A existência de um déficit democrático na União Européia tem sido destacado freqüentemente nos relatórios institucionais e nos meios acadêmicos. Constata-se a existência desse déficit desde os primeiros atos da integração regional européia, uma vez que seus idealizadores – Monnet e Schuman – estavam claramente influenciados pela teoria neofuncionalista, segundo a qual, em linhas gerais, busca-se o sucesso do funcionamento do sistema na tecnocracia e no elitismo, independentemente da participação democrática. Trata-se de uma teoria sobre a estratégia da integração e não sobre a legitimidade dessa integração, já que ela não estava em causa.
A teoria neofuncionalista previa uma transferência progressiva e automática de soberania dos Estados-membros para a Comunidade Européia. A sucessiva integração de funções estatais e a criação de uma elite tecnocrática teriam por resultado um processo auto-sustentado, composto por etapas de integração, que levaria à criação de uma nova entidade política. Essa teoria fundava-se numa abordagem norte-americana dos anos 50 e 60 da atividade dos grupos de interesses e da eficiência da tecnocracia na decisão, que foi adaptada ao contexto de integração europeu. (FRAGA, 2001, p. 39-40).
Na verdade, a teoria neofuncionalista ajudou a colocar em movimento um processo de integração na Europa fundado em "uma combinação de tecnocratas benevolentes e grupos econômicos impulsionados por interesses próprios para construir coalizões transnacionais de apoio a políticas européias" (FEATHERSTONE, 1994, p. 149).
O funcionamento bem-sucedido do início do processo de integração da Europa dependia da vinculação dos governos nacionais aos objetivos europeus, que se realizaria através da tecnocracia da Alta Autoridade (órgão máximo da CECA e antecessor da atual Comissão Européia), e também da persuasão das elites e dos grupos econômicos. Daí que a participação dos cidadãos, para Monnet e Schuman, não era relevante para o sucesso da integração européia.
O legado dessa estratégia inicial gerou uma frágil legitimidade democrática, que se intensificou com o decurso do tempo. Nesse sentido, as reações contrárias ao Tratado de Maastricht e à unificação monetária via Euro, as altas taxas de abstenção nas eleições dos eurodeputados e a falta de interesse da opinião pública da Europa sobre o atual projeto europeu de Constituição podem ser vistas como uma conseqüência direta da estratégia neofuncionalista adotada por Monnet e Schuman.
A noção de déficit democrático decorre não apenas da observação da gênese da integração européia mas também da estrutura institucional da União Européia, à medida que a sua concepção carece de participação mais efetiva dos cidadãos dos Estados-membros.
Com efeito, o Conselho da União Européia, que dispõe de poderes executivos e legislativos; a Comissão Européia, que desempenha o papel de guardiã dos tratados, dispõe do poder de atuar contra os Estados-membros e detém o monopólio da iniciativa legislativa; e o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, que garante o respeito do Direito Comunitário na interpretação e aplicação de suas normas, são instituições compostas exclusivamente por pessoas designadas ou nomeadas pelos governos nacionais (técnicos e políticos), que atuam como gestores, legisladores e julgadores no espaço comunitário, sem a obrigação de responder politicamente por suas decisões.
O Parlamento Europeu, que é o único órgão comunitário democraticamente eleito pelas populações dos Estados-membros pelo voto direto, não possui os mesmos poderes dos Parlamentos nacionais de legislar e de controlar os respectivos Executivos. Mesmo que o Tratado de Maastricht, de 1992, tenha avançado no reconhecimento do alargamento de sua função legislativa, instituindo novos domínios para legislação e o procedimento de co-decisão, o Parlamento Europeu continua destituído de capacidade decisória plena, não sendo de grande relevância sua atuação como poder constituinte derivado. Como resultado, o Conselho da União Européia tem a prerrogativa de, no procedimento de cooperação, em votação unânime, adotar determinada decisão, a despeito do veto do Parlamento Europeu.
Não obstante, as atribuições do Parlamento Europeu, em matéria de política externa, são eminentemente consultivas e de supervisão, não tendo competência legal para influenciar no conteúdo dos acordos e tratados tanto na fase das negociações diretas quanto na fase da elaboração das diretivas.
Na verdade, grande parte dos poderes soberanos nos domínios executivo e legislativo transferidos pelos Estados-membros à União Européia está sendo efetivamente exercida pela Comissão Européia, visto que é dela a titularidade da iniciativa das leis e das políticas comunitárias, cabendo às demais instituições, em muitos domínios, apenas ratificá-las.
Há, assim, na estrutura institucional da União Européia "um dualismo expresso por uma instituição representativa, mas sem autonomia decisória, e por agências burocráticas dotadas desta autonomia, porém sem representatividade" (FARIA, 1999, p. 308).
Não obstante tal dualismo, para que um país possa pretender aderir à União Européia, têm-se como requisitos ser um Estado europeu e estar fundado em bases democráticas. Exige-se que o país seja democrático para pertencer ao bloco comunitário Consagra-se o respeito à democracia pluralista nos diversos Tratados constitutivos; porém, paradoxalmente, a efetiva participação democrática não está presente na estrutura institucional de União Européia e nas tomadas de decisões das instituições comunitárias.
