A audiência de custódia ou apresentação veio a surgir originariamente como direito humanitário no plano jurídico internacional ao propiciar aos encarcerados a garantia de se apresentarem, sem demora, à autoridade judiciária competente, o qual velará pelo fiel cumprimento de outras garantias criminais.
A audiência de custódia passou a assegurar a qualquer pessoa detida ou retida o direito de ser conduzida, sem demora, à presença de autoridade judiciária, por força da Convenção Americana de Direitos Humanos, promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 678[1]/92, artigo 7º, item 5[2].
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n° 226, de 12 de dezembro de 1991, promulgado pelo Decreto nº 592[3], de 06 de julho de 1992, no artigo 9º, item 3[4], também reconhece a garantia aos encarcerados à audiência de custódia.
Inegável o reconhecimento da natureza jurídica como direito humano conferido à audiência de custódia, na medida em que serve, em conjunto com os demais direitos e garantias universalmente reconhecidos ao homem, como mecanismo capaz de assegurar a concretização da dignidade da pessoa humana, evitando-se abusos e arbitrariedades das autoridades policiais, além de preservar a integridade física, moral e psíquica do preso, auxiliando ainda na avaliação da legalidade da prisão do encarcerado.
Segundo Gilmar Ferreira Mendes[5], os direitos humanos, desde que deixaram os limites circundantes das teorias e argumentações filosóficas e integraram os ordenamentos jurídicos internacionais e nacionais, passaram a ter força normativa inquestionavelmente, não se tratando mais de meras reivindicações éticas ou políticas.
Há, inclusive, quem invoque a existência de limites heterônomos[6] ao poder constituinte originário de forma a condicionar o seu exercício à observância das normas regentes de Direito Internacional, notadamente em face dos direitos humanos, sustentando que uma Constituição não poderá ser criada ao arrepio dos preceitos normativos universais que conferem dignidade à pessoa humana, tratando-se, assim, de verdadeiros limites materiais ou substanciais heterônomos que obrigatoriamente deverão ser respeitados. Nesse sentido, convém destacar o escólio de Marcelo Novelino[7], conforme entendimento abaixo transcrito:
“Os limites heterônomos são provenientes da conjugação com outros ordenamentos jurídicos como, por exemplo, as obrigações impostas ao Estado por normas de direito internacional. A globalização e a crescente preocupação com os direitos humanos são fenômenos que têm contribuído para relativizar a soberania do Poder Constituinte”.
Ressalta ainda Luís Roberto Barroso[8] que, após a Segunda Guerra Mundial, a doutrina reconhece a proeminência dos direitos humanos, conformando-se em exigência mínima a ser observada pelos Estados, admitindo, assim, a existência de um conjunto mínimo de direitos universais que servem para proteger as pessoas contra a violência e opressão, consoante escólio abaixo transcrito:
“Uma última limitação que a doutrina passou a reconhecer de maneira praticamente unânime nos últimos tempos decorre dos princípios do direito internacional e, especialmente, dos direitos humanos. Após a Segunda Guerra Mundial, notadamente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, passou-se a reconhecer aqueles direitos como um patamar mínimo a ser observado por todos os Estados na organização do poder e nas suas relações com seus cidadãos. A face virtuosa da globalização é a difusão desses valores comuns, o desenvolvimento de uma ética universal. Uma das questões cruciais do Direito, na atualidade, é equacionar, de maneira equilibrada, a tensão entre o universalismo – isto é, o reconhecimento de que há um conjunto mínimo de direitos universais, que devem proteger as pessoas contra a violência e a opressão – e o multiculturalismo, que procura resguardar a diversidade dos povos e impedir a hegemonia das culturas que se tornaram mais poderosas em determinada quadra histórica”.
Inexistem dúvidas que as normas convencionais previstas no Pacto de São José da Costa Rica, artigo 7º, item 5, e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 9º, item 3, tratam a audiência de custódia como verdadeira garantia convencional assegurada aos encarcerados de forma a protegê-los da violência, opressão e arbitrariedade.
Sedimenta-se também que os direitos e garantias expressos na Constituição Federal não excluem outros decorrentes dos Tratados e Convenções Internacionais em que o Estado Brasileiro seja parte, por força do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, consagrando, assim, o princípio da não tipicidade constitucional.
