Resumo: O presente trabalho tem por finalidade demonstrar o conceito de início de prova material e sua abrangência como marco do início de cognição do magistrado nas ações judiciais previdenciárias, para a demonstração da atividade do segurado especial pescador artesanal em período anterior ao documento mais antigo produzido, para concessão dos benefícios previstos na Constituição Federal, leis ordinárias e decretos regulamentadores. Abordar-se-á o problema através do prisma socioeconômico, analisando a dificuldade de produção probatória desta classe peculiar de trabalhadores. Serão confrontadas jurisprudências e súmulas das cortes superiores, bem como a busca da correta interpretação destas, sendo demonstrado que o início de prova material não importa num marco definido no tempo como começo da atividade, mas sim o necessário início de cognição do magistrado para a declaração do tempo exercido efetivamente na qualidade de segurado especial. Este trabalho será conduzido através do método secundário de pesquisa, tendo como base os diplomas pátrios, bibliografia acerca do tema, pesquisas jurisprudenciais e doutrinárias.
Palavras-chave: Inicio de prova material. Cognição. Segurado especial. Pescador artesanal. Benefícios previdenciários.
1. INTRODUÇÃO
O sistema da seguridade social é o braço do Estado onde o cidadão encontra abrigo e proteção nos momentos de fragilidade social, econômica ou de saúde.
Normatizada na Constituição Federal de 1988, no art. 193, “A ordem Social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça social1”.
Desta maneira, a Constituição cidadã explicita que o trabalho é o meio para a conquista do bem-estar social e justiça, devendo o Estado garantir tais possibilidades aos seus cidadãos.
Nos artigos seguintes, desenvolvem-se todas as diretrizes da organização da Seguridade Social, expondo uma estrutura normativa que protege o cidadão das intempéries às quais toda a sociedade está passível de ser acometida.
Por se tratar de um regime contributivo – retributivo, o sistema previdenciário é usufruído pelos trabalhadores que para ele contribui, os quais estão elencados nas leis 8.212/91, 8.213/91 e decreto 3.048/99, além dos artigos 201 e seguintes da Carta Maior.
O presente trabalho tem por escopo, pois, apresentar as peculiaridades do pescador artesanal, trabalhador enquadrado como segurado especial, abrangendo sob a ótica socioeconômica as dificuldades que esta classe de trabalhadores apresenta para demonstrar seu efetivo labor, tendo em vista a predominância da informalidade e carência de material probatório satisfatório que tenha o condão de evidenciar sua qualidade de segurado especial e posterior gozo dos benefícios previdenciários.
Inicialmente serão apresentadas as características necessárias para seu enquadramento como segurado especial, tais como suas peculiaridades e forma de tratamento que a legislação deu a este peculiar trabalhador.
Posteriormente, serão elencadas as possibilidades que a legislação traz para a comprovação da atividade como pescador artesanal, na qualidade de segurado especial, bem como, será demonstrada a dificuldade que tais trabalhadores enfrentam para comprovar efetivamente essa atividade. Neste ponto, a análise social terá especial enfoque, principalmente pelo fato de que a informalidade ainda é bastante difundida no Brasil, o que dificulta em demasia o acesso destes trabalhadores aos benefícios previdenciários.
Na sequência, será abordada a temática principal deste trabalho, qual seja, a análise do Início de Prova Material na comprovação da atividade como pescador artesanal, na qualidade de segurado especial. Objetiva-se neste tópico a demonstração da necessária ótica social que o magistrado no momento da propositura da ação deve ter ao analisar o caso concreto posto nas ações judiciais envolvendo o segurado especial, ao passo em que deixa de lado a delimitação do tempo e admite o trabalho do pescador artesanal nos períodos anteriores à prova documental mais antiga disponível.
