A fiscalização jurisdicional de constitucionalidade, the judicial review of legislation, teve origem nos Estados Unidos, através de uma reflexão jurisprudencial acerca da supremacia da Constituição sobre todas as leis ordinárias1. Esta contribuição, no sentir de Paulo Bonavides é "tão importante quanto a do federalismo e do sistema presidencial de governo, formas políticas também desconhecidas até o advento do sistema republicano nos Estados Unidos" 2.
Assim, o princípio da exigência de compatibilidade das leis ordinárias com o disposto na Constituição, têm origem na jurisprudência norte-americana, em especial na celebre decisão do Juiz John Marshall no caso Willian Marbury v. James Madison em 1803.
John Marshall era o quarto Chief Justice dos Estados Unidos e um Congressista do Estado da Virgínia, lugar de onde era nativo. Na Guerra Revolucionária, Marshall subiu ao grau de Capitão, e quando o conflito terminou, ele advogou em Richmond e tornou-se delegado do Estado da Virgínia, eleito em uma Assembléia Geral. Em 1799, ele foi ao Congresso, e posteriormente foi nomeado Secretário de Estado por John Adams então Presidente dos Estados Unidos pelo Partido Federalista. Em seguida foi indicado para ser Presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos em 1801 onde permaneceu no cargo até a sua morte em 1835 com oitenta anos de idade.
Todavia, elementos que cercam a histórica do caso evidenciam que Marshall estava politicamente contaminado quando proferiu sua decisão, posto que tinha interesse processual na lide, e que hoje, se daria por suspeito.
Ronaldo Polleti, com uma clareza meridiana esclarece a questão:
"Adams era o Presidente dos Estados Unidos e seu Secretário de Estado, Jonh Marshall. Ambos pertenciam ao Partido Federalista, que foi fragorosamente derrotado por Jefferson e seus partidários. O novo Presidente e o Congresso deveriam ser empossados meses depois, tempo suficiente para que Adams efetivasse o seu testamento político. A fórmula encontrada pelos federalistas foi a de nomear os – digamos – correligionários para os cargos do Judiciário, onde usufruiriam das conhecidas garantias de vitaliciedade e de irredutibilidade de vencimentos. Um dos beneficiados disso foi Marshall, nomeado, depois de aprovação pelo Senado, para Presidente da Suprema Corte, cargo que acumulou com o de Secretário de Estado até a véspera da posse do novo Governo. Neste ínterim, entre a derrota eleitoral e a posse do novo Governo, Marshall procurou desincumbir-se da missão, mas não conseguiu entregar todos os títulos de nomeação, não obstante já perfeitos, inclusive assinados pelo Presidente e selados com o selo dos Estados Unidos. Um dos títulos não entregues nomeava Willian Marbury para o cargo de Juiz de Paz, no condado de Washington, no Distrito de Columbia. Quando Jefferson assumiu, determinou a seu Secretário de Estado, James Madison, que não entregasse o título da comissão a Marbury, por entender que a nomeação era incompleta até o ato de entrega da comissão. Marbury não tomou posse do cargo, e, por isso, requereu ao Tribunal a notificação de James Madison para que apresentasse suas razões, pelas quais não lhe entregava o título de nomeação para possibilitar-lhe a posse. Tais razões poderiam embargar um eventual pedido de writ of mandamus. Madison silenciou e não apresentou os embargos para o que fora notificado. Marbury, então, interpôs o mandamus " 3.
O mérito da causa só foi decidido dois anos mais tarde, quando Marshall declarou o direito de Marbury à posse do cargo de Juiz, e conseqüentemente consolidava uma jurisprudência do Judicial Review desconfortável para o Governo Republicano de Jefferson e cômoda para os Federalistas, que eram absoluta maioria no Poder Judiciário, devido à nomeação dos novos judgeships por Adans.