O princípio da não tipicidade constitucional permite o reconhecimento de outros direitos e garantias prescritos nos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos, prestando-se, em perspectiva eminentemente material, como verdadeiro bloco de constitucionalidade, cuja observância se fará obrigatória.
Na concepção científica de Uadi Lammêgo Bulos[9], o princípio da não tipicidade constitucional expressamente prevista no § 2º, do artigo 5º, da Constituição Federal, além de propiciar uma abertura material quanto à identificação de outras liberdades públicas, também viabiliza o ingresso, no ordenamento jurídico doméstico, de outras normas, cujo reconhecimento as identificará também como normas materialmente constitucionais, para tanto, leciona o seguinte entendimento:
“Na realidade, o § 2º do art. 5º constitui um portal que propicia o ingresso, no ordenamento jurídico, de normas materialmente constitucionais – constatação extraída de uma exegese sistemática da Carta de 1988, que procura conceber os direitos fundamentais de mãos dadas com o princípio da dignidade humana (CF, art. 1º, III).
Assim, o § 2º do art. 5º é um cânone de exegese para otimizar tratados internacionais de direitos humanos, incorporados à ordem jurídica brasileira, numa perspectiva material, consentânea ao bloco de constitucionalidade da Carta de 1988”.
A reforma constitucional conferida pela Emenda Constitucional nº 45/2004 acentuou, ainda mais, a importância das normas oriundas dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, na medida em que, uma vez aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais, conforme § 3º, do artigo 5º.
A Emenda Constitucional nº 45/2004 veio a introduzir, no ordenamento jurídico doméstico, a cláusula de equivalência ou equiparação dos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos às Emendas Constitucionais, consagrando a natureza formal e materialmente constitucional das Convenções Internacionais de Direitos Humanos.
Surge, a partir da reforma constitucional impelida pela Emenda nº 45/2004, qualificado questionamento quanto à identificação do status normativo formal conferido às Convenções e Tratados Internacionais de Direitos Humanos aprovados sem o quórum de três quintos dos votos, bem como daqueles anteriores à referida reforma constitucional.
Emerge, assim, de referida discussão quatro teorias sobre o possível status normativo conferido às Convenções Internacionais de Direitos Humanos aprovados sem o quórum qualificado de três quintos, bem como daqueles anteriores à referida reforma constitucional, segundo Pedro Lenza[10] e Uadi Lammêgo Bulos[11]: (1ª) natureza supraconstitucional perfilhada por Celso Duvivier de Albuquerque Mello; (2º) natureza constitucional, adotada por Antônio Augusto Cançado Trindade e Flávia Piovesan; (3º) natureza supralegal, defendida por Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco e (4º) natureza legal, adotada por Xavier de Albuquerque.
Inobstante a inegável identificação dos direitos e garantias proclamados nos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos como normas materialmente constitucionais, percebe-se que, formalmente, prevaleceu a teoria da supralegalidade, notadamente das normas convencionais incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiros anteriores à Emenda Constitucional nº 45/2004, encontrando-se aí incluídas as normas prescritas na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
O Órgão Plenário do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do histórico julgamento do Recurso Extraordinário n.º 466.343[12]/SP, expressamente reconheceu que os tratados de direitos humanos possuem hierarquia superior à lei ordinária, ostentando status normativo supralegal, razão pela qual têm efeito paralisante sobre a atividade do legislador ordinário que venha a contrariar as disposições normativas convencionais, bem como invalidam toda e qualquer ato normativo infraconstitucional que lhes sejam contrários.
Convém destacar, nesse especial sentido, o voto vencedor do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, proferido em sede de julgamento do Recurso Extraordinário 466.343/SP, sobre a nova qualificação das normas convencionais de direitos humanos, consoante disposição abaixo:
“Por conseguinte, parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade.
Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana”.
Nessa linha de raciocínio, Alexandre de Moraes[13] destaca que o Supremo Tribunal Federal veio a manter a supremacia das normas constitucionais sobre as normas prescritas no Pacto de São José da Costa Rica, porém inclinou-se pela interpretação da revogação das normas infraconstitucionais que sejam contrárias às normas convencionais aí estabelecidas.
