da Saúde e a Concretização Constitucional

Outro argumento utilizado pela União e amplamente debatido na doutrina se refere à judicialização da saúde, já tratada neste trabalho, e a intervenção feita pelo Poder Judiciário em matéria de políticas públicas.

Neste sentido, a União alega no Agravo Regimental em estudo que

A decisão objeto do pedido de suspensão viola o princípio da separação dos poderes e as normas e regulamentos do SUS, bem como desconsidera a função exclusiva da Administração em definir políticas públicas, caracterizando-se, nestes casos, indevida interferência do Poder Judiciário nas diretrizes de políticas públicas. (BRASIL, STF, 2010)

Para aqueles que entendem serem os direitos sociais “normas programáticas”, corroborando com os argumentos abordados pela União, “a intervenção do Poder Judiciário, ante a omissão estatal quanto à construção satisfatória dessas políticas, violaria o princípio da separação dos Poderes e o princípio da reserva do financeiramente possível” (BRASIL, STF, 2010).

O Ministro Gilmar Mendes explicando as posições adotadas no que tange a este aspecto afirma que, também no sentido de que a intervenção do Poder Judiciário é indevida, tem-se o argumento de que pelo fato de os direitos sociais necessitarem de formulação de políticas sociais e econômicas, que requerem escolhas alocativas, configurando-se típica opção política, não teria o Poder Judiciário condições de “analisar as conseqüências globais da destinação de recursos públicos em benefício da parte, com invariável prejuízo para o todo” (BRASIL, 2010). Ou seja, aqui estariam presentes as objeções levantadas à judicialização expostas no capítulo anterior, referentes à politização da justiça e falta de capacidade institucional do Poder Judiciário nesta seara.

Contudo, há aqueles que defendem a atuação do Poder Judiciário, conforme explica o Ministro, os quais argumentam que os direitos sociais “são indispensáveis para a realização da dignidade da pessoa humana”, devendo ao menos o “mínimo existencial” de cada direito social poder ser objeto de apreciação judicial. (BRASIL, STF, 2010)

Ademais, como constatado no acórdão em comento, o problema no Brasil não é de inexistência de políticas públicas quanto ao direito à saúde, mas sim de cumprimento das políticas públicas já existentes. Por isso, verifica-se que, na maioria dos casos, a intervenção do Poder Judiciário “não ocorre em razão de uma omissão absoluta em matéria de políticas públicas voltadas à proteção do direito à saúde, mas tendo em vista uma necessária determinação judicial para o cumprimento de políticas já estabelecidas” (BRASIL, STF, 2010).

Além disso, há de se falar que foi outorgado ao Supremo Tribunal Federal a tarefa de guardião da Constituição e o compromisso de fazer prevalecer os direitos fundamentais, de modo que, na visão do Ministro Celso de Mello,

a dimensão política da jurisdição constitucional outorgada a esta Corte, não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais que se identificam – enquanto direitos de segunda geração – com as liberdades positivas, reais ou concretas. (BRASIL, STF, 2010)

Prosseguindo em seu voto o Ministro Celso de Mello salienta que, apesar de não estar dentre as atribuições do Poder Judiciário a tarefa de formular e de implementar políticas públicas, quando os entes estatais competentes para isso, por descumprirem seus encargos, vierem a comprometer a eficácia e a integridade dos direitos fundamentais, poderá o Poder Judiciário suprir esta tarefa. (BRASIL, STF, 2010) Assim, quando a Constituição não for cumprida, por omissão do Poder Público, com o objetivo de prevalecer a primazia da Constituição, pode o Poder Judiciário interferir nas políticas públicas. Até porque se os demais poderes tivessem suprido a omissão, não seria necessária a atuação do Judiciário, de modo que sua atuação busca apenas fazer um ajuste do desvio de conduta da Administração.

