1 Introdução.
A ideia legislativa nº 64.353, de autoria de Rafael Zucco, de São Paulo, após receber apoio de mais de vinte mil cidadãos por meio do portal e-Cidadania, foi convertida em sugestão legislativa nº 7/2017. Supostamente com fulcro em uma matéria não identificada que informava que 80% (oitenta por cento) das denúncias de estupro seriam falsas e com base em motivos como “conseguir mais bens no divórcio, ganhar guarda dos filhos etc”, a proposta almeja tornar “falsa acusação de estupro crime hediondo e inafiançável”. Pedindo a ajuda de “homens e mulheres de bem”, busca conseguir a aprovação de “uma lei que torne a falsa acusação um crime hediondo, com penas baseadas no Art. 213 6-10 anos” (SIC).
Antes de adentrar mais profundamente na análise jurídica da proposta, vale frisar que ela pode ser profundamente marcada por uma atecnia jurídica que, primeiramente, pode confundir o meio jurídico por não expressar-se de modo adequado. Note-se que o autor busca, tão somente, tornar “falsa acusação de estupro crime hediondo e inafiançável”. Seria, contudo, essa “falsa acusação de estupro” o crime de calúnia, disposto no art. 138 do Código Penal; o crime de denunciação caluniosa, disposto no art. 339 do Código Penal; ou o crime de falsa acusação de crime, disposto no art. 340 do Código Penal? Versaria também sobre o crime de Estupro de vulnerável ou simplesmente seria apenas o crime de estupro? Tendo em vista que o autor da sugestão legislativa embasa sua proposta em uma matéria não identificada que aduziria que 80% das acusações de estupro são falsas, conforme matéria de uma publicação do Jornal Extra, do O Globo, de 27 de maio de 2012, cujo título é “Nas Varas de Família da capital, falsas denúncias de abuso sexual podem chegar a 80% dos registros”[1], tem-se que o autor queria se referir ao crime de denunciação caluniosa em sua proposta, todavia, em face da incerteza, todas as possibilidades de proposta serão devidamente analisadas.
Para compreender ainda mais o caso ora analisado, faz-se necessária a análise do que é o pedido da sugestão, isto é, o que significa tornar um certo crime hediondo ao incluí-lo no rol de crimes hediondos, bem como as consequências dessa inclusão. Faz-se, portanto, necessárias a explicação de diversos conceitos intrínsecos ao tema exposto, como os conceitos de crime, hediondez, pena, proporcionalidade bem como dos tipos penais envolvidos.
2 O conceito de Direito Penal.
Cezar Roberto Bitencourt leciona que “O Direito Penal apresenta-se, por um lado, como um conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes – penas e medidas de segurança” e também “um conjunto de valorações e princípios que orientam a própria aplicação e interpretação das normas penais”, enquanto Rogério Greco[2] aduz que Direito Penal “é o conjunto de normas, condensadas num único diploma legal, que visam tanto a definir os crimes, proibindo ou impondo condutas, sob a ameaça de sanção para os imputáveis e medida de segurança para os inimputáveis, como também criar normas de aplicação geral, dirigidas não só aos tipos incriminadores nele previstos, como a toda legislação penal extravagante, desde que esta não disponha expressamente de modo contrário”. Já Guilherme de Souza Nucci[3] afirma que o Direito Penal é “o conjunto de normas jurídicas voltado à fixação dos limites do poder punitivo do Estado, instituindo infrações penais e as sanções correspondentes, bem como regras atinentes à sua aplicação”. Damásio de Jesus leciona por sua vez que “o Estado estabelece normas jurídicas com a finalidade de combater o crime. A esse conjunto de normas jurídicas dá-se o nome de Direito Penal”. Magalhães Noronha conceitua que “direito penal é o conjunto de normas jurídicas que regulam o podre punitivo do Estado, tendo em vista os fatos de natureza criminal e as medidas aplicáveis a quem os pratica”[4]{C}.