A originalidade lógica de Marshall teve inspiração na doutrina, como as lições de Hamilton, no clássico The Federalist, escrito quinze anos antes do caso (Marbury v. Madison), onde sustentava-se a competência do Poder Judiciário no controle das leis, e a supremacia da Constituição sobre as leis ordinárias4. E nos precedentes jurisprudenciais 5 como em 1780 onde a Justiça do Estado de New Jersey declarou nulidade de uma lei que contrariou a Constituição do Estado. Outro importante caso ocorreu em Rhode Island em 1786 (Trevett v. Weeden), no qual os juízes declararam uma lei inválida, embora não conheceram o caso alegando ausência de pressuposto de jurisdição 6. No ano seguinte nos debates estaduais que precederam a Constituição Federal dos Estados Unidos de 17 de setembro de 1787, John Marshall sustentou na Convenção de Virgínia que "Se eles (o congresso) elaborarem uma lei não permitida por um dos poderes enumerados, ela deve ser considerada, pelos juízes, como infringente à Constituição, da qual eles são o guarda. Eles não deverão considerá-la como lei, ao exercerem a sua função jurisdicional. Eles deverão declará-la nula." 7
E justificou a sua decisão no referido caso "Se, então, os tribunais estão a analisar a constituição, e a constituição é superior a qualquer ato ordinário da legislatura, a constituição, e não tal ato ordinário, deve reger o caso para o qual ambos se aplicam." 8
Assim, no curso dos trinta e quatro anos do exercício de sua função, Marshall estabeleceu a Supreme Court of The United States como a última instância a interpretar a Constituição Federal, 9 e consagrando a via de exceção no controle de constitucionalidade das leis.
Neste diapasão, o Poder Judiciário norte-americano tornou-se à época um super poder, a ponto de comprometer o equilíbrio constitucional dos poderes, este período ficou conhecido como o "governo de juízes", entretanto, como assinala Paulo Bonavides, as palavras do Juiz Hugles continuam a retratar a realidade atual do sistema norte-americano de controle de constitucionalidade "Vivemos debaixo de uma Constituição, sendo a Constituição porém aquilo que os juízes dizem que é" 10.
Inspirado no judicial review norte-americano, o inigualável RUY BARBOSA, mesmo na solidão do exílio, defendia arduamente a fiscalização da Constituição Federal pelos Tribunais, através de cartas escritas na Inglaterra, e publicadas no Jornal do Comércio, causando arrepios ao poder da Ditadura Militar. Assim, dispara o saudoso mestre baiano, em carta escrita em Londres, em 21 de maio de 1895:
"Se querem fundar a omnipotencia real do executivo, escudada na apparente omnipotencia real do congresso, principiem por abolir virtualmente a constituição, fechando os tribunaes. Mais vala acabal-os do que deshonral-os, convertendo-os em rabadilha do poder irresponsável. Se as armas não se inclinarem á justiça, ao menos que a justiça não seja a cortezã das armas. Estas não precisam della, e, dispensando-lhes os serviços, poupariam, ao menos, a última das degradações moraes a um povo resignado ao anniquilamento".11
Deste modo, incontroverso é o fato de que histórica decisão de Marshall serviu como um marco fundamental para a teoria do controle de constitucionalidade das leis, sendo o sistema norte-americano da judicial review adotado por diversos países, dentre eles o Brasil.
BIBLIOGRAFIA
BARBOSA, Ruy. Cartas de Inglaterra: O Congresso e a Justiça no Regimen Federal, 2ª edição, Livraria Acadêmica Saraiva & C. São Paulo, 1929.
BITTENCOURT, C. A. Lúcio. O Controle Jurisdicional de Constitucionalidade das Leis. Rio de Janeiro: Forense, 1949.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed., Coimbra: Almedina, 1997.
CAPPELLETTI, Mauro, O Controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Trad. Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Fabris, 1984.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade das leis no direito brasileiro. 2ª ed. ver. Atual. Ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. O Controle Judicial das Omissões do Poder Público. São Paulo: Saraiva, 2004.
HAMILTON, Alexander, JAY, John, MADISON, James. O Federalista (Um comentário à Constituição americana) Trad. por Reggy Zacconi de Moraes. Rio de Janeiro, Editora Nacional de Direito.