Por isso, conforme bem salientou o Ministro Celso de Mello, diante da recusa governamental arbitrária, é legítima a intervenção jurisdicional e não viola o princípio da separação dos poderes, sempre que se impuser “a necessidade de fazer prevalecer a decisão política fundamental que o legislador constituinte adotou em tema de respeito e de proteção ao direito à saúde”. (BRASIL, STF, 2010)

Com isso, afigura-se legítima a intervenção jurisdicional, pois

Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. (BRASIL, STF, 2010)

E, por fim, conclui brilhantemente o Ministro Celso de Mello,

Que a ineficácia administrativa, o descaso governamental com direitos básicos da pessoa (como o direito à saúde), a incapacidade de gerir os recursos públicos, a falta de visão política na justa percepção, pelo administrador, do enorme significado social de que se reveste a proteção à saúde, a inoperância funcional dos gestores públicos na concretização das imposições constitucionais não podem nem devem representar obstáculos à execução, pelo Poder Público, da norma inscrita no art. 196 da Constituição da República, que traduz e impõe, ao Estado, um dever inafastável, sob pena de a ilegitimidade dessa inaceitável omissão governamental importar em grave vulneração a um direito fundamental e que é, no contexto ora examinado, o direito à saúde. (BRASIL, STF, 2010)

Sobre referido acórdão, Torronteguy (2010, p.226) relata que o “STF foi cuidadoso ao tomar essa posição, afirmando que cabe ao Judiciário agir quando forem descumpridas as políticas públicas que forem constitucionalmente determinadas”.

Em assim sendo, verifica-se que há posições contrárias à intervenção jurisdicional nas políticas públicas, inclusive as de saúde, principalmente, sob o argumento de que não cabe a este Poder tratar das escolhas alocativas, pois são escolhas políticas. Apesar disso, vigora mais forte a posição de que cabe ao Judiciário intervir, principalmente nos casos em que se afigura a omissão legislativa ou a ineficácia de aplicação de políticas públicas já existentes, caso este que se mostra como uma das principais causas de intervenção do Poder Judiciário. Assim, o Poder Judiciário, bem como, o Supremo Tribunal Federal em última instância, buscam concretizar o texto constitucional, garantindo aqueles direitos que os demais poderes estatais por omissão deixam de lado. Dessa forma, percebe-se que se busca a efetividade das normas constitucionais que definem os direitos fundamentais, como o direito à saúde, e o STF, ao afirmar a posição adotada no presente acórdão, está apenas cumprindo a sua função de garante da Constituição. 

 3.3.4. A ponderação entre os bens jurídicos

 Aspecto de suma importância e bastante ressaltado no voto do Ministro Celso de Mello é a ponderação entre bens jurídicos, entre normas constitucionais, fato este bastante presente quando se trata de direitos sociais. Tal fato se deve à “Constituição Cidadã”, modo como ficou conhecida a CRFB/88, tendo em vista que em sua confecção buscou-se retratar os interesses de diversos setores da sociedade, o que, em muitos casos, pode ocasionar divergências entre as normas constitucionais.

Juízos de ponderação no que se refere aos direitos sociais, na opinião do Ministro Gilmar Mendes, “são inevitáveis nesse contexto prenhe de complexas relações conflituosas entre princípios e diretrizes políticas ou, em outros termos, entre direitos individuais e bens coletivos”.

A saúde, como um direito de grande valor constitucional, por diversas vezes, se vê enfrentando o interesse financeiro do Estado. Inclusive, no presente caso, a União arguiu na fundamentação do Agravo Regimental que a determinação de desembolso de certa quantia para adquirir medicamento de alto custo causa grave lesão às finanças e à saúde pública, pois implica em deslocamento de recursos estatais, descontinuidade na prestação dos serviços de saúde ao restante da população e possibilidade de efeito multiplicador deste tipo de demanda. (BRASIL, STF, 2010)

