Ainda no período da escravidão e apenas dois anos após a independência da coroa portuguesa, a prática de foro especial já estava proibida: a Constituição de 1824 dizia que à exceção de causas próprias dos juízos particulares não haveria foro privilegiado nem comissões especiais nas causas cíveis e nos crimes (artigo 179, inciso XVII).
As constituições que vieram em seguida mantiveram a mesma linha. A de 1891, que marcou o início da República, teve texto semelhante ao do império: “À exceção das causas que, por sua natureza, pertencem a juízos especiais, não haverá foro privilegiado”, instruiu o artigo 72, § 23. A de 1934 acrescentou que, além de não haver foro privilegiado, não haveria tribunais de exceção, mas continuou admitindo juízos especiais em razão da natureza das causas (artigo 113, § 25).
A Constituição de 1937 nem chega a mencionar foro especial, e a de 1946 reitera que “não haverá foro privilegiado nem juízes e tribunais de exceção” (artigo 141, § 26). Trinta anos depois a mesma orientação foi repetida pela Constituição militar, de 1967, em seu artigo 150, § 15.
Ao promulgar a Constituição de 1988, a Assembleia Nacional Constituinte manteve nos direitos e garantias fundamentais a proibição de juízo ou tribunal de exceção (artigo 5º, inciso XXXVII), porém abriu as várias possibilidades de foro especial já mencionadas.
Um motivo relevante cuida da chamada “competência por prerrogativa de função”, ou seja, de uma jurisdição especial, exercida ratione personae, a qual, muito embora criticada por alguns, não objetiva beneficiar ou privilegiar certas pessoas colocando-as acima dos cidadãos comuns.
Ao revés, essa previsão constitucional visa a permitir que determinados cargos e funções públicas de maior relevo na estrutura do Estado possam ser exercidos com a necessária independência. Diz José Frederico Marques sobre o assunto: Não se trata de privilégio de foro, porque a competência, no caso, não se estabelece ‘por amor dos indivíduos’, e sim em razão ‘do caráter, cargos ou funções que eles exercem’, como ensinava J. A. Pimenta Bueno. Ela está baseada na ‘utilidade pública e no princípio da ordem e da subordinação e na maior independência do Tribunal Superior’ – como o disse, em 1874, o Supremo Tribunal de Justiça (Paula Pessoa, Código de Processo Criminal, p. 195, nota 1.905).
A competência por prerrogativa de função, como afirmou o Ministro Victor Nunes Leal, na Reclamação 473, DJ de 6 de junho de 1962, é instituída, não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício com alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade.
Disse ele: a jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é, realmente, instituída não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade.
Tal prerrogativa, como acentuou o Ministro Cezar Peluso, em voto no HC 91.473/PI, não é instituída no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse de seu bom exercício, integrando os predicados objetivos do devido processo legal, de sorte que seu beneficiário não tem por onde renunciar a tal direito para ser julgado por órgão de menor categoria. Mas, leve‐se em conta que a prerrogativa de foro não visa beneficiar o cidadão, mas proteger o cargo ocupado.
Mas, sem dúvida essa situação não pode garantir um atalho para a impunidade. Daí porque a prerrogativa de foro é vista com desconfiança pela opinião pública. A discussão em juízo, data vênia, de entendimento contrário, deve ser feita por ação popular e não por ação de descumprimento de preceito fundamental, de jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal.
As categorias variam de Estado para Estado. No Rio de Janeiro e no Piauí, há casos de foro para vice-prefeitos e vereadores. No Maranhão, para delegados. No Rio Grande do Norte, para auditores do Tribunal de Contas.
A maioria prevê foro privilegiado para vice-governadores, prefeitos, secretários estaduais, juízes estaduais e membros do Ministério Público. Também há casos de defensores públicos, procuradores do Estado, além de comandantes das Polícias Militar e Civil e Bombeiros sendo julgados diretamente pelos desembargadores.