Constata-se, portanto, que a audiência de custódia, também denominada audiência de apresentação, prevista conjuntamente na Convenção Americana de Direitos Humanos, promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 678/92, artigo 7º, item 5, e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n° 226/91, promulgado pelo Decreto nº 592/92, no artigo 9º, item 3, constitui norma convencional de direitos humanos, cujo conteúdo é materialmente constitucional, ostentando formalmente o status normativo supralegal, com capacidade de paralisar a atividade do legislador ordinário que venha a contrariar referidas disposições normativas convencionais, bem como invalidar toda e qualquer ato normativo infraconstitucional que lhes sejam contrárias.
Indubitável também que a audiência de custódia apresenta natureza jurídica de verdadeira garantia convencional assegurada aos encarcerados, pois lhes proporcionam a proteção de inúmeros outros direitos e garantias criminais do preso.
A audiência de custódia notoriamente será capaz de evitar abusos e arbitrariedades das autoridades policiais, além de preservar a integridade física, moral e psíquica do preso, auxiliando ainda na avaliação da legalidade da prisão do encarcerado, prestando-se também como importante mecanismo processual de combate à tortura e maus tratos praticados contra os encarcerados por atividade de agentes policiais, especialmente em função da necessidade de apresentação do detido, em curto espaço de tempo, à autoridade judiciária competente.
Cuida-se, portanto, de verdadeira garantia convencional de direitos humanos, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com status normativo supralegal, cuja força normativa vem se destacando no cenário jurídico brasileiro, notadamente por promover a maximização da eficácia das normas constitucionais, mesmo porque o conteúdo das normas convencionais de direitos humanos materialmente se assemelham, em gênero, grau e intensidade, com os direitos fundamentais, segundo entendimento de Rafael Barreto[14]: “apesar da variação de plano de positivação não há, em verdade, diferença de conteúdo entre direitos humanos e os direitos fundamentais, eis que os direitos são os mesmos”.
As normas convencionais de direitos humanos instituidoras da audiência de custódia proporcionam, assim, em elevada medida, a maximização da eficácia das normas constitucionais, na medida em que concretizam as garantias fundamentais criminais do cidadão, pois asseguram ao encarcerado o direito de se apresentar diretamente à autoridade judiciária, sem demora, possibilitando o emprego de medidas de descarceirização, a avaliação da legalidade da prisão, além da preservação e concretização de outras inúmeras garantias fundamentais asseguradas ao preso, tais como: (a) o relaxamento imediato da prisão ilegal pela autoridade judiciária; (b) a garantia de liberdade provisória, com ou sem fiança, nas situações admitidas em lei; (c) o respeito à integridade física e moral do preso; (d) a assistência técnica de advogado ou defensor público; (e) a inadmissibilidade de provas ilícitas; (f) o direito de não produzir provas contra si mesmo; (g) a identificação pelos responsáveis por sua prisão e (h) a comunicação à família do preso e ao juiz acerca da prisão e do local em que se encontra o detido, garantias essas respectivamente previstas no artigo 5º, incisos LXV, LXVI, XLIX, LXIII, LVI, LXIV e LXII, da Constituição Federal.
Convém ainda destacar que a autoridade judiciária, na realização da audiência de custódia, velará pela observância estrita de todos os direitos e garantias fundamentais do preso, assim como o Ministério Público e Defensoria Pública.
Inobstante a ausência de disposição normativa legal sobre a matéria, verifica-se que houve a regulamentação da audiência de custódia por ato do Conselho Nacional de Justiça, mais precisamente por meio da Resolução nº 213[15], de 15 de dezembro de 2015, o qual determina que:
“toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão”.
A existência, a validade e a eficácia das normas instituidoras da audiência de custódia, portanto, apresentam-se notórias, sendo obrigatória a aplicação das regras aí instituídas, notadamente por trazer inúmeros benefícios como a maximização da eficácia das normas constitucionais, a concretização das garantias fundamentais criminais do cidadão e a observância estrita pela autoridade judiciária, Ministério Público e Defensoria Pública dos direitos e garantias fundamentais do encarcerado.