Quanto à este aspecto, o Ministro Celso de Mello expõe a sua opinião, ressaltando que deve prevalecer o direito à saúde e à vida humana. Nas palavras do Ministro Celso de Mello:

Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde – que se qualifica como direito subjetivo inalienável a todos assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, “caput”, e art. 196) – ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo, uma vez configurado esse dilema, que razões de ordem ético-jurídica impõem, ao julgador, uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana. (BRASIL, STF, 2010)

Ainda, ensina sobre a essencialidade do direito à saúde, fato este demonstrado com a qualificação feita pelo constituinte como prestação de relevância pública, conforme art. 197 da CRFB/88. Por essa essencialidade, há um fator de limitação da discricionariedade político-administrativa, não podendo o Poder Público alegar simples conveniência ou oportunidade com relação ao direito à saúde. (BRASIL, STF, 2010)

Por vezes, o direito à saúde de uma pessoa se vê enfrentando o de outra, como se vê na discussão entre o Ministro Gilmar Mendes e a Ministra Ellen Gracie, os quais fornecem como exemplo casos em que é decidido que a pessoa tem direito a uma vaga na UTI e os médicos se vêem obrigados a decidir quem vão retirar da UTI; ou mesmo de alguém que estava na fila de transplante e corre o risco de morte por ter sido colocado para trás, em virtude de uma decisão que determinou que alguém “furasse a fila”. Esses casos utilizados como exemplo, são alguns já enfrentados pelos magistrados. Com isso, verifica-se a colisão entre dois direitos à vida ou dois direitos à saúde, como pode alguém decidir sobre qual deve prevalecer?

A fim de se buscar dar a melhor solução aos casos concretos, deve o intérprete utilizar-se da técnica da ponderação, buscando dar a maior efetividade possível ao princípio. Contudo, o peso de um princípio ou de um bem jurídico sobre o outro, muitas vezes, só é possível de se analisar à luz do caso concreto.  Por isso, não se deve dar solução às ações que visam o direito à saúde com decisões repetitivas, tais como as que ocorrem em ações de massa, tendo em vista que em tal matéria não há uma resposta única e absoluta, pois cada caso pode possuir certas peculiaridades, além do que o mínimo existencial de uma pessoa pode ser diferente do de outra.

3.3.5. O princípio da reserva do possível

Como o direito à saúde é um direito que exige uma ação positiva por parte do Estado, ou seja, uma ação prestacional, com base nesta dimensão prestacional se tem um dos principais argumentos contrários à judicialização da saúde, até porque as escolhas realizadas pelo Poder Judiciário não podem ser escolhas políticas. (BRASIL, STF, 2010)

Como retrata o Ministro Celso de Mello, não há como deixar de atribuir significativo valor ao tema da “reserva do possível” quando se trata de direitos de segunda geração, isto, pois, se impõem prestações positiva por parte do Estado.

É claro que a efetivação dos direitos de segunda geração, por serem direitos prestacionais, dependem das possibilidades orçamentárias do Estado. Assim, se comprovada “a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política”. (BRASIL, STF, 2010)

Contudo, consoante salienta o Ministro Celso de Mello, a cláusula da “reserva do possível”

Não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. (BRASIL, 2010)

Por isso, não é lícito criar obstáculos, manipulando a atividade financeira, com o fito de frustrar e inviabilizar a prestação desses direitos aos cidadãos, não havendo, inclusive, espaço amplo de discricionariedade sobre a efetivação desses direitos. (BRASIL, STF, 2010)

Apesar do orçamento do Estado ser finito, não pode este a cada ação judicial simplesmente alegar a incapacidade orçamentária, sem ampla demonstração probatória acerca de tal fato, caso este em que não deverá prosperar a aplicação da “reserva do possível”. Até porque, o Estado deve garantir um “mínimo existencial” às pessoas, o que varia de pessoa para pessoa. Além do mais, como direito fundamental, a saúde é um direito que deve ser garantido pelo Estado e, quando isso não ocorre, não resta alternativa ao cidadão a não ser buscar a intervenção do Poder Judiciário, a fim de garantir a efetivação de seu direito constitucional.

