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Da autonomia do direito empresarial

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Agenda 06/12/2017 às 12:40

Trata-se de um estudo sobre o atual estado da autonomia formal, substancial e didática do direito empresarial brasileiro, passando pelos Códigos Comercial de 1850 e Civil de 2002, com algumas considerações acerca dos projetos por um novo Código Comercial.

SUMÁRIO - 1. Introdução. 2. O velho Código Comercial de 1850. 3. A Unificação trazida pelo Código Civil de 2002. 4. Conceito de autonomia no Direito. 5. Autonomia do Direito Empresarial. 6. Autonomia formal do Direito Empresarial. 7. Autonomia substancial. 7.1. Critério distintivo da autonomia substancial do Direito Empresarial – a comercialidade ou empresarialidade. 8. Autonomia didática. 9. Conclusão.  10. Referências.


1.      Introdução:

O século passado foi marcado pelas discussões em torno da problemática da unificação versus autonomia no âmbito do direito privado[1]. O pano de fundo dessa discussão era uma Europa atulhada por códigos comerciais, marcados pelo timbre liberal da época, quase todos aderentes à teoria dos atos de comércio. Além disso, a grande maioria desses diplomas mercantis foi promulgada antes dos códigos civis, significando que o direito obrigacional e contratual foi introduzido nos ordenamentos europeus de então por meio dos códigos comerciais, o que contribuiu para sedimentar a clivagem do direito privado entre direito civil e direito comercial.

Num período posterior, as concepções liberais foram perdendo espaço para ideias estatizantes e intervencionistas e, nesse contexto, dos anos 30, surge um movimento de renovação da cultura jurídica que, respeitante ao Direito Comercial, resultou numa mudança de paradigma – carreado primeiramente por Karl Wieland, na doutrina germânica e por Lorenzo Mossa e Alberto Asquini, na doutrina peninsular –, fazendo com que a teoria dos atos de comércio paulatinamente desse lugar à teoria da empresa. Essa novo modelo, à época, impregnado de ideologia estatal, culminou na adoção da teoria dell'impresa pelo Codice Civile unificado de 1942.

No pós-guerra, a discussão na doutrina italiana sobre autonomia do Direito Comercial esvaziou-se, em virtude, de um lado, da unificação da matéria no Codice e, de outro, pela dispersão de matérias jusmercantis em leis especiais, cada qual constituindo um ‘microssistema’ próprio dentro do sistema jurídico, cujo eixo passava a ser não mais o código civil, mas uma constituição.[2]

No Brasil, a problemática europeia reverberou nas ideias de Teixeira de Freitas, Inglez de Souza, Philomeno da Costa e tantos outros[3], marcando a doutrina privatista do século passado.

Carvalho de Mendonça esclarece que:

“O direito comercial e o direito civil são dois sistemas de regras que tiveram o mesmo ponto de partida, seguindo, depois, cada qual, vida autônoma, sem sujeição ou dependência de um para com o outro. [...] No direito privado compreendem-se duas zonas, o direito civil e o direito comercial, cada qual com o seu objeto legalmente especializado; mas, havendo aquele precedido historicamente a este, acumulou em si o fundo comum de todas as noções, que servem de base ou de materiais para as construções jurídicas.”[4]

Já início do século XXI, com o advento do novo Código Civil (CC/02), assim como ocorrido na Itália dos anos quarenta, a discussão arrefeceu, numa aparente vitória da tese unificadora.

Antes dessa ‘vitória’, porém, a questão da especialidade do direito comercial em relação ao direito civil foi examinada por diversos ângulos, com especial enfoque ao direito das obrigações. Tais discussões, no entanto, foram entretidas num cenário que não é mais o de hoje; vale dizer, aquelas discussões não conheceram um personagem, que hoje é fundamental para a compreensão do direito privado: o direito do consumidor. Por essa razão, premissas e conclusões elaboradas no século passado, em que o direito privado era bipartido em matéria civil e matéria comercial, não mais esteiam argumentos para o momento atual, em que o direito privado passa a ser tripartido em direito civil, direito comercial e direito do consumidor.