Não bastassem as inúmeras vantagens da realização da audiência de custódia, a doutrina pátria mais autorizada revela outros inúmeros benefícios, nesse sentido, transcreve-se o escólio de Renato Brasileiro de Lima[16], consoante disposição abaixo:
“(...) o objetivo precípuo desta audiência de custódia diz respeito não apenas à averiguação da legalidade da prisão em flagrante para fins de possível relaxamento, coibindo, assim, eventuais excessos tão comuns no Brasil como torturas e/ou maus tratos, mas também o de conferir ao juiz uma ferramenta mais eficaz para aferir a necessidade da decretação da prisão preventiva (ou temporária) ou a imposição isolada ou cumulativa das medidas cautelares diversas da prisão (CPP, art. 310, incisos I, II e III), sem prejuízo de possível substituição da prisão preventiva pela domiciliar, se acaso presentes os pressupostos do art. 318 do CPP”.
A audiência de custódia, verdadeira garantia convencional assegurada ao preso, apresentará, assim, inúmeras vantagens, não somente ao preso, mas também a regularidade do processo e à justiça da decisão, na medida em que impedirá a continuidade de uma prisão ilegal, notadamente nas situações de flagrante preparado e forjado, permitindo, ainda, a concessão de liberdade provisória àqueles que cumprirem os requisitos legais.
Note-se que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento Fundamental nº 347[17]/DF, ao reconhecer o “Estado de Coisas Inconstitucional” no sistema penitenciário brasileiro, em razão das condições desumanas e degradantes de custódia de presos e da violação massiva de seus direitos fundamentais, veio a assegurar o direito ao preso, não somente à integridade física e moral, mas também à audiência de custódia junto à autoridade judiciária competente a ser realizada no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas, conforme ementa do julgado abaixo:
CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”. FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão. (Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 MC/DF, Relator: Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, divulgado no Diário da Justiça Eletrônico em 18/02/2016, publicado em 19/02/2016).
Observa-se que o sistema penitenciário brasileiro, a longa data, apresenta condições desumanas e degradantes de custódia dos presos, cuja violação qualificada dos direitos fundamentais dos encarcerados notoriamente contraria valores, fundamentos, princípios, direitos e garantias constitucionais dos presos, qualificando-se, segundo o Supremo Tribunal Federal, em verdadeira situação de “Estado de Coisas Inconstitucional”.
A audiência de custódia, nessa perspectiva, servirá também como mecanismo útil ao combate do “Estado de Coisas Inconstitucional”, na medida em que proporcionará a redução significativa da superpopulação carcerária, bem como viabilizará um desafogamento do sistema penitenciário nacional, além de garantir ao encarcerado o livramento das condições degradantes e aviltantes das penitenciárias quando comportar relaxamento de prisões ilegais (CF, art. 5º, inc. LXV), concessão de medidas cautelares diversas da prisão (CPP, art. 319), concessão de liberdade provisória, uma vez cumpridos os requisitos legais (CF, art. 5º, inciso LXVI), bem como a conversão da prisão em flagrante em prisão domiciliar quando autorizado por lei (CPP, art. 318).
Outra vantagem significativa proporcionada pela audiência de custódia consiste na coibição de eventuais maus-tratos contra os encarcerados, bem como a tentativa de impedir a prática de tortura, tratamento cruel, degradante e desumano executado por policiais, agentes penitenciários e agentes do sistema socioeducativo do Brasil contra os detidos, conforme notícia encaminhada pela Human Rights Watch ao Conselho Nacional do Ministério Público[18], cujos dados alarmantes evidenciam o seguinte conteúdo:
“Em julho de 2014, a Human Rights Watch enviou comunicação às autoridades brasileiras (PRESI/CNMP n.º 523/2014) manifestando suas preocupações em relação à prática recorrente de tortura e tratamento cruel, desumano e degradante por policiais, agentes penitenciários e agentes do sistema socioeducativo no Brasil. Baseada em pesquisa realizada e comprovada por depoimentos de testemunhas, filmagens, fotografias, laudos periciais, decisões judiciais e outros documentos, constatou que as atrocidades ocorrem em diversos estados brasileiros.