 

CONCLUSÃO

 

Os direitos fundamentais de primeira geração surgiram sob o manto do Estado Liberal, sendo incorporados nas Constituições dos séculos XVIII e XIX. Tais direitos abrangiam os direitos de liberdade, os quais requeriam uma abstenção por parte do Estado.

Com a chegada do Estado Social, tinha-se por objetivo tornar concretos aqueles direitos de primeira geração que antes se situavam apenas na esfera formal, além de dar ensejo a uma nova categoria de direitos, os quais exigiam por parte do Estado uma intervenção social e econômica para sua efetivação. A inclusão desses direitos no ordenamento jurídico dos países, com destaque para a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919, num primeiro momento, se deu através de normas diretivas e programáticas, passando por ciclo de baixa normatividade e eficácia duvidosa.

Posteriormente, vieram os direitos de terceira geração, que se caracterizavam por sua titularidade coletiva e difusa. Há, ainda, autores que entendem haver uma quarta geração de direitos, como Bonavides que entende estes abrangerem os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo, e divergindo de tal posição Tavares entende que esta geração abrange os direitos de certos grupos sociais, como direito da criança, do adolescente, do idoso, entre outros. Vale lembrar, que as classificações em gerações são apenas para fins didáticos, pois não são estanques, sendo que a cada dia são conquistados mais e mais direitos.  

Voltando aos direitos sociais, como afirmado, estes eram direitos que se situavam na esfera programática. Contudo, como toda norma jurídica é válida e vigente, devem todas gozarem de aplicabilidade imediata, fato este que foi observado pela CRFB/88 no art. 5º, §1º. Assim, os direitos sociais não constam no texto constitucional apenas como diretrizes, mas sim, devem se apresentar efetivamente, tendo como titulares tanto os trabalhadores como a coletividade.

Dentre os direitos sociais, está o direito à saúde, que, em âmbito nacional, apareceu em um primeiro momento como controle sanitário, evoluindo para ações públicas curativas restritas a determinados grupos sociais, para, por fim, com a CRFB/88, aparecer, pela primeira vez como direito fundamental da pessoa humana e ser estabelecida a universalização dos serviços públicos de saúde. Assim, o direito à saúde passa a ser um direito fundamental, dever do Estado, de competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, que através de políticas sociais e econômicas visam à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

O direito à saúde, por ser um direito que exige uma prestação estatal, acaba gerando grandes debates, tais como a judicialização da saúde. Como visto, com o surgimento do Estado Social, começou a ocorrer o inchaço da máquina estatal, não tendo o Estado condições de manter todos os direitos. Assim, os Tribunais Constitucionais que antes proferiam apenas decisões ab-rogatórias, passaram a ter de suprir a inércia dos Poderes Legislativo e Executivo, tornando-se o Poder Judiciário o “poder da vez”. Com a ampliação da jurisdição constitucional e o consequente aumento da demanda judicial, bem como, pelo sistema misto de constitucionalidade brasileiro, onde muitas questões relevantes podem ser alçadas ao STF, vem ocorrendo a judicialização das relações políticas e sociais. As principais objeções a tal fato são os riscos à legitimidade democrática, à politização da Justiça, e à capacidade institucional do Judiciário. E tal fato não vem ocorrendo diferente com o direito à saúde, a qual sofre também com a judicialização do direito à saúde, com a intervenção por parte do Judiciário para o fim de concretizar esse direito constitucional, quando da inércia dos demais poderes estatais. O principal argumento contrário à intervenção do Poder Judiciário na saúde é de que este poder não poderia intervir nos assuntos de políticas públicas referente à saúde, pois depende de alocação política dos recursos estatais. Contudo, essa intervenção por parte do Poder Judiciário, busca apenas garantir o direito constitucional, quando da omissão por parte dos demais poderes estatais, concretizando a Constituição.

