Com o advento da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público brasileiro passou a tutelar os interesses metaindividuais através de uma série de instrumentos previstos no sistema jurídico nacional, como as audiências públicas, recomendações, termos de ajustamento de conduta, inquéritos e ações civis públicas. Não obstante a esse parquet que ressurgia abarcando inúmeras atribuições, em menos de duas décadas o mundo contemporâneo sofreu profundas mudanças decorrentes do processo de globalização e revolução digital a ponto de se exigir do Estado, diante da complexidade de certas relações jurídicas e interdependência de seus atores, um formato de atuação, notadamente de seus membros e meios legais, proativo e dialógico.
Os métodos convencionais que outrora logravam êxito na resolução de questões essenciais para o corpo social, revelaram-se totalmente incapazes de compor a realidade que se apresenta no novo milênio. A crise do sistema prisional, da segurança pública, da saúde, além da corrupção institucionalizada no país, dentre outras, demonstram, a toda evidência, que os remédios estruturais poderiam contribuir para minimizar o quadro caótico vivenciado no país, do qual decorre uma violação massiva de direitos fundamentais. Em outras palavras, a deficiência estrutural a que me refiro encontra-se na forma de atuação dos poderes, da alocação de recursos orçamentários, e na falta ou mau funcionamento das políticas públicas. Trata-se, na verdade, de questões ou litígios policêntricos, quer dizer, de problemas centrais – complexos, dos quais advêm inúmeros outros subsidiários, cuja solução de cada um depende da solução de todos os demais devido a sua marcante e inafastável interdependência.
Explicitando melhor a ideia, penso que a solução de litígios policêntricos exigem remédios estruturais, a fim de possibilitar a criação de uma relação coordenada entre os poderes, e a sociedade civil que deverão dialogar entre si com o fito de elaborarem, em prazo a ser ajustado, políticas públicas levando-se em consideração uma série de fatores (econômicos, políticos, sociais etc) que apenas seus representantes teriam acesso, e por isso não comprometeriam, em tese, outras áreas essenciais.
O sistema prisional do Brasil pode ser considerado um litígio policêntrico, cuja resolução da crise que se alastrou por todo o país não poderá ser resolvida através de instrumentos jurídicos convencionais, sendo imprescindível à construção de políticas públicas para o setor de prevenção terciária, abertura de agenda política, a presença de medidas estruturais fixadas dialogicamente por vários atores públicos e a comunidade, enfim, de todo um processo coordenado que exigirá tempo, estratégia, acompanhamento e avaliação. Aliás, a solução pactuada envolvendo o corpo social e o Estado tendo como balizamento o texto constitucional, revela sua interpretação pluralista e procedimental que muito se aproxima de uma sociedade aberta dos intérpretes da constituição (HABERLE, 1997, p. 33-34).
Os remédios estruturais adequados aos litígios dessa espécie têm sua origem assentada na luta pelo reconhecimento dos direitos civis na década de 50, nos Estados Unidos da América (Brown I e II). Na Colômbia podemos constatar vários casos que levaram sua Corte Constitucional ao ativismo para compor uma lide dessa natureza envolvendo o sistema penitenciário em 1998 (Sentencia T-153), ou o deslocamento forçado de refugiados civis devido à guerra com as FARC – Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia; em 2004 (Sentencia T-025).
A sentença estrutural é uma técnica de decisão que determina comandos para se alcançar transformações nos órgãos da administração pública necessárias à proteção dos direitos fundamentais (CAMPOS, 2016, p. 189). Busca-se, em epítome, reestruturar as instituições de governo através de medidas legislativas, administrativas, regulatórias, orçamentárias, exigindo-se, para isso, determinados pressupostos, e o mais importante, seu monitoramento no exercício de uma jurisdição retida ou supervisória, cujo presente estudo e compreensão almejam transpor seus fundamentos para atuação resolutiva do Ministério Público na defesa dos interesses supraindividuais.
A identificação de litígios estruturais exige a presença de quatro pressupostos; primeiro a violação massiva dos direitos fundamentais de determinados grupos ou minorias; em segundo, a omissão reiterada e persistente dos poderes públicos em adotar providências condizentes com a composição de lides estruturais; em terceiro, a ineficiência das medidas adotadas para superar o estado de crise; em quarto e último lugar, a potencialidade da situação conflituosa desencadear diversas ações individuais contra o Estado, e dessa forma comprometer o planejamento orçamentário para atuar em outras searas, também consideradas essenciais. Desses quatro requisitos abordados sucintamente, convém destacar a indolência do poder público em cumprir a Constituição Federal, principalmente no que diz respeito aos dispositivos referentes aos direitos e garantias fundamentais de milhares de pessoas lesadas e em situação de risco, caracterizando-se a inconstitucionalidade por omissão. Procura-se proteger a dimensão objetiva dos direitos fundamentais que alicerça deveres, objetivos e o modo de cumprimento, centrada na dignidade da pessoa humana como um valor absoluto (NOVAIS, 2017, p. 162-163).
No Brasil, a omissão inconstitucional sempre foi tratada pela doutrina sob uma perspectiva formalista, logo, sua caracterização somente ocorria diante das denominadas normas constitucionais de eficácia limitada que dependem de complemento normativo para plenitude eficacial. Por outro lado, esse reducionismo semântico estrutural deve ser superado, a exemplo do que se verificou em 2015, no julgamento da ADPF 347 e do Recurso Extraordinário 592.581 do Ministério Público do Rio Grande do Sul, com a repercussão geral nº 220[1], sob a relatoria do Eminente Ministro Marco Aurélio de Mello, que reconheceu o ECI - Estado de Coisas Inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro. Este precedente é de indiscutível relevância na medida em que admite a inconstitucionalidade por omissão sob um prisma material, ou melhor, sua caracterização diante de normas constitucionais de eficácia plena.
O pioneirismo desse estudo encontra-se na transposição dos fundamentos dos remédios estruturais para a forma de atuação do Ministério Público brasileiro que deve se afastar cada vez mais do modelo demandista e impositivo. Perceba o leitor que não defendo simplesmente a utilização de instrumentos legais (termos de ajustamento de conduta, recomendações, ações civis públicas etc) sob uma roupagem estruturante - o que pode ser necessário em alguns casos, mas sim, em se adotar como norte da atuação ministerial uma racionalidade dialógica, flexível e monitorada dos atores e medidas destinadas à conformação de litígios estruturais, que inegavelmente chegam à instituição em diversas áreas de suas curadorias, como do patrimônio público, meio ambiente, cidadão (saúde, idoso, e educação), infância e juventude, consumidor, além da segurança pública, e controle externo da atividade policial.
Assim se desenham as linhas de pensamento que poderiam nortear o perfil do Ministério Público do porvir ao se deparar com os litígios estruturais, enquanto instituição da área jurídica com o maior número de atribuições e possuidora do dever constitucional de tutelar a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis (Cf., art. 127), cujos instrumentos de atuação serviriam para deflagrar uma agenda política e diálogo entre os atores dos poderes públicos e diversos seguimentos da sociedade civil na construção de políticas públicas pactuadas, sujeitas a monitoramento e avaliação de resultados a fim de se efetivar os direitos fundamentais nos moldes preconizados pela lei magna fundamental.
Referências Bibliográficas
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Nota
[1] Tema da Repercussão Geral 220: Competência do Poder Judiciário para determinar ao Poder Executivo a realização de obras em estabelecimentos prisionais com o objetivo de assegurar a observância de direitos fundamentais dos presos.