Ainda, verificou que espancamentos, ameaças de agressões físicas e de violência sexual, choques elétricos, sufocamento com sacos plásticos e violência sexual ocorrem justamente nas primeiras 24 (vinte e quatro) horas da custódia policial, geralmente com o objetivo de extrair informações ou confissões das vítimas ou castigá-las por supostos atos criminosos.
De acordo com relatos de integrantes do sistema de justiça entrevistados pela Human Rights Watch, a média temporal para os presos serem conduzidos à presença de um juiz é de 3 (três) meses ou mais, situação de vulnerabilidade que facilita a prática de abusos, dificulta a denúncia às autoridades competentes, compromete a colheita ou a preservação de provas e favorece a impunidade.
Esse panorama apresenta dimensões muito mais amplas e complexas. Segundo o documento, “além de violarem os direitos fundamentais de pessoas sob a custódia do Estado, essas graves violações de direitos humanos dificultam o desenvolvimento de uma relação de cooperação e diálogo entre a polícia e as comunidades, o que prejudica investigações criminais e o combate à criminalidade de maneira geral”.
Observe que a tentativa de extrair informações e confissões de presos em situação de tortura e maus-tratos efetuados por agentes policiais quando da realização das prisões em flagrante invalidam os elementos de informativos daí extraídos, não se prestando como provas, nem mesmo indiciárias, uma vez que inadmissível o emprego de provas ilícitas ou daí derivadas, razão pela qual imprescindível e relevante a audiência de custódia, pois, nessas circunstâncias, a autoridade judiciária, ao constatar a situação de tortura e maus-tratos empregados para obtenção de confissão e informações, deverá invalidar referida confissão do preso realizada perante a autoridade policial, bem como cassar as provas obtidas a partir das informações daí extraídas, impedindo, assim, que eventual prova ilícita ou derivada da ilícita venham a fazer parte integrante do processo.
Nessa perspectiva, ainda, a apresentação imediata do preso à autoridade judiciária competente, no prazo de 24 horas, em obediência a Resolução nº 213/2015, art. 1º, caput, do Conselho Nacional de Justiça, e decisão normativa do Supremo Tribunal Federal na ADPF 347/DF, provocará a significativa redução de abusos de agentes policiais, bem como assegurará a integridade física, moral e psíquica do preso, além da concretização do devido processo legal, evitando que provas ilícitas ou daí derivadas venham a integrar o processo.
Importante destacar também que a audiência de custódia tem impacto direto no desafogamento do sistema penitenciário brasileiro, na medida em que proporciona o relaxamento de prisões ilegais, bem como a concessão de liberdade provisória a quem venha a cumprir concretamente os requisitos legais, tais como os previstos nos artigos 310, inciso III, c.c. parágrafo único (excludentes de ilicitude) e 321 (ausência dos requisitos autorizadores da decretação da prisão preventiva), ambos do Código de Processo Penal, bem como aplicação de outras medidas cautelares diversas da prisão, além da conversão da prisão preventiva em prisão domiciliar, segundo determinação legal prevista, respectivamente, nos artigos 319 e 318, ambos do Código de Processo Penal.
Conclui-se, assim, a existência dos seguintes pontos positivos da audiência de custódia: (1º) maximização da eficácia das normas constitucionais, na medida em que concretizam as garantias fundamentais criminais do cidadão; (2º) efetivação das normas convencionais previstas em Tratados Internacionais de Direitos Humanos, dos quais o Estado Brasileiro é signatário; (3º) redução da população carcerária e desafogamento do sistema penitenciário nacional que se encontra em situação caótica e falida; (4º) auxílio no combate ao “Estado de Coisas Inconstitucional”, na medida em que provoca a redução significativa da superpopulação carcerária e auxilia no desafogamento do sistema penitenciário nacional; (5º) averiguação mais substantiva da legalidade da prisão em flagrante pela autoridade judiciária; (6º) relaxamento de prisões ilegais, notadamente daquelas oriundas de flagrante preparado e forjado; (7º) concessão imediata de liberdade provisória a quem venha a cumprir concretamente os requisitos legais, tais como os previstos nos artigos 310, inciso III, c.c. parágrafo único (excludentes de ilicitude) e 321 (ausência dos requisitos autorizadores da decretação da prisão preventiva), ambos do Código de Processo Penal; (8º) possibilidade de emprego imediato das medidas cautelares diversas da prisão, segundo o artigo 319, do Código de Processo Penal; (9º) possibilidade da conversão da prisão preventiva em prisão domiciliar, segundo artigo 318, do Código de Processo Penal; (10º) combate à tortura e maus tratos aos presos; (11º) preservação da integridade física, psíquica e moral do preso, na medida em que deverá ser apresentado à autoridade judiciária competente, dentro do prazo de 24 (vinte e quatro) horas, em obediência a Resolução nº 213/2015, artigo 1º, caput, do Conselho Nacional de Justiça, e cumprimento à decisão normativa do Supremo Tribunal Federal proferida na ADPF 347/DF; (12º) impedimento de que eventual prova ilícita ou derivada da ilícita venham a fazer parte integrante do processo, notadamente daquelas obtidas a partir de confissão extraída por meio de tortura ou maus-tratos ao preso, bem como de informações extraídas por referidos meios espúrios.