Indiferente a qual conceito entre esses demonstrados seja utilizado por base, pode-se afirmar que todos possuem definições que nos permitem concluir que, de modo simples, o Direito Penal é um conjunto de normas que visa coibir e combater crimes bem como tipificar quais condutas reprováveis pela sociedade serão tipificadas como tal e imputar-lhe sanções e medidas de segurança consideradas adequadas. O que se busca combater e coibir com o Direito Penal é, portanto, o crime, isto é, o fato delituoso devidamente tipificado.
3 O conceito de crime.
Giuseppe Maggiore, em seu célebre “Derecho Penal”[5], explica que “Delito – desde el aspecto ideal – puede llamarse, pues, todo acto que ofende gravemente el orden ético y exige una expiación em la pena”. Franz von Lizst[6] por sua vez aduz que “Crime é o injusto contra o qual o Estado commina pena e o injusto, quer se trate de delicto do direito civil, quer se trate do injusto criminal, isto é, do crime, é a acção culposa e contrária ao direito”. Magalhães Noronha conceitua que “crime é a conduta humana que lesa ou expõe a perigo um bem jurídico protegido pela lei penal. Sua essência é a ofensa ao bem jurídico, pois toda norma penal tem por sua finalidade sua tutela”. Assim como esses, diversos outros autores, no decorrer da história, criaram diversos conceitos do que seria crime e pode-se afirmar que diversos deles estão corretos em sua conceituação, todavia, tais conceitos expostos nos permitem questionar quais são os elementos que compõem e caracterizam um crime?
Para responder, voltemo-nos, então, para a atual concepção de crime para o Direito pátrio. A atual visão quatripartida do delito conceitua que o crime, nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt, é “concebido como ação, típica, antijurídica e culpável”. Tomando tal visão, tem-se que um crime, portanto, possui necessariamente, sob essa definição, quatro coisas a serem analisadas para que se defina se há ou não um crime: (I) Ação ou Omissão, (II) Tipicidade, (III) Culpabilidade e (IV) Antijuricidade.
O primeiro ponto a ser analisado é o conceito de ação. Explica Ricardo C. Nuñez[7], em lição aplicável ao direito pátrio, que “la imputación delictiva encuentra su base fundamental em un mal comportamiento exterior de las personas”, isto é, a base fundamental para a imputação criminal encontra-se em um “comportamento exterior das pessoas”, isto é, uma ação. A primeira coisa que deve ser afirmado é que, anexo a tal conceito, há o conceito de omissão, pois o conceito de ação engloba os conceitos de comissão e omissão, isto é, “compreende a ação propriamente dita, em sentido estrito ou positivo, e a omissão ou a ação negativa”. Ressoando ao disposto, Franz von Liszt, em lição, mutatis mutandis, aplicável ao Direito brasileiro, leciona que a “commissão e a omissão são as duas formas fundamentaes da acção e consequentemente do crime” (SIC). A comissão, assim como a omissão para o direito penal, constitui um ato punível. Cumpre afirmar, no entanto, que comissão e omissão tem estruturas próprias, isto é, enquanto a comissão, para o Direito Penal, é um ato que viola diretamente uma proibição legal (crime comissivo), isto é “é a causação do resultado por um acto de vontade”, a omissão, para o Direito Penal, é o ato de deixar de fazer uma ação que poderia e deveria realizar (crime omissivo) em determinada situação, isto é “é, em geral, o não emprehendimento de uma acção determinada e esperada”. Não é qualquer ato, no entanto, que possa ter interesse do direito penal, pois esse somente tutela certo grupo de ações, quais sejam as que, de certo modo, sejam mais relevantes a ponto de não poderem ser sanadas por outros ramos do Direito, afinal o direito penal é a ultima ratio.
O segundo ponto a ser analisado é o conceito de tipicidade. Nas palavras de Bitencourt[8], “Tipicidade é a conformidade do fato praticado pelo agente com a moldura abstratamente descrita na lei penal”, isto é, tipicidade é a característica da ação ou omissão do autor ser compatível com o tipo penal que “é a descrição da conduta humana feita pela lei e correspondente ao crime” ou, em outras palavras, “o conjunto dos elementos do fato punível descrito na lei penal. O tipo exerce uma função limitadora e individualizadora das condutas humanas penalmente relevantes. É uma construção que surge da imaginação do legislador, que descreve legalmente as ações que considera, em tese, delitivas, Tipo é um modelo abstrato que descreve um comportamento proibido”. Profundamente ligado ao brocardo “Nullum crimem nulla poena sine previa lege”, tipicidade é a característica de uma ação se enquadrar em um tipo penal que obrigatoriamente deve ser previamente estabelecido. Assim, nas palavras de Nucci, “respeita-se o princípio da legalidade (ou reserva legal) para o qual não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem lei anterior que a comine”. Vale afirmar que o princípio constitucional da legalidade está disposto no art. 5º, II da Constituição Federal, tamanha a sua importância.
