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A Presidência brasileira e a separação de poderes (1988-2002)

A independência do judiciário tem como principal alicerce a ausência de hierarquia entre os magistrados e o princípio do livre convencimento do juiz. E para isso, o bom funcionamento da tripartição dos poderes, na concepção de Montesquieu, é fundamental. Entenda como esse cenário se descortinou no Brasil, no período de 1988 a 2002, e quais reflexos trouxe para o governo.

Para a existência e funcionamento da tripartição dos poderes (na concepção de Montesquieu) a democracia é fundamental. Não há se falar em judiciário independente sem a democracia.

A independência do judiciário tem como principal alicerce a ausência de hierarquia entre os magistrados e o princípio do livre convencimento do juiz. Ambos estão devidamente previstos nos arts. 371 e 372, do Código de Processo Civil de 2015.  Não obstante, a independência financeira do judiciário liberta-o de quaisquer pressões por parte dos outros poderes.

Pela própria natureza do judiciário, não há de se falar em accountability vertical, ou seja, o povo não cobra ou faz pressão social sobre os magistrados, uma vez que a investidura no cargo e sua permanência independe da vontade direta do povo, portanto, o risco político do judiciário é zero. O mesmo ocorre em relação ao accountability vertical, que é realizado por outros entes governamentais. No Brasil, tanto o legislativo, quanto o executivo não possuem ferramentas para fiscalizar ou rever os atos do judiciário, não há uma prestação de contas.

Segundo Komparato (2004, p. 256): “é falacioso objetar que a fiscalização ab extra da ação dos magistrados importaria na perda de sua independência de julgamento e do seu poder disciplinar interno”. Assim, a fiscalização propriamente dita garantiria um mero controle e, consequentemente, aumento da segurança jurídica. A proposta do autor não implica na revisão das decisões judiciais (formais e materiais); não há de se falar em censura judicial, tampouco em supressão da competência disciplinar do próprio judiciário.

Em se tratando de segurança jurídica, o Brasil enfrenta uma difícil realidade, uma vez que existem decisões divergentes sobre a mesma matéria. Mesmo quando há entendimento consolidado nos tribunais superiores, nada garante que um magistrado do primeiro grau aplicará o entendimento uniforme.

Numa tentativa de criar um controle sobre o judiciário brasileiro, em 2004 criou-se o Conselho Nacional de Justiça, CNJ, através da Emenda Constitucional nº. 45, art. 103-B, da Constituição de 1988:

Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de 15 (quinze) membros com mandato de 2 (dois) anos, admitida 1 (uma) recondução, sendo:

§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura:  

O CNJ possui funções fiscalizadoras e administrativas. Nos termos do §4º, do Art. 103-B, da Constituição de 1988, o CNJ exerce o controle administrativo e financeiro do Poder Judiciário, além de controlar o cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados.

Entretanto, a Associação dos Magistrados do Brasil impetrou a ADI nº 4.638-DF, em face de possível inconstitucionalidade do CNJ quanto ao poder de punir os magistrados. O conflito de competência ocorre por causa da existência prévia da corregedoria do judiciário. Ocorre que o STF julgou pela competência concorrente do CNJ e da corregedoria para processar os magistrados que cometem infrações.

Mesmo com a decisão do STF o CNJ tem se mostrado mais um conselho analítico do que julgador. Ao menos, tem contribuído para a transparência do judiciário brasileiro.

Por meio do relatório do CNJ (Justiça em números), observa-se que há um sério problema de gestão financeira no judiciário, pois mesmo com orçamentos bilionários, ele tem prestado um serviço público de baixa qualidade.