Em que pesem as inúmeras vantagens da audiência de custódia, persistem ainda inúmeros desafios de ordem administrativa, estrutural, orçamentária e jurídica para sua efetiva implementação no plano fenomenológico.
O primeiro desafio residirá no cumprimento do exíguo prazo de 24 (vinte e quatro) horas para a realização da audiência de custódia com a participação conjunta de membros do Ministério Público e Defensoria Pública, visto que, a depender da localidade em que se encontre a seção, subseção judiciária, comarca ou distrito, será necessário percorrer significativa distância até o encontro junto à autoridade judiciária, por vezes, centenas de quilômetros, especialmente em função da grande extensão do território nacional.
Frise-se ainda que há localidades no território nacional cuja acessibilidade se apresenta extremamente restrita ou difícil, como ocorre nas regiões interioranas do norte e nordeste, situação em que justificaria a concessão de maior prazo de apresentação da pessoa custodiada à autoridade judicial.
Outra dificuldade de ordem material é a deficiência do quadro dos membros integrantes da magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública capaz de atender satisfatoriamente as inúmeras audiências de custódia que serão deflagradas a partir da determinação prevista na Resolução nº 213/2015, artigo 1º, caput, do Conselho Nacional de Justiça[19], e cumprimento à decisão normativa do Supremo Tribunal Federal proferida em sede da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347/DF[20].
Não fossem suficientes os óbices de ordem temporal e de recursos humanos, percebem-se também graves implicações de ordem orçamentária, cuja repercussão afetará substancialmente a verba orçamentária destinada aos órgãos e instituições aí envolvidos, na medida em que serão necessários investimentos em infraestrutura adequada à realização das audiências de custódia, cobertura de despesas com deslocamento de magistrados, promotores, defensores públicos e servidores, dispêndio financeiro com a segurança, deslocamento e custódia de presos, especialmente dos encarcerados com elevada periculosidade, envolvidos em organizações criminosas, além dos custos de designações sucessivas para o exercício cumulativo de ofícios pelos membros integrantes da magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública, notadamente nas regiões mais interioranas do país.
Não bastassem os óbices de ordem temporal, administrativo e orçamentário, percebem-se também duas dificuldades de ordem jurídica: (1º) as consequências processuais oriundas da não realização da audiência de custódia no prazo de até 24 (vinte e quatro) horas e (2º) a possibilidade do emprego da oitiva na audiência de custódia como meio de prova.
Não se tem conhecimento ainda de quais serão as consequências processuais oriundas do não cumprimento do prazo de 24 (vinte e quatro) horas para a realização da audiência de custódia: (a) se conduziria à ilegalidade da prisão em flagrante com o consequente relaxamento da prisão ou (b) mera irregularidade sem maiores consequências, conferindo-se tratamento jurídico como verdadeiro prazo impróprio no processo penal.