O terceiro ponto a ser analisado é o conceito de culpabilidade. Nulla poena sine culpa. Famoso brocardo jurídico que dispõe que não há pena se um ato não é culpável, tem profunda relação com o conceito de culpabilidade. Assevera Bitencourt que “a culpabilidade apresenta-se como fundamento e limite para a imposição de uma pena justa. Por outro lado, a culpabilidade também é entendida como um instrumento para a prevenção de crimes e, sob essa ótica, o juízo de atribuição de responsabilidade penal cumpre com a função de aportar estabilidade ao sistema normativo, confirmando a obrigatoriedade do cumprimento das normas”. Conforme leciona Magalhães, “Trata-se do elemento subjetivo do delito. O resultado lesivo ao direito, oriundo da ação do sujeito ativo, há de ser-lhe atribuído a título de culpa, em sentido amplo, isto é, em dolo ou culpa”. O presente ponto é de suma relevância não só no campo teórico, mas também no prático, pois infelicidades podem acontecer a qualquer um. Imagine-se, por exemplo, a seguinte situação: uma pessoa vem transitando em seu carro, dentro da velocidade limite e obedecendo a todas as leis, entretanto, para sua infelicidade, no meio do caminho uma outra pessoa tropeça, caindo na estrada e tendo sua vida ceifada no instante de colisão com o veículo antes exposto. Teria, o motorista, cometido um crime disposto no art. 121 do Código Penal? Absolutamente não, pois não possuía qualquer culpa no presente caso! Ressoando ao disposto, vale trazer à baila o julgamento da apelação 71800/AP[9], que, em sentença, trouxe a ausência de culpabilidade:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - INDENIZAÇÃO POR ACIDENTE DE TRÂNSITO - CICLISTA - TRAVESSIA DE INOPINO - EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE DO MOTORISTA - ELEMENTOS DE CONVICÇÃO EX-TRAÍDOS DE LAUDO PERICIAL - IDONEIDADE - AÇÃO INDENIZATÓRIA IMPROCEDENTE - RECURSO IMPROVIDO.
1) Não há que se imputar culpa ao motorista que, transitando de acordo com as regras de segurança de trânsito, vê-se surpreendido por imprevisível atitude de ciclista que, inopinadamente, atraves-sa via preferencial interceptando a sua trajetória;
2) As condutas previsíveis dos ciclistas, contra as quais cumpre aos motoristas precaverem-se, são as normais, e não as abruptas, impulsivas, impensadas, ou de inopino, como a do caso concreto, e que atuam como excludentes da culpabilidade;
3) Na ausência de provas em contrário, há de prevalecer o laudo pericial como o único elemento de prova para a busca da verdade dos fatos, porquanto elaborado por peritos do Departamento de Polícia Técnico-Científica, funcionários públicos devidamente autorizados e capacitados para o exercício da função e que gozam de fé pública;
4) Ação indenizatória improcedente;
5) Recurso improvido.
TJ-AP - APL: 71800 AP, Relator: Desembargador MELLO CASTRO, Data de Julgamento: 29/08/2000, CÂMARA ÚNICA, Data de Publicação: no DOE N.º 2399 de Terça, 10 de Outubro de 2000.