Outro problema que frequentemente surge quando se trata do direito à saúde é a colisão entre normas constitucionais, como entre o direito à saúde e à vida em contraponto ao da igualdade, ou em contraposição ao direito às finanças saudáveis do Estado. Isto, pois, a Constituição é formada por regras e princípios, revelando em muitas normas constitucionais o caráter geral e indeterminado dos princípios, o que confere uma grande margem de atuação ao intérprete, mas que também garante que estas normas não envelheçam, pois se tornam capazes de se adequarem às necessidades sociais contemporâneas. Assim, quando da incompatibilidade de regras, ou esta é válida ou é inválida, mas quando envolve incompatibilidade entre princípios, não há como afirmar isso, de modo que se tem de utilizar da técnica da ponderação. Com isso, somente à luz do caso concreto, pode-se verificar qual o princípio tem mais peso sobre o outro. E, como a atividade do intérprete é ampla, fundamental é a exposição expressa e analítica do raciocínio que escolheu qual princípio deve preponderar sobre o outro.

Outro tema que vem sido amplamente discutido, quando da atuação do Poder Judiciário na esfera da saúde, tal como nas ações de medicamentos, tem sido acerca do princípio da “reserva do possível”. Tal princípio limita as prestações dos direitos sociais à capacidade financeira do Estado, pois implica em alocação de recursos materiais e humanos. Em diversos julgados políticos vigorava a aplicação da reserva do possível, com fundamento de que não poderia o Judiciário interferir em políticas públicas. No entanto, tal posição vem se modificando, pois se de um lado se tem a falta de recursos estatais, do outro se têm a necessidade de se efetivar um direito social. Assim, a limitação orçamentária não deve se apresentar como uma barreira para a efetivação do direito à saúde, devendo ao menos ser garantido o mínimo existencial e necessário a cada pessoa. Desse modo deve-se ponderar no caso concreto o mínimo existencial e a reserva do possível, buscando aplicar ambos cada um em sua medida, de modo a proporcionar ao caso concreto uma solução mais justa e que assegure a dignidade da pessoa humana acima de tudo.

Todos esses temas são amplamente discutidos, também, na jurisprudência brasileira. Inclusive, estes temas fazem parte da fundamentação dos Ministros no STF na decisão objeto deste trabalho.

A STA 175 AgR/CE trata-se de um caso em que o Ministério Público Federal ajuizou ação com pedido para o fornecimento do medicamento ZAVESCA a uma jovem de 21 anos, portadora da doença Niemann-Pick Tipo C, uma doença que causa uma série de distúrbios neuropsiquiátricos.

Tal acórdão é considerado uma decisão paradigmática, pelo fato de ser a primeira decisão do Tribunal Pleno do STF após a audiência pública sobre a saúde; por ter sido aplicado o art. 127 do Regimento Interno do STF, julgando conjuntamente diversas ações com a mesma questão jurídica; e por ter sido uma decisão que analisou profundamente o tema acerca da judicialização brasileira, estabelecendo parâmetros para julgamento que podem ser seguidos por outros juízes.

Um fato importante levantado no acórdão é de que o problema no Brasil não se refere à interferência do Poder Judiciário na criação e implementação de políticas públicas, mas sim, apenas à determinação judicial para o cumprimento efetivo das políticas públicas já existentes. Portanto, aqui não há que se falar em interferência indevida por parte do Poder Judiciário.