A doutrina mais abalizada também tem invocado sérios questionamentos nesse especial sentido, para tanto, Renato Brasileiro de Lima[21] levanta a seguinte questão sobre referida matéria:
“Por fim, resta saber quais serão as consequências decorrentes da não realização da audiência de custódia em até 24 (vinte e quatro) horas após a prisão em flagrante. Em síntese, diante da carência de magistrados, membros do Ministério Público, Defensores Públicos e até mesmo advogados em diversas comarcas do Brasil afora, será que os Tribunais terão a coragem de dizer que se trata, o prazo de 24 (vinte e quatro) horas, de prazo próprio, cujo descumprimento implica o reconhecimento da ilegalidade da prisão em flagrante, autorizando, por consequência o relaxamento da prisão? Ou se, na verdade, valendo-se da premissa de que a contagem para o excesso de prazo na formação da culpa é global, e não individualizado, acabará prevalecendo a tese de que eventual excesso na apresentação do preso para fins de realização da audiência de custódia pode ser compensando durante o curso do processo judicial, transformando-se, assim, o referido prazo, em mais um prazo impróprio constante do CPP, funcionando como mero balizador para os operadores do Direito, mas cuja inobservância não geral qualquer sanção?
Nota-se também a presença de séria discussão acerca da viabilidade do emprego da oitiva na audiência de custódia valer como meio de prova apto a deflagração de efeitos no processo penal, notadamente quanto às informações reveladas voluntariamente pelo próprio preso perante à autoridade judiciária.
O Projeto de Lei do Senado nº 554, apresentado em 06/09/2011 pelo Senador Antônio Carlos Valadares, com objetivo de alterar a redação do § 1º, do artigo 306, do Código de Processo Penal, cujas emendas parlamentares vieram a acrescentar os parágrafos 3º ao 15, ao Código de Processo Penal, trouxe a vedação expressa da oitiva na audiência de custódia ser empregada como meio de prova contra o próprio depoente.
Segundo a redação final conferida ao Projeto de Lei do Senado nº 554/2011[22], será necessário que a oitiva seja registrada em autos apartados, não sendo possível a utilização da oitiva como meio de prova contra o depoente, mesmo porque o ato se restringirá à avaliação da legalidade e necessidade da prisão, a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos e a observância aos direitos assegurados ao preso e ao acusado, segundo a redação dada ao parágrafo 7º, do artigo 306, do Código de Processo Penal, conferida pelo Projeto de Lei do Senado nº 554/2011.
Em que pese o entendimento conferido pelo Senado Federal, cujo projeto de lei já foi encaminhado à Câmara dos Deputados, observa-se que o Conselho Nacional do Ministério Público possui entendimento notoriamente contrário, recomendando que o termo de audiência de custódia, além de vir a integrar os autos do processo penal, seja também empregado como legítimo meio de prova, desde que avaliado em conjunto com os outros elementos de prova.
A propósito, vislumbrando melhor compreensão quanto ao entendimento sufragado pelo Conselho Nacional do Ministério Público a respeito da oitiva prestar-se como meio de prova legítimo a ser empregado no processo penal, transcreve-se trecho da Nota Técnica nº 06/2015[23], lançada pelo Plenário do CNMP, in verbis:
“A alteração legislativa no Código de Processo Penal para prever o interrogatório como último ato do processo antes do julgamento e a compreensão de que é meio de defesa, e não de prova, representaram avanço significativo na observância dos direitos fundamentais do acusado no processo penal, já que corporificam o intuito de evitar agressões tendentes a obter a sua confissão já no nascedouro do processo.
Tais fatos, porém, não ensejam qualquer óbice ao reconhecimento da validade jurídica do depoimento prestado na audiência de custódia, a fim de que sirva de subsídio ao julgamento de mérito a ser realizado, desde que avaliado conjuntamente com os outros elementos de prova coligidos, prestigiando-se, assim, o princípio do livre convencimento motivado do juiz que vigora no ordenamento jurídico pátrio.
Note-se que não se está, em absoluto, a antecipar o interrogatório, claro que resta que o preso será indagado apenas em relação às matérias referidas, não se ampliando a perquirição a todos os fatos que implicaram a sua prisão. Mas as informações prestadas pelo preso não podem ser, simplesmente, desconsideradas.
Por outra banda, porém, certamente não há sentido em que seja o depoimento autuado em apartado e completamente desprezado para o julgamento do processo, uma vez que se cuida de ato oficial e, mesmo que pré-processual, já produzido sob o viés do contraditório, com a observância da ampla defesa, vez que se revela indispensável a presença de defesa técnica.