Não há dados precisos sobre quantas pessoas detêm foro privilegiado no Brasil, mas um estudo da Ajufe (Associação de Juízes Federais) aponta que só no Judiciário e no Ministério Público 34,6 mil profissionais têm o benefício.
A PEC do Foro, do senador Álvaro Dias (PV-PR), prevê que o foro privilegiado permaneça apenas para chefes dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário da União.
O texto foi aprovado em primeiro turno no Senado, em abril deste ano, mas ainda passará por uma segunda votação entre os senadores e, em seguida, será avaliada pela Câmara dos Deputados.
Cargos que mais possuem foro privilegiado nos Estados
Defensores Públicos: 26
Prefeitos: 26
Procurador-Geral de Justiça: 24
Juízes: 24
Membros do Ministério Público: 23
Secretários Estaduais: 23
Deputados Estaduais: 22
Vice-governador: 20
Procurador-Geral do Estado: 13
Defensor Público Geral: 10
O ministro Luís Roberto Barroso pediu que o Plenário do Supremo Tribunal Federal aproveite o caso de um ex-deputado federal para rediscutir a validade do foro por prerrogativa de função. Embora ainda tramitem várias propostas de emenda constitucional nesse sentido, ele afirma em despacho que a própria corte pode “reduzir o problema (...) mediante uma interpretação restritiva do seu sentido e alcance, com base no princípio republicano e no princípio da igualdade”.
Sem antecipar o voto, o relator sugere que o foro especial fique restrito aos crimes imputados em razão do ofício e que digam respeito estritamente ao desempenho daquele cargo. O caso é representativo porque já dura quase dez anos: o crime de compra de votos, segundo a denúncia, ocorreu em 2008, mas desde então houve um “vaivém” na competência da ação penal.
A matéria pode ser objeto de discussão pelo Supremo Tribunal Federal. Não que o Supremo Tribunal Federal tenha poderes de legislar, mas o Supremo Tribunal Federal pode densificar a norma, dentro do que relata a chamada teoria concretista da Constituição.
Dentro da metódica jurídica normativo-estruturante, são componentes da norma, o programa normativo e o domínio normativo. O programa normativo, como informou J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e teoria da Constituição, 4ª edição, pág. 1179), é o resultado de um processo parcial de concretização assente fundamentalmente na interpretação do texto normativo. O setor normativo é o resultado do segundo processo parcial de concretização fulcrado sobretudo na análise dos elementos empíricos (dados reais, dados da realidade). O Supremo Tribunal Federal iria formular, para o caso, uma norma de decisão, tendo em vista a norma e seu alcance social.
Com isso, tem-se o método estruturante, na concretização da Constituição (que se traduz num processo de densificação de regras e princípios constitucionais), que vai do texto da norma para uma norma concreta, na tentativa de descobrir uma norma de decisão.
Densificar uma norma significa preencher, complementar e precisar o espaço normativo de um preceito constitucional, especificamente carecido de concretização, a fim de tornar possível a solução, por esse preceito, dos problemas concretos enfrentados pelo intérprete. Densifica-se um espaço normativo (preenche-se uma norma) para tornar possível a sua concretização e a consequente aplicação de um caso concreto.
Mas uma norma jurídica adquire verdadeira normatividade quando com a “medida de ordenação” nela contida se decide um caso jurídico, ou seja, quando o processo de concretização se completa através de sua aplicação, como anotou Canotilho (obra citada pág. 1184), quanto ao caso jurídico a decidir: a) a criação de uma disciplina regulamentadora ; b) através de uma sentença ou decisão judicial; c) através da prática de atos individuais pelas autoridades. Com isso, uma norma jurídica que era potencialmente normativa ganha uma normatividade atual e imediata através de sua passagem à norma de decisão, que regula concreta e vinculativamente o caso carecido de solução normativa, assim, estamos diante de uma norma de decisão.