O quarto ponto a ser analisado por sua vez é o conceito de antijuricidade. A antijuricidade, conforme explicita a construção da palavra, é a característica de algo ser contrário ao jurídico, ou, em melhores palavras, ao Direito. É a característica da ação de ser uma afronta ao Direito pátrio sendo, portanto, ilícita e injusta. Assim, a “ação é antijurídica ou ilícita quando é contrária ao direito. A antijuridicidade exprime uma relação de oposição entre o fato e o direito”. Tal conceito é de crucial importância não só para o direito pátrio mas para a análise em questão pois é a antijuricidade característica essencial para uma ação ou omissão típica seja ou não caracterizada como um crime ao criar possibilidades excepcionalíssimas para que tais ações ou omissões sejam lícitas e justas. É, entre outras, uma dessas possibilidades excepcionalíssimas criadas pela antijuridicidade a legítima defesa.
Todo e qualquer crime no ordenamento pátrio brasileiro deve, por regra, ter as características acima elencadas e explicadas, todavia nem todos são punidos da mesma forma. Há aqueles denominados hediondos, que, além dessas características, possuem outras peculiares que lhes atribuem maior reprovabilidade. Compreender seu conceito é crucial para entender a sugestão legislativa.
3.1 O conceito de crimes hediondos.
A lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, que “Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências”, é a lei que trata dos crimes hediondos. Caberia, em tese, ao legislador definir em tal lei o conceito de “crime hediondo”, todavia, conforme pode-se aferir na mesma, não foi feito. Tratou-se, tão somente, a dizer que eram crimes hediondos dez condutas típicas nos incisos do artigo 1º da citada lei. Tal artigo, deve ser dito, embora não traga expresso o conceito de hediondez, nos informa bem mais que o rol que dispõe.
O artigo 1º da lei nº 8.072/90, em poucas palavras, estabelece que é crime hediondo o que está elencado no rol que traz consigo. Tal informação, além de nos informar um rol de crimes hediondos e nos permitir afirmar que é crime hediondo todo crime que está elencado na lei de crimes hediondos, nos permite definir afirmar que o Brasil adotou o Sistema Legal para a definição de crimes hediondos. Diferentemente do Sistema Judicial, em que cabe ao Juiz determinar frente o caso se trata ou não de um caso de hediondez, e do Sistema Misto, em que há um rol exemplificativo, o Sistema Legal adotado pelo Brasil determina que só há hediondez se o crime está incluído no rol taxativo de crimes hediondos. Tal sistema, portanto, além de garantir maior segurança jurídica, prestigia nitidamente o princípio da legalidade. Portanto, pode-se dizer que crime hediondo, sob uma perspectiva legalista e estrita, é aquele incluído no rol taxativo de crimes hediondos. Contudo, sendo crime hediondo o que a lei traz como hediondo em rol taxativo, o que tornaria uma conduta diferir das demais a ponto de ser incluída no citado rol?
Para responder o ponto acima elencado, faz-se necessária a conceituação de hediondez. Hediondez é a característica de ser hediondo, isto é, aquilo que causa maior repulsividade, repugnância, asco, reprovação. É hediondo, portanto, o crime que causa maior repulsa à sociedade, tendo, portanto, maior culpabilidade. Frise-se que todo crime gera repulsa, todavia, os crimes definidos como hediondos possuem a capacidade de gerar uma maior repulsividade. Por ser mais reprovável e condenável, tem maior culpabilidade, portanto as respostas estatais, obedecendo o princípio da proporcionalidade, devem ser naturalmente maiores.
Maggiore lecionou que crime, “puede definirse em sentido formal (jurídico-dogmático) y em sentido real (ético-histórico). En la primeira acepcion, se llama delito toda accioón legalmente punible. En el segundo significado, delito es toda accion que ofende gravemente el orden ético-jurídico y por esto merece aquella grave sanción que es la pena. En outros términos: delito es un mal que debe ser retribuído com outro mal, para la reintegracion del orden ético-jurídico ofendido”. Este “mal que debe ser retribuído com outro mal” não pode ser de qualquer forma, devendo, pelo contrário, obedecer o princípio constitucional da proporcionalidade. Assim, quanto mais grave um crime, maior o “mal” que deve lhe ser aplicado como pena. Assim, conforme dito, sendo os crimes hediondos mais condenáveis, tratam-se de “maus maiores”, que devem, portanto, ter maior penalidade. Por ser mais reprovável e condenável, tem maior culpabilidade, portanto as respostas estatais, obedecendo o princípio da proporcionalidade, devem ser naturalmente maiores.