Tabela 3 – Evolução da despesa total, número de decisões, casos novos e processos baixados do Poder Judiciário[1]

Ano

Despesa Total do Judiciário

Número de decisões

Casos novos

Processos baixados

Casos pendentes

2009

R$51,2 bilhões

23,7 milhões

24,6 milhões

25,3 milhões

60,7 milhões

2010

R$ 53 bilhões

23,1 milhões

24 milhões

24,1 milhões

61,9 milhões

2011

R$ 60 bilhões

23,6 milhões

26,1 milhões

25,8 milhões

64,4 milhões

2012

R$ 64,6 bilhões

24,8 milhões

28 milhões

27,7 milhões

67,1 milhões

2013

R$ 65,6 bilhões

25,9 milhões

28,5 milhões

28,1 milhões

70,8 milhões

2014

R$ 68,4 bilhões

27 milhões

28,9 milhões

28,5 milhões

72,0 milhões

2015

R$ 79,2 bilhões

27,2 milhões

27,3 milhões

28,5 milhões

73,9 milhões

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Observa-se que, apesar da elevada despesa, o número de decisões proferidas pelos magistrados e tribunais sempre fica abaixo da quantidade de novos processos, o que cria um enorme passivo (12.100.000) de processos que aguardam julgamento. Infelizmente, as informações ainda são pouco estudadas no Brasil. Tem-se, ainda, um elevado número de processos casos pendentes, que em 2015 totaliza 73,9 milhões de processos.

Outro aspecto que contribui para o fortalecimento do judiciário brasileiro é a grande quantidade de escândalos de corrupção que envolvem diversos atores políticos tanto do executivo, quanto do legislativo. Além da descrença social desses atores, a capacidade de governar e de produzir leis fica altamente comprometida, de forma que sobra para o judiciário tomar as decisões mais importantes para a nação.

Não obstante, o Executivo sempre se esforça muito para acomodar o legislativo nos ministérios, o que acaba traindo o voto do cidadão, que não terá seu representante legislando, assumindo um suplente.

Em relação à política partidária e as eleições presidenciais, logo após a transição política vivida durante o governo José Sarney, o Brasil viveu um período de movimentação política que consolidou a retomada do regime democrático no país. Em 1989, após vinte e nove anos, a população brasileira escolheria o novo presidente da República através do voto direto.

A campanha presidencial de 1989 foi uma eleição histórica e em 15 de dezembro, Collor obteve 42,7% dos votos contra 37,8% de Lula. Em 1994, a eleição presidencial promoveu um realinhamento das forças políticas nacionais, criando assim uma nova divisão nacional, sobretudo por meio da aliança PSDB-PFL e a posterior coalizão governista. Fernando Henrique Cardoso venceu a eleição no 1º turno em 15 de novembro, lançando mão de mecanismos tradicionais da política partidário-eleitoral brasileira e novamente Lula foi derrotado.

A campanha presidencial de 1998 reforçou a tendência do eleitorado brasileiro no sentido de dividir-se entre a aliança governista tucana e os grupos de oposição liderados pelo PT. O então Presidente FHC se reelegeu ainda no primeiro turno com 53,6%, enquanto Lula recebeu 31,71% dos votos, Ciro Gomes 10,97% e Enéas Carneiro apenas 2,14%. Em 2002, a aliança partidária trabalhista de centro-esquerda PT-PL chegou ao poder. No 2º turno, Lula obteve 61% dos votos válidos contra 39% de Serra.

A síntese apresentada acima consagra dois aspectos importantes em relação as eleições presidenciais brasileiras: a importância do tempo de exposição na TV e a volatilidade da opinião pública na avaliação do desempenho presidencial. Um exemplo disso foi a avaliação dos presidentes FHC e Lula durante os seus mandatos. No 1º Governo FHC a avaliação das pessoas se concentraram entre ótimo/bom e regular. Já no 2º Governo, ruim/péssimo e regular foi o que mereceu maior destaque na evolução da avaliação do Presidente. Por sua vez, Lula em seu 1º mandato com excelente percentual ótimo/bom, assim como no 2º mandato. Ou seja, a volatilidade é que influencia diretamente nas eleições presidenciais, mesmo num governo de coalizão.

Alguns aspectos centrais na política brasileira podem ser observados antes, ou durante, as eleições: as coalizões multipartidárias, os sistemas de partidos e os sistemas eleitorais. Basicamente, existem três Sistemas Eleitorais: Majoritário, Proporcional e o Distrital. O Brasil apenas utiliza os dois primeiros. O sistema eleitoral adotado representa a melhor maneira de compor a vontade dos eleitores para cada tipo de cargo político. Assim, a Constituição Federal estabeleceu que as eleições no Brasil serão regidas pelos sistemas eleitorais majoritário e proporcional.