Ao final, espera-se evidenciar que o início de prova material não deve ser encarado pelo judiciário como um marco temporal de começo da atividade de pesca artesanal, considerando apenas os períodos posteriores a este documento, mas sim como início de cognição no sentido de que o trabalhador efetivamente labuta na qualidade de segurado especial em tempo superior aos que ele demonstra documentalmente, tendo em vista as naturais dificuldades enfrentadas em decorrência de desinformação, informalidade e precariedade no atendimento previdenciário evidenciado nas pequenas localidades onde são exercidas as atividades de pesca artesanal.
Seria justo penalizar o trabalhador que não possui documentos antigos que possam demonstrar sua qualidade de segurado especial, tendo em vista as dificuldades enfrentadas no seu dia-a-dia, em detrimento de um sistema previdenciário já preparado para tais eventualidades?
2. CARACTERÍSTICAS DO SEGURADO ESPECIAL
O segurado especial é a única classe de trabalhador que tem expressa disposição no texto constitucional. No art. 195, §8º da CRFB/88, in verbis:
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
§ 8º O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei.
Segurado especial é o trabalhador que exerce suas atividades em regime de economia familiar ou individualmente, com a ajuda eventual de terceiros, e tem na atividade de subsistência sua principal fonte de renda.
Na prática, enquadra-se nesta classe de trabalhadores o pequeno lavrador rural e o pescador artesanal, este sendo o objeto de estudo do presente trabalho.
Consideram-se assemelhados ao pescador artesanal, dentre outros, além do mariscador, o caranguejeiro, o eviscerador (limpador de pescado), o observador de cardumes, o pescador de tartarugas e o catador de algas (KRAVCHYCHYN, 2014, p.116).
A principal vantagem que esta específica classe de trabalhador possui frente às demais é não estar vinculada ao efetivo exercício da contribuição para terem direito de usufruir dos benefícios previdenciários disponíveis, devendo apenas comprovar sua efetiva atividade nos moldes acima alinhavados, inteligência do art. 39, I, lei 8213/91.
Tais trabalhadores são encontrados principalmente nos leitos dos rios e na região costeira do país, onde exercem suas atividades de forma artesanal, retirando da natureza seu meio de sobrevivência.
Mesmo com a promulgação da carta cidadã em 1988, as leie 8.213/91 e 8.212/91 inferiam que a utilização de terceiros nas atividades somente era possível pela mútua ajuda, inadmitindo a contratação eventual de terceiros. Somente com a edição da lei nº 11.718, de 20 de julho de 2008 que o dispositivo constitucional fora regulamentado, momento em que restaram definidos os parâmetros para que o segurado especial não perdesse tal qualidade.
Elenca o art. 11, VII, §8º da lei 8213/91, acrescido pela lei 11.718/08, in verbis;
Art. 11. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas:
VII – como segurado especial: a pessoa física residente no imóvel rural ou em aglomerado urbano ou rural próximo a ele que, individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que com o auxílio eventual de terceiros, na condição de:
§ 8º Não descaracteriza a condição de segurado especial:
I – a outorga, por meio de contrato escrito de parceria, meação ou comodato, de até 50% (cinqüenta por cento) de imóvel rural cuja área total não seja superior a 4 (quatro) módulos fiscais, desde que outorgante e outorgado continuem a exercer a respectiva atividade, individualmente ou em regime de economia familiar; (Incluído pela Lei nº 11.718, de 2008)
II – a exploração da atividade turística da propriedade rural, inclusive com hospedagem, por não mais de 120 (cento e vinte) dias ao ano; (Incluído pela Lei nº 11.718, de 2008)
III – a participação em plano de previdência complementar instituído por entidade classista a que seja associado em razão da condição de trabalhador rural ou de produtor rural em regime de economia familiar; e (Incluído pela Lei nº 11.718, de 2008)
IV – ser beneficiário ou fazer parte de grupo familiar que tem algum componente que seja beneficiário de programa assistencial oficial de governo; (Incluído pela Lei nº 11.718, de 2008)
V – a utilização pelo próprio grupo familiar, na exploração da atividade, de processo de beneficiamento ou industrialização artesanal, na forma do § 11 do art. 25. da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991; e (Incluído pela Lei nº 11.718, de 2008)
VI - a associação em cooperativa agropecuária; e (Redação dada pela Lei nº 12.873, de 2013)
VII - a incidência do Imposto Sobre Produtos Industrializados - IPI sobre o produto das atividades desenvolvidas nos termos do § 12. (Incluído pela Lei nº 12.873, de 2013)
Note-se que o rol para a possibilidade de não perder a qualidade de segurado é extenso, o qual infelizmente demorou de ser implementado, mas que hoje vigente rechaça muitas mazelas da administração pública em excluir destes trabalhadores a possibilidade de percepção dos benefícios previdenciários que fazem jus.