Portanto, o déficit democrático afeta apenas a dimensão européia da política, posto que, no plano interno, os Estados-membros, em geral, respeitam os princípios do Estado de Direito e da democracia.
A União Européia tornou-se cada vez mais importante nas vidas dos cidadãos, ao mesmo tempo em que está perdendo apoio popular. Ela é responsável por 75% da legislação econômica através de seus Estados-membros, e por 50% de toda a legislação interna. No entanto, levantamentos mostram que na maioria dos países-membros há menos entusiasmo pela União Européia do que antes – como duas ou três sociedades fazendo o movimento oposto. As razões normalmente apresentadas são a falta de democracia na União Européia e seu distanciamento das preocupações das pessoas comuns (GIDDENS, 1999, p. 154).
É esse, pois, o déficit democrático da União Européia, que se formou pela conjugação dos interesses dos Estados-membros, e cuja conseqüência principal é o risco do que Michele Carducci (apud NEUSTEIN; DA SILVA, 2002, p. 380) denominou autoritarismo do constitucionalismo europeu: democracias nacionais que produziram uma entidade supranacional desprovida de participação popular. Embora o constitucionalismo esteja historicamente ligado à ideologia dos governados, dos cidadãos, a integração européia, ao contrário, nasce como uma idéia dos governantes – uma idéia autoritária, que não se identifica nos cidadãos, nem encontra respaldo popular, à medida que apenas o governo de cada Estado-membro participa da tomada de decisões.
Trata-se de um problema congênito de que padece a União Européia e que foi identificado desde sua gênese, como conseqüência da estratégia neofuncionalista de Monnet, cujas bases são a tecnocracia e o elitismo, e que esteve presente em toda sua evolução, permanecendo ainda até os dias atuais.
Com efeito, no contexto da integração européia, o "défice democrático das instituições democráticas é ostensivo. Os Tratados avançaram muito mais como constituição da liberdade do que como constituição da democracia e sua ordem jurídica estruturou-se mais através da intervenção do Tribunal de Justiça do que da vontade democrática" (PIRES, 1997, p. 71).
Como reação à falta de transparência do processo decisório e a hegemonia exercida pela organização burocrática da União Européia, centralizada em Bruxelas, e a conseqüente eliminação de suas deficiências democráticas, Habermas coloca a necessidade de se construir um espaço público político europeu para a discussão e deliberação de temas de relevância comum. Esse espaço público seria o lugar de formação da opinião pública e preencheria uma função ideal: a transformação de problemas relevantes comuns em núcleos cristalizadores de discursos, permitindo que os cidadãos se refiram simultaneamente aos mesmos temas relevantes e se posicionem em relação a temas controverso, expressando "sim" ou "não". Essa tomada de posição pode se cristalizar em discursos influentes e depositar-se, no longo prazo, em enfoques a eleições democráticas (HABERMAS, 2003, p. 140).
Esse espaço público europeu ou esfera pública política permitiria aos cidadãos tomarem opinião sobre os mesmos assuntos ao mesmo tempo, criando-se uma verdadeira opinião pública européia, no âmbito comunitário, que poderia dar legitimidade direta à União Européia, através do Parlamento Europeu.
Essa arena de formação pública de opinião e de vontade só existe, porém, no interior dos Estados-membros. A exigência funcional de uma esfera pública política para uma União Européia estruturada democraticamente só pode ser concebida no âmbito de um projeto de uma Constituição européia, que colocaria em movimento um amplo debate, abrangendo todo o espaço integrado, pois o próprio processo constitucional pode ser tido como um meio importante de comunicação que ultrapassa as fronteiras nacionais (HABBERMAS, 2003).
O pensamento habermasiano de formação de um espaço público democrático europeu se opõe diametralmente à política da União Européia, à medida que apenas o governo de cada Estado-membro participa da tomada de decisões, não apenas na área econômica, mas também nas esferas da política e do direito.
REFERÊNCIAS
FARIA, José Eduardo. Direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999.
FEATHERSTONE, Kevin. Jean Monet and the democratic deficit in the European Union. Journal of Common Market Studies, v. 32, n. 2, p. 149-170, june 1994.
FRAGA, Ana. Os parlamentos nacionais e a legitimidade da construção europeia. Lisboa: Edições Cosmo, 2001.
GIDDENS, Anthony. A terceira via: reflexões sobre impasse político e o futuro da social-democracia. Rio de Janeiro: Record, 1999.
HABERMAS, Jürgen. Era das transições. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
NEUSTEIN, Fernando Dantas M.; DA SILVA, Beatriz Pereira. O princípio da primazia no Direito Comunitário e o déficit democrático da União Européia. In: PIOVESAN, Flávia (Coord.). Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002. p. 367-383.
PIRES, Francisco Lucas. Introdução ao Direito Constitucional Europeu. Lisboa: Almedina, 1997.