Por sua vez, os sistemas partidários são: monopartidarismo, bipartidarismo e multipartidarismo. Este último é caracterizado pela presença de 3 ou mais partidos políticos que podem discutir a disputa pelo poder, o qual é observado no Brasil e ao longo dos anos fomentou a formação de coalizões governistas, cuja lógica principal são as indicações presidenciais para cargos no executivo.

Após os dois mandatos de FHC, observou-se uma Presidência substancialmente diferente, sobretudo pelas inúmeras emendas constitucionais aprovadas e pelas significativas reformas implementadas. Em 1995 teve início no Brasil a Reforma da Gestão Pública ou reforma gerencial do Estado com a publicação, nesse ano, do Plano Diretor da Reforma do Estado e o envio para o Congresso Nacional da emenda da administração pública que se transformaria, em 1998, na Emenda 19.

Nos primeiros quatro anos do governo Fernando Henrique, enquanto Luiz Carlos Bresser-Pereira foi o ministro, a reforma foi executada ao nível federal, no MARE - Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Com a extinção do MARE, por sugestão do próprio ministro no final desse período, a gestão passou para o Ministério do Planejamento e Gestão, ao mesmo tempo em que estados e municípios passaram também a fazer suas próprias reformas.

Os bancos do Governo Federal passaram por significativas alterações, sobretudo pelo fato de serem uma importante ferramenta para a implementação de políticas pela Presidência da República. Além disso, as reformas tucanas incluíram novos mecanismos de execução do Orçamento Federal.

O orçamento Federal também evoluiu no governo de FHC, visando ao planejamento de ações de longo prazo, em 1996 primeiro plano trienal foi proposto, posteriormente foi aprovada a Lei da Responsabilidade Fiscal em 2000, trazendo responsabilização penal aos administradores que não cumprissem certos parâmetros orçamentários. As leis orçamentárias anuais passaram a ser norteadas pelo planejamento plurianual, com o estabelecimento de metas anuais de gastos, e  a sofrer o crivo do legislativo e do judiciário.

Essas reformas objetivaram aumentar a capacidade da Presidência em atingir metas prioritárias. O Plano Plurianual de seu segundo mandato foi denominado “Avança Brasil”, consolidado por 355 programas em diversas áreas prioritárias como: infraestrutura, educação fundamental, trabalho infantil, saúde, desenvolvimento social e econômico, totalizando aproximadamente 60 bilhões de reais em investimentos para o período de 2000 a 2003.

No que se refere às finanças públicas, apesar da modernização e simplificação da captação de impostos, elevando a arrecadação em 42,7% em termos reais durante os sete primeiros anos de seu governo, FHC fracassou na aprovação de reformas tributárias.

Na política econômica, FHC buscou o deslocamento desenvolvimento encabeçado pelo Estado para um novo regime que se baseou no equilíbrio entre as forças do mercado e a regulação governamental.  Esse período se caracterizou pela privatização de inúmeras empresas estatais e a criação de agências reguladoras, a exemplo da ANEEL (energia Elétrica) e ANATEL (telecomunicações).

Com a abertura comercial ao capital estrangeiro e a consolidação do Plano Real, vivenciou-se, naquele período, a redução da inflação, aumento do consumo, modernização da indústria e crescimento econômico. Esse período se destacou também pelo estabelecimento de acordos entre o Brasil e o FMI (Fundo Monetário Internacional), totalizando aproximadamente 67 bilhões de dólares em empréstimos.

Além dos avanços na área econômica, observou-se também evolução nas políticas sociais. O governo tucano procurou descentralizar a implementação das políticas, através do estímulo a organizações sociais, visando reduzir custos, aumentar a eficiência e dar maior poder de participação à sociedade. Os esforços foram concentrados em três áreas: Educação, Saúde e no programa Comunidade Solidária.

Na educação, se destacou a criação do Fundo para o Desenvolvimento da Educação Fundamental (FUNDEF), baseado na distribuição direta de 15% das receitas do ICMS e do IPI entre estados e municípios (FPE e FPM), baseado na quantidade de alunos matriculados no ano anterior, reforçando a descentralização da educação fundamental.  Para regular e fiscalizar essa liberação direta de recursos aos municípios foi estabelecido o Programa Escola Pública – Gestão Eficiente.