Como dito, este acórdão tem tamanha importância por ter definido parâmetros no que se refere ao julgamento das ações de medicamentos, quais sejam: (1) havendo política pública se comprometendo a fornecer certo tipo de medicamento, diante do não fornecimento por parte do Estado, o Poder Judiciário deve garantir o cumprimento de tal política pública; (2) em princípio, é vedado à Administração Pública fornecer fármaco que não possui registro na ANVISA, podendo tal vedação ser excepcionada pela legislação; (3) deve-se verificar qual a motivação para o não fornecimento de determinada ação de saúde pelo SUS; (4) deve-se dar preferência ao tratamento do SUS, salvo se comprovado que o tratamento é ineficaz ao paciente, caso em que poderá o Poder Judiciário determinar o fornecimento de outro medicamento não previsto no SUS; (5) o Estado não pode ser condenado a fornecer tratamentos experimentais, pois os medicamentos não foram aprovados e avaliados, e nem podem ser comercializados em nenhum país; (6) nos casos de novos tratamentos que, por omissão administrativa e pela burocracia, ainda não se encontram incorporados pelo SUS, mediante ampla comprovação probatória, podem ser objeto de impugnação judicial.

Por todo o exposto, conclui-se que a saúde como direito fundamental deve ser plenamente garantido, tendo sua aplicação imediata, sob pena de se estar violando a ordem constitucional. Assim, quando ocorrer uma omissão estatal, pode o Poder Judiciário interferir, suprindo tal omissão, cabendo ao STF como guardião da Constituição promover a concretização constitucional e buscar garantir a maior eficácia à Lei Maior. 

Além disso, percebe-se que apesar de haver posições contrárias à intervenção jurisdicional quando se fala em direito à saúde, como quando se trata de fornecimento de medicamentos, por se tratarem de escolhas alocativas e, portanto, políticas, está mais forte a posição de que pode o Judiciário intervir. A intervenção feita pelo Poder Judiciário se faz necessária quando da omissão estatal ou quando da ineficácia de aplicação de políticas públicas já existentes. Assim, o Poder Judiciário, bem como, o Supremo Tribunal Federal em última instância, buscam concretizar o texto constitucional, dotando de efetividade as normas constitucionais que definem os direitos fundamentais, como o direito à saúde. E isso se percebe no presente acórdão, quando o STF adota a posição de intervir em matéria referente ao direito à saúde, inclusive, definindo parâmetros que servem como um norte para os magistrados decidirem em outros casos.

Ademais, apesar do orçamento do Estado ser finito, não pode este a cada ação judicial simplesmente alegar a incapacidade orçamentária, pois deve o Estado ao menos garantir o “mínimo existencial” e não estando este mínimo garantido não poderá prosperar a aplicação da “reserva do possível”.

Outrossim, buscando uma melhor solução dos conflitos ocorridos entre princípios no caso concreto, tais como entre a “reserva do possível” e o “mínimo existencial”, ou entre o direito à saúde e à vida em contraposição ao direito à igualdade, deve-se utilizar da técnica da ponderação. Assim, com o uso de tal técnica tem-se como objetivo buscar dar a máxima efetividade possível a cada princípio, o que é possível somente à luz do caso concreto. Por isso, não se deve dar solução às ações que visam o direito à saúde com decisões repetitivas, tais como as que ocorrem em ações de massa, tendo em vista que em tal matéria não há uma resposta única e absoluta, pois cada caso pode possuir certas peculiaridades, além do que o mínimo existencial de uma pessoa pode ser diferente do de outra.

Enfim, por diversas vezes podem os juízes se verem frente a escolhas trágicas, por isso, necessária a ampla fundamentação do magistrado ao decidir o caso concreto. E a STA 175 AgR/CE serve para ajudar estes magistrados a terem parâmetros para julgar as ações que visam o fornecimento de medicamentos com mais objetividade. Contudo, estes parâmetros são apenas uma “ajuda”, pois somente à luz de cada caso pode-se verificar qual bem jurídico deve prosperar, não podendo simplesmente produzir sentenças uniformes para demandas semelhantes, pois aqui se está mexendo com um bem tão importante e caro que é a vida.

 

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Sobre a autora
Alini Bunn

Analista do MPU/Direito, especializada em Direito Público.

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