Daí ressurgirem reavivadas as questões relacionadas à problema da autonomia do Direito Empresarial, especialmente com as recentes proposições de projetos de Código Comercial (CCom) – o PL nº 1572/11, da Câmara dos Deputados e o PLS nº 487/13, do Senado Federal.

Os detratores dos projetos de CCom levantam, dentro outros pontos, dúvidas sobre qual seria, juridicamente, a diferença efetiva entre contratos empresariais e civis, sobre qual seria o papel de um CCom no ordenamento pátrio atual ladeando o CC e o CDC vigentes, sobre qual o critério de aferição apto a discriminar entre as matérias civis e comerciais, etc.

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Tais questões tocam diretamente na temática da autonomia do Direito Empresarial, bem como na sua posição dentro do sistema de direito privado e requerem uma breve análise sobre os impactos do CCom de 1850 e o CC/02 no direito privado pátrio.


2.      O velho Código Comercial de 1850:

O Código Commercial do Império do Brazil (lei nº 556 de junho de 1850[5]) instituiu[6] no país um sistema misto, no qual o Direito Comercial[7] correspondia tanto à disciplina dos atos de comércio, quanto à disciplina dos que faziam do comercio sua profissão habitual. Inspirou-se nas experiências europeias anteriores, os códigos comerciais da França (1807), da Espanha (1829) e de Portugal (1833), absorvendo deles as lições mais bem-sucedidas[8], bem como hauriu de algumas leis inglesas e estadunidenses valiosas contribuições, nomeadamente no que respeita ao direito securitário.

O Código de 1850 compunha-se de três partes: a primeira dedicada ao “comércio em geral”, a segunda, “do comércio marítimo” e, por fim, a terceira, “das quebras”. Tinha ainda um título único, “da administração da justiça nos negócios e causas comerciais”, subdividido em dois capítulos “dos tribunais e juízos comerciais” e “da ordem do juízo nas causas comerciais”[9].

Importante destacar a possibilidade de recurso à “lei da boa-razão” (que, dentre outras disposições, punha o direito romano em plano subsidiário e submetia sua utilização ao filtro da “boa razão das nações civilizadas, cristãs, iluminadas e polidas”) nos casos que o código se mostrasse lacunoso, de modo a integrá-lo, conferindo completude ao ordenamento jusmercantil de então.

Seguindo à lógica da época – de lei substantiva (código, norma material) acompanhada de lei adjetiva (regulamento, norma processual) –, editou-se o Regulamento 737, também de 1850, que fixou a competência processual dos tribunais de comércio[10] existentes à época, adstringindo a jurisdição comercial às causas cujo objeto envolvesse um dos atos de comércio[11] expressos no art. 19 daquele Regulamento – dentre os quais, aliás, já figurava a expressão “empresa”, embora não com o mesmo significado que apresenta hoje.

Duas décadas mais tarde, porém, a jurisdição comercial[12] contenciosa foi extinta, em 1873[13], e, dois anos depois, em outubro de 1875[14], também o foram os próprios tribunais de comércio, substituídos, nas funções administrativas, pelas juntas comerciais.

O Código de 1850, a despeito de sua respeitável qualidade, não se ocupou de regular diversas matérias essencialmente jusmercantis, dando azo à dispersão legislativa que se seguiu no final do séc. XIX e início do séc. XX no Brasil[15].

Com efeito, temas relativos a cooperativas, sociedades limitadas, títulos ao portador e cheques, por exemplo, foram ignorados pelo código. Não bastasse isso, temas que, conquanto fizessem parte do texto originário, acabaram posteriormente sendo retirados dele e disciplinados por leis próprias, especiais: foi o que se deu com, por exemplo, as sociedades anônimas, os seguros, as letras de câmbio, as notas promissórias, os conhecimentos de depósito e transporte, as duplicatas, a falência etc.

A descodificação[16]-[17] que acometeu o Código diminuiu-o a quase metade do seu tamanho original, deixando evidente a necessidade de reforma.

Nessa toada, em abril de 1912, enquanto ainda tramitava no congresso o projeto de código civil (de Clovis Beviláqua), que somente viria à promulgação em 1916, o jurista Inglez de Souza apresentou um projeto para um novo código comercial, composto de seis livros[18]. A empreitada legislativa, contudo, malogrou, em virtude das muitas emendas que a desfiguraram, transformando o que era para ser um código de direito comercial num verdadeiro código de direito privado – fato que, aliás, refletia a posição ideológica do seu autor intelectual, que era defensor da unificação do direito privado[19].