A Administração FHC também desenvolveu diversas iniciativas na área de Saúde, com medidas que procuram universalizar o atendimento, facilitando o acesso a serviços básicos em áreas rurais e regiões menos desenvolvidas.  No governo FHC foi criada a lei do Piso Assistencial Básico (PAB), que determinava aos municípios valores mínimos de gasto por pessoa, também foi estabelecida uma nova Norma Operacional Básica que alterou regulamentos do Sistema Único de Saúde, delegando responsabilidades e gastos para autoridades estaduais e municipais, processo condicionado à participação social e às alocações orçamentárias.

O programa Comunidade Solidária foi anunciado em 1995 como um esforço para mobilizar organizações sociais e recursos governamentais dos diversos ministérios, com ênfase no auxílio aos municípios mais pobres do país e que apresentam os piores indicadores sociais, segundos os levantamentos do IBGE como, por exemplo: Educação Fundamental, Saneamento, Moradia e Mortalidade Infantil. O Programa dirigiu esforços no treinamento de agentes de saúde comunitários e equipes médicas locais, focando em medidas voltadas para saúde familiar, mães e bebês nos municípios mais pobres do Brasil.

Ainda na área social, em 2002 foi criado um novo Cartão da Cidadania, unificando em um único cartão eletrônico benefícios de cinco programas sociais existentes, destinado às famílias que ganhavam menos de meio salário mínimo.

As reformas tucanas também contemplaram o setor rural, foi aprovada em 1996 a lei do Rito Sumário concebida para acelerar a desapropriação, a adjudicação e o assentamento. Esta lei reduziu o tempo médio de assentamentos e estabeleceu poderes a União para intervir em disputas por terras e supervisionar a devolução ou distribuição de terras após a sentença judicial.

Além de modificações na legislação, o governo elevou os investimentos na infraestrutura em áreas rurais, como: oferta de energia elétrica, estradas, poços artesianos, instalações de armazenagem e celeiros, escolas e postos de saúde, além da implementação do PROCERA (Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária) que financiou a construção de imóveis residenciais com taxas de juros reduzidas.

No quesito política externa, Kurt von Mettenheim destaca:

“A política externa brasileira procurou estabelecer o país como uma plataforma de comércio global, aprofundar a integração regional (com o Mercosul e a América do Sul) e expandir as agendas dos países em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio e nas Nações Unidas, ao mesmo tempo em que eram mantidas alianças cruciais com os EUA e o hemisfério ocidental”.

A política externa passou a fazer parte das agendas da Câmara dos Deputados e do Senado, e foram estabelecidos escritórios regionais do Ministério das Relações Exteriores em alguns Estados. Além dessas mudanças, outras iniciativas privadas aumentaram o número de agentes e de influências sobre a formulação e a implementação da política externa brasileira, contrapondo ao tradicional monopólio desta questão por parte da Presidência e do Ministério das Relações Exteriores.

Em linhas gerais, a conclusão central é a de que houve uma crescente separação de poderes nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso. Na economia, ocorreu o fim da inflação elevada, a abertura ao capital estrangeiro, a privatização de empresas estatais e uma modernização da indústria brasileira. A administração pública também evolui através da implantação do Plano Plurianual, a Lei de Responsabilidade Fiscal e modernização do sistema de arrecadação dos impostos. Se destacou também a descentralização de atribuições e responsabilidades de políticas públicas aos governos estaduais e municipais.


Nota

[1] Informação extraída do Relatório CNJ em números, disponível em http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros

Sobre os autores
Renato Hayashi

Advogado. Professor e Coordenador em cursos de Pós-graduação. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Mestre em Políticas Públicas (UFPE). Assessor Jurídico na Câmara Municipal do Recife.

Jadson de Arruda Almeida

Administrador. Mestrando em Políticas Públicas pela UFPE

Phillip César

Bacharel em Ciências da Computação pela UFPE. Gestor Governamental do Estado de Pernambuco. Especialista em Gestão Governamental pela UPE. Mestrando em Políticas Públicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HAYASHI, Renato; ALMEIDA, Jadson Arruda et al. A Presidência brasileira e a separação de poderes (1988-2002). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5104, 22 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58326. Acesso em: 22 dez. 2024.

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