Ora, a jurisprudência atual admite que até mesmo o mero depoimento em sede policial, sem a presença de advogado ou defensor público, pode, conjuntamente com outros elementos de prova, embasar uma decisão condenatória, que dirá um ato oficial e com respeito ao contraditório e à ampla defesa.
Por isso, recomenda-se que o termo da audiência de custódia integre os autos do processo penal e que seja suprimida a vedação expressa à sua validade enquanto meio de prova.
A doutrina pátria mais autorizada também revela a predisposição em aceitar a utilização das informações reveladas na audiência de custódia como legítimo e idôneo meio de prova, notadamente em razão dos elementos de informação produzidos na fase de investigação, aí incluído o próprio interrogatório policial, já se prestar como meio idôneo à formação da convicção judicial, desde que avaliado em conjunto com as demais provas produzidas no processo.
A propósito, vislumbrando melhor compreensão quanto ao entendimento doutrinário sobre a matéria ora debatida, convém destacar o escólio de Renato Brasileiro[24], cuja compreensão traz à lume o seguinte esclarecimento:
“Por mais que a oitiva do preso durante a audiência de custódia deva ser registrada em autos apartados, parece-nos perfeitamente possível a utilização das informações por ele reveladas a título de prova, nos termos do art. 155, caput, do CPP. Ora, se os elementos de informação produzidos no bojo do inquérito policial, aí incluído o próprio interrogatório policial, podem ser usados para a formação da convicção do magistrado, desde que não exclusivamente, como se pode cogitar em descartar o termo da audiência de custódia, produzido na presença do Juiz, do Promotor de Justiça e do Defensor?”
De fato, inexistem maiores impedimentos à admissão da oitiva do depoente como meio de prova legítimo no processo penal, mesmo porque a audiência de custódia viabilizará a oitiva cercada das garantias constitucionais ao contraditório e à ampla defesa, bem como de defesa técnica, além de outras garantias criminais asseguradas ao encarcerado, cuja observância será estritamente assegurada pelo magistrado, Ministério Público e Defensoria Pública, inexistindo, assim, razões ou justificativas à exclusão das informações obtidas na audiência de custódia como meio de prova.
Em face das robustas fundamentações científicas, institucionais, legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais tem-se que, apesar dos inúmeros pontos positivos trazidos pela audiência de custódia, persistem ainda inúmeros desafios à efetiva implementação no plano fenomenológico, entre eles: (a) dificuldades de ordem temporal quanto ao cumprimento da audiência de custódia no exíguo prazo de 24 (vinte e quatro) horas, notadamente nos regiões mais interioranas e de difícil acesso; (b) deficiência do quadro dos membros integrantes da magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública capaz de atender satisfatoriamente às inúmeras audiências de custódia; (c) graves implicações de ordem orçamentária na medida em que serão necessários investimentos em infraestrutura adequada à realização das audiências de custódia, cobertura de despesas com deslocamento de magistrados, promotores, defensores públicos e servidores, dispêndio financeiro com a segurança, deslocamento e custódia de presos, especialmente dos encarcerados com elevada periculosidade, envolvidos em organizações criminosas, além dos custos de designações sucessivas para o exercício cumulativo de ofícios pelos membros integrantes da magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública, notadamente nas regiões mais interioranas do país; além de (d) dificuldades de ordem jurídica quanto a (d.1) identificação das consequências processuais oriundas da não realização da audiência de custódia no prazo de até 24 horas e (d.2) a possibilidade do emprego da oitiva na audiência de custódia como meio de prova.
Inobstante os desafios de ordem administrativa, orçamentária e jurídica, tem-se que as dificuldades de ordem material não podem se prestar como impedimento à realização da audiência de custódia, notadamente por constituir-se em garantia convencional assegurada aos encarcerados capaz de promover a maximização da eficácia das normas constitucionais, a concretização das garantias fundamentais criminais do preso e a efetivação das normas convencionais previstas em Tratados Internacionais de Direitos Humanos, dos quais o Estado Brasileiro é signatário, prestando-se ainda como importante mecanismo de combate ao “Estado de Coisas Inconstitucional”, na medida em que provoca a redução significativa da superpopulação carcerária e auxilia no desafogamento do sistema penitenciário nacional.