Nas décadas seguintes, outras iniciativas similares tiveram vez, mas nenhuma com sucesso, em razão da tumultuada vida política de então[20].

O Código de 1850, mesmo combalido pelo fenômeno da descodificação, seguiu vigendo como diploma regente da vida comercial brasileira até janeiro 2002, quando então o novo Código Civil, no seu artigo 2.045, revogou definitivamente a primeira parte do vetusto diploma, promovendo a unificação, ao menos em nível formal[21], das obrigações civis e mercantis (no livro I) e regulando o Direito de Empresa (no livro II).

Não obstante os inúmeros ataques que sofreu ao longo de quase 170 anos[22], o inveterado código comercial brasileiro segue ainda hoje em anacrônica vigência, disciplinando o direito marítimo submetido à parte segunda da lei nº 553/1850.


3.      A Unificação trazida pelo Código Civil de 2002:

Com pouco mais de cinco décadas de vigência, o Código Civil de 1916, eminentemente liberal, requer reformas. Assim, em maio de 1969 foi designada comissão para elaboração de projeto de código civil.[23] Após décadas de tramite legislativo, em janeiro de 2002, foi promulgada a lei nº 10.406/02 – fazendo surgir o novo Código Civil. Deu-se, com esse novel diploma, no ordenamento brasileiro, ao menos parcialmente, a unificação formal ou legislativa do direito privado.[24]

O CC/02 não reproduz fielmente o modelo italiano, pois introduz uma parte geral (o que não ocorre na lei italiana) que versa tão somente sobre fontes e interpretação, demonstrando, desse modo, sua intenção de ser uma lei básica, mas não global, de direito privado, apta a disciplinar o âmago das relações privadas, sem ser uma lei omnicompreensiva.[25]

Note-se que “o Código acompanha, portanto, a tese da autonomia substancial do Direito Mercantil e adota o processo de unificação parcial do Direito Privado, na parte relativa ao Direito das Obrigações, deixando para leis esparsas as matérias que reclamam disciplina especial autônoma (in primis, falência, concorrência etc.), certo de que os institutos do chamado Direito Comercial, ainda que normatizado em um Código único, conjuntamente com os de Direito Civil, ou incorporados a legislações extravagantes, sempre serão substancialmente distintos dos de Direito Civil, posto que informados por princípios próprios.”[26]

Com o CC/02 e a consequente adoção definitiva da teoria jurídica da empresa[27] no Brasil, os limites do direito comercial se expandiram.

Se antes a comercialidade era aferida[28] num primeiro momento pelo critério subjetivo (eram submetidos ao direito comercial os atos praticados por quem detivesse a qualidade pessoal de comerciante) e, num segundo momento, pelo critério objetivo (eram assujeitados ao direito comercial os atos legalmente indicados como atos de comércio), hoje ela o é pelo critério funcional, da empresa.

Ocorre que adoção da teoria da empresa no direito brasileiro gerou dificuldades, dada à multiplicidade de significações que o vocábulo alberga[29].

Assim, as fronteiras da comercialidade (ou empresarialidade) não estão, hoje, nitidamente delineadas, fator esse que contribui ao enfraquecimento dos valores e princípios jusmercantis, deixando esse ramo jurídico permeável ao influxo de interpretações e institutos consumeristas e juslaborais, totalmente descabidos, em prejuízo de sua autonomia consolidada ao longo da história.

Embora a teoria jurídica da empresa não esgote o âmbito de alcance do Direito Comercial, é certo que ela atualmente representa o eixo em torno do qual gravita essa ciência. Mossa[30] chega a afirmar a teoria da empresa “rivendica legittimamente il fondamento universale delle sue idee e la potenza del diritto naturale commerciale”.

No que respeita ao direito das obrigações, o CC/02, suprimindo as disposições do CCom de 1850, de fato acabou por unificar as fontes normativas num único texto. Essa unificação, porém, foi apenas parcial, na medida em que a tipificação dos contratos comerciais foi feita precariamente, deixando muitos negócios socialmente típicos desabrigados daquele texto.