Assim posto, no intuito de compreender a sugestão legislativa nº 7/2017, deve-se questionar se a “falsa acusação de estupro” é um mal tão reprovável a ponto de ser incluído no rol taxativo de crimes hediondos. Antes de responder a tal questionamento, deve-se compreender o conceito de estupro bem como, em face da possível atecnia do autor da sugestão, o conceito de estupro de vulnerável no intuito de entender a reprovabilidade das mesmas e o quão grave é acusar falsamente alguém de tais crimes.
3.2 Estupro e estupro de vulnerável: conceito, história e reprovabilidade social.
Há muito que a dignidade sexual é um bem juridicamente considerado importante, sendo a sua ofensa punida em diversos povos na história da humanidade. Conforme leciona Bitencourt[10], “Os povos antigos já puniam com grande severidade os crimes sexuais, principalmente os violentos, dentre os quais se destacava o de estupro. Após a Lex Julia de adulteris (18 d.C.). no antigo direito romano, procurou-se distinguir adulterius e stuprum, significando o primeiro a união sexual com mulher casada, e o segundo, a união ilícita com viúva. Em sentido estrito, no entanto, considerava-se estupro toda união sexual ilícita com mulher não casada. Contudo, a conjunção carnal violenta, que ora se denomina estupro, estava para os romanos no conceito amplo do crimen vis, com a pena de morte”.
No Direito brasileiro o crime de estupro está previsto no artigo 213 do Código Penal que tipifica como crime “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” com a pena de reclusão prevista de seis a dez anos.
Sua reprovabilidade, deve ser dita, é gigantesca em toda a sociedade e uma excelente prova disso é o fato de, em primeiro turno pelo Senado, ter sido aprovada a Proposta de Emenda à Constituição nº 64/2016, que “Altera o inciso XLII do art. 5º da Constituição Federal, para tornar imprescritíveis os crimes de estupro”. Além disso, a lei nº 8.072/90, que dispõe sobre a lei de crimes hediondos, estabelece, no rol taxativo do artigo primeiro, que, em seu inciso “V”, que é crime hediondo o “estupro (art. 213, caput e §§ 1o e 2o)”. Versando sobre a reprovabilidade das condutas, vale aqui afirmar o posicionamento do próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos Habeas Corpus nº 89.554 e nº 90.706, reconhecendo a hediondez das condutas, conforme pode-se aferir, in verbis:
Ementa: Habeas Corpus – Estupro – Atentado violento ao pudor – Tipo penal básico ou forma simples – Inocorrência de lesões corporais graves ou do evento morte – Caracterização, ainda assim, da natureza hedionda de tais ilícitos penais (Lei nº 8.072/1990) – Pedido indeferido. – Os delitos de estupro e de atentado violento ao pudor, ainda que em sua forma simples, configuram modalidades de crime hediondo, sendo irrelevante que a prática de qualquer desses ilícítos penais tenha causado, ou não, lesões corporais de natureza grave ou morte, que traduzem, nesse contexto, resultados qualificadores do tipo penal, não constituindo, por isso mesmo, elementos essenciais e necessários ao reconhecimento do caráter hediondo de tais infrações delituosas. Precedentes. Doutrina. (STF - HC: 89554 DF, Relator: CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 06/02/2007, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 02-03-2007 PP-00046 EMENT VOL-02266-04 PP-00673 RT v. 96, n. 861, 2007, p. 510-513 LEXSTF v. 29, n. 341, 2007, p. 432-438 RCJ v. 21, n. 134, 2007, p. 123-124).[11]{C}
Ementa: Habeas Corpus. Processual Penal. Atentado Violento ao Pudor. Forma Simples. Crime Hediondo. Livramento Condicional. Requisito objetivo não satisfeito. Exigência. Cumprimento de 2/3 da pena. Ausência de plausibilidade jurídica incontestável. Habeas corpus denegado. 1. A decisão do Superior Tribunal de Justiça, questionada neste habeas corpus, está em perfeita consonância com o entendimento deste Supremo sobre a hediondez dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, mesmo que praticados na sua forma simples. Precedentes. 2. Não há sustentação jurídica nos argumentos apresentados pelo Impetrante para assegurar a concessão do benefício de livramento condicional ao Paciente, pois não satisfeito o requisito objetivo de cumprimento de 2/3 da pena imposta. 3. Habeas corpus denegado. (STF - HC: 90706 BA, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 06/03/2007, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 23-03-2007 PP-00108 EMENT VOL-02269-03 PP-00614 LEXSTF v. 29, n. 344, 2007, p. 493-497).[12]{C}
Nos presídios a reprovabilidade toma níveis criminalmente brutais e desumanos, onde, conforme pode-se ver em incontáveis casos, estupradores são esquartejados, decapitados e condenados a diversas penas de morte que nem de longe respeitam a dignidade da pessoa humana ou permitem acreditar que qualquer dos envolvidos possuem traços de humanidade.