HASKINS, George L. and JOHNSON, Herbert A. Foundations of Power: John Marshall, 1801-1815 (1981).
MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990.
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
POLETTI, Ronaldo. Controle de Constitucionalidade das Leis. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
Notas
-
Alguns doutrinadores divergem no tocante à origem histórica do controle de constitucionalidade. Ronaldo Poletti sustenta que a origem do controle deu-se na Grécia, em seguida na Inglaterra, onde através do direito natural anulavam as leis contrárias ao common law. (POLETTI, Ronaldo. Controle de Constitucionalidade das Leis), Já para Mauro Capelletti, na legislação ateniense existia um conjunto de leis que não podiam ser modificadas, senão por um procedimento especial bastante complexo que lembra a revisão constitucional. (CAPPELLETTI, Mauro, O Controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Trad. Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Fabris, 1984). Contudo, incontroverso é o fato de que histórica decisão de Marshall serviu como um marco fundamental para a teoria do controle de constitucionalidade das leis.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 13ª ed., p. 305
POLETTI, Ronaldo. Controle de Constitucionalidade das Leis, p. 31,
"A função de todos os juízes é a de interpretar as leis, a fim de aplicá-las aos casos concretos de vez em vez submetidos a seu julgamento; uma das regras mais óbvias da interpretação das leis é aquela segundo a qual, quando duas disposições legislativas estejam em contraste entre si, o juiz deve aplicar a prevalente; tratando-se de disposições de igual força normativa, a prevalente será indicada pelos usuais, tradicionais critérios ‘lex posterior derogat legi priori’,’lex specialis derogat legi generali’; mas, evidentemente, estes critérios não valem mais, e valem ao contrário, em seu lugar, o óbvio critério ‘lex superior derogat legi inferiori’- quando o contraste seja entre disposições de diversa força normativa: a norma constitucional, quando a Constituição seja ‘ rígida’ e não ‘flexível’, prevalece sempre sobre a norma ordinária contrastante" in HAMILTON, Alexander, JAY, John, MADISON, James. O Federalista (Um comentário à Constituição americana) Trad. por Reggy Zacconi de Moraes. Rio de Janeiro, Editora Nacional de Direito.
-
"Eis, pois, em succinta nomenclatura, as decisões da suprema corte americana annullando actos do congresso federal:
1 – Questão Hayburn. Ag. 1792. Contra a Lei de 23 de março de 1792, que conferia auctoridade aos tribunaes em matéria de pensões;
2 – United States v. Yale Todd. Fev. 1794. Sentença contra a lei de 23 de março 1792, já aludida, que conferia á justiça poderes não judiciais;
3 – Marbury v. Madison. Fev. de 1803. Contra uma disposição da lei de 1789, concernente á organização judiciária, que dava jurisdição originária á corte suprema nos casos de ‘mandamus’. In BARBOSA, Ruy. Cartas de Inglaterra: O Congresso e a Justiça no Regimen Federal, 2ª edição, Livraria Acadêmica Saraiva & C. São Paulo, 1929, p. 418."
EVANS, Lawrense B., Cases on American Constitutional Law, 6ª ed., Chicago, 1952. apud POLETTI, Ronaldo. Controle de Constitucionalidade das Leis, p. 25.
POLETTI, Ronaldo. Controle de Constitucionalidade das Leis, p. 24.
"If, then, the courts are to regard the constitution, and the constitution is superior to any ordinary act of the legislature, the constitution, and not such ordinary act, must govern the case to which they both apply" in DEWEY, Donald O. Marchall v. Jefferson: The Political Background of Marbury v. Madison (1970).
HASKINS, George L. and JOHNSON, Herbert A. Foundations of Power: John Marshall, 1801-1815 (1981).
-
"We are under a constitution, but the constitution is what the judges say it is" in BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 13ª ed., p.315.
BARBOSA, Ruy. Cartas de Inglaterra: O Congresso e a Justiça no Regimen Federal, 2ª edição, Livraria Acadêmica Saraiva & C. São Paulo, 1929, p. 423.