Além disso, a interpretação dos negócios empresariais é outro fator que escapou à iniciativa unificadora, dado que ela deve ser feita sob um prisma diverso do reservado aos negócios civis, ainda que baseados no mesmo texto normativo.

Esses são apenas exemplos de muitos outros problemas causados pelo CC/02 ao Direito Empresarial que os projetos de CCom pretendem enfrentar, cada qual a sua maneira.

Assim, embora não se discuta que o CC/02 esmaeceu as antes nítidas fronteiras da comercialidade e, por conseguinte, do âmbito de incidência do Direito Comercial, mormente na esfera contratual, é de se concluir, por derradeiro, que a edição do CC/02 não operou unificação alguma entre Direito Civil e Direito Comercial pelo simples fato de estarem ambas as matérias encartadas no mesmo diploma. Justaposição formal não implica unificação material.


4.      Conceito de autonomia no Direito:

Autonomia não é independência, ou, na dicção de Scialoja: “l’eccezionalità di uma norma o di un intero ramo del diritto è cosa del tutto relativa”.[31]

No contexto brasileiro atual, em que a ordem jurídica tem no seu ápice uma Constituição (CF/88) como vértice de todo o sistema jurídico, publico e privado, a ideia de autonomia de qualquer ramo jurídico deve observar um parâmetro de subordinação entre os demais ramos, acomodando-se entre eles, dentro do sistema. Cogitar independência não é possível, pois isso implicaria na concepção de um ramo do direito fora da ordem jurídica positiva.

Nessa perspectiva, a autonomia pode ser entendida com um conjunto de regras ordenadas por princípios comuns a elas e distintos do restante do sistema. A autonomia, destarte, pressupõe a existência de princípios próprios ao campo que se pretende autônomo.

A autonomia de qualquer ramo jurídico pode ser examinada por três vieses, a saber: o formal – que se refere ao fato de haver ou não legislação específica dando suporte ao ramo jurídico, concentrando suas fontes; o substancial – que se atém ao fato de haver ou não um corpo de regras e princípios próprios, diferenciados dos demais a dar-lhe substância efetivamente; e o didático – que se prende ao fato de o ramo jurídico, em função de suas especificidades, constituir ou não uma ciência em si, com métodos e critérios próprios.


5.      Autonomia do Direito Empresarial:

No que tange ao Direito Empresarial, em razão de seu desenvolvimento histórico a partir da baixa idade média, é cediça a noção de que este campo do saber jurídico constitui uma categoria histórica[32] (especial), dentro do direto privado, apartada do direito civil (geral).

Jean Escarra[33] destacando os caracteres do Direito Comercial, especialmente a sua feição consuetudinária e tendência cosmopolita, há quase noventa anos, já apontava a tendência de uniformização e harmonização das normas comerciais locais em um grande e único corpo normativo comum a todos, a ser formado pelos costumes dos empresários, extravasando as fronteiras para formar um costume mundial.

O teor do Direito Empresarial, já ensinava Carvalho de Mendonça, deveria exprimir, genuinamente, “o complexo de normas que disciplinassem exclusivamente as relações jurídicas decorrentes do exercício da indústria comercial no sentido econômico, o direito do comércio, o direito do tráfico mercantil, o direito dos comerciantes”[34]. Colocando em termos modernos, vê-se que, para o mencionado jurista, o objeto central do Direito Empresarial deveria versar sobre as relações interempresariais, nisso se assentando sua autonomia substancial.

Observe-se que ambos os projetos estão em sintonia com o exposto acima, pois o PL nº 1572/11 define seu escopo estabelecendo que ele “disciplina, no âmbito do direito privado, a organização e exploração da empresa”, ao passo que o PLS nº 487/13, detalhando melhor, estatui em seu art. 1º que o projeto “disciplina no âmbito do direito privado, a organização e exploração da empresa e matérias conexas, incluindo o direito societário, o direito contratual empresarial, o direito cambial, o direito do agronegócio, o direito comercial marítimo e o direito processual empresarial.”

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSMELLI, Cassiano. Da autonomia do direito empresarial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5271, 6 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58911. Acesso em: 15 nov. 2024.

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