Se estupro é, conforme exposto, uma situação repulsiva a ponto de compôr o rol taxativo de crimes hediondos, o estupro de vulnerável mostra-se como uma situação ainda mais asquerosa, conforme pode-se aferir até por sua penalidade. É bem verdade que a sugestão legislativa nº 7/2017 trata, segundo expresso, tão somente de situações que envolvem estupro, todavia, tendo em vista a possibilidade de atecnia na grafia da proposta, que se agrava até pela suposta matéria base envolver casos de falsos estupros de vulneráveis, faz-se pertinente que se fale sobre o presente tema, por ser, além de conexo, uma possível intenção do autor da proposta.
O crime de estupro de vulnerável está previsto no artigo 217-A do código penal que tipifica como crime “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos” com a pena de reclusão prevista de oito a quinze anos. Vale ainda frisar que, conforme determina o parágrafo primeiro, “Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.
Sendo crimes historicamente tão reprováveis, é natural e óbvia a compreensão que acusar alguém dessas condutas é muito mais grave que acusar alguém de condutas não inclusas no rol taxativo de hediondez, como furto simples. Nessa perspectiva, é natural deduzir também que acusar falsamente alguém dessas condutas é muito mais reprovável do que acusar falsamente alguém de outros crimes.
Um exemplo clássico das páginas policiais que pode-se compreender o dito é o caso da Escola Base, onde os acusados, antes do julgamento jurídico em que sua inocência fora comprovada, foram “condenados pela população”. Nesse caso, ocorrido em março de 1994, quatro pessoas foram acusadas de abuso sexual de 4 alunos menores de uma instituição de ensino, quais sejam Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada, proprietários da Escola base, bem como a professora Paula Milhin Alvarenga e seu esposo Maurício Monteiro de Alvarenga. As consequências das acusações que foram comprovadas inverídicas de estupro nesse caso foram severas. Segundo uma matéria de Diego Bayer e Bel Aquino[13] pela revista Carta Capital, “Ayres está com dívidas financeiras, sofre com problemas emocionais e não consegue dormir à noite, enquanto sua esposa, Maria Aparecida, teve seu sonho exterminado por falsas acusações. Saulo e Mara Nunes também enfrentam problemas financeiros pela contratação de advogados… Paula e Maurício Alvarenga se divorciaram. Ele sofreu com Síndrome do Pânico, tinha medo de sair à rua e, para encontrar seu advogado, montava esquemas de disfarce por medo de ser reconhecido. Paula foi morar com suas filhas na casa da mãe, está 60kg acima do peso, sofre de depressão e tem um emprego onde recebe salário mínimo… nunca mais conseguiu emprego como professora – ninguém confia em uma suspeita de abuso sexual infantil. Seu filho, durante todo o sensacionalismo da imprensa, começou a comer com as mãos, pois soube que era assim que seus pais comeriam quando fossem presos”.
Antes de entrar no mérito da sugestão legislativa nº 7/2017, de se deve ou não tornar as “acusações de crime falsa de estupro” crimes hediondos, deve-se, além dos conceitos expostos, explanar o que seria uma “acusação falsa” bem como, em face da possível atecnia do autor da sugestão, o conceito dos crimes de calúnia, denunciação caluniosa bem como o de falsa acusação de crime.