3. INÍCIO DE PROVA MATERIAL E COMPROVAÇÃO DA ATIVIDADE DO PESCADOR ARTESANAL COMO SEGURADO ESPECIAL
O pescador artesanal é uma classe de trabalhador formada principalmente por pessoas muito humildes, cujas possibilidades de acesso ao estudo e melhora de vida são escassas.
Aos que fazem jus à aposentadoria por idade, estão no mínimo com 60 anos homem e 55 anos mulher, nos termos do art. 48. §1º da lei 8213/91, pessoas com pouca escolaridade no predomínio da informalidade e precariedade na forma de exercer suas atividades.
Importante analisarmos o presente trabalho sob a ótica da Dignidade da Pessoa Humana, Isonomia, Bem-Estar Social, pilares da Constituição Federal de 1988, e admitir que é preciso tratar o cidadão de acordo com suas reais possibilidades, sob pena de exclusão do sistema protetivo da previdência social.
Prevendo tais eventualidades impostas pelas adversidades enfrentadas por pessoas humildes, é que a legislação e jurisprudência trouxeram um rol exemplificativo de como comprovar a atividade na qualidade de segurado especial.
Inicialmente, informa o art. 106, da lei 8213/91, um rol de provas plenas para a comprovação da atividade como segurado especial, in verbis:
Art. 106. A comprovação do exercício de atividade rural será feita, alternativamente, por meio de: (Redação dada pela Lei nº 11.718, de 2008)
I – contrato individual de trabalho ou Carteira de Trabalho e Previdência Social; (Redação dada pela Lei nº 11.718, de 2008)
II – contrato de arrendamento, parceria ou comodato rural; (Redação dada pela Lei nº 11.718, de 2008)
III – declaração fundamentada de sindicato que represente o trabalhador rural ou, quando for o caso, de sindicato ou colônia de pescadores, desde que homologada pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS; (Redação dada pela Lei nº 11.718, de 2008)
IV – comprovante de cadastro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, no caso de produtores em regime de economia familiar; (Redação dada pela Lei nº 11.718, de 2008)
V – bloco de notas do produtor rural; (Redação dada pela Lei nº 11.718, de 2008)
VI – notas fiscais de entrada de mercadorias, de que trata o § 7º do art. 30. da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, emitidas pela empresa adquirente da produção, com indicação do nome do segurado como vendedor; (Incluído pela Lei nº 11.718, de 2008)
VII – documentos fiscais relativos a entrega de produção rural à cooperativa agrícola, entreposto de pescado ou outros, com indicação do segurado como vendedor ou consignante; (Incluído pela Lei nº 11.718, de 2008)
VIII – comprovantes de recolhimento de contribuição à Previdência Social decorrentes da comercialização da produção; (Incluído pela Lei nº 11.718, de 2008)
IX – cópia da declaração de imposto de renda, com indicação de renda proveniente da comercialização de produção rural; ou (Incluído pela Lei nº 11.718, de 2008)
X – licença de ocupação ou permissão outorgada pelo Incra. (Incluído pela Lei nº 11.718, de 2008) (grifo nosso)
Destaque-se que ao pescador artesanal apenas está destinada a declaração emitida por colônia ou sindicato de pescadores, e que seja homologada pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), fato este que dificulta em demasia o acesso destes segurados aos benefícios da previdência social. Cumulado com tal restrição legislativa, tem-se a precária condição que o catado do marisco ou a pesca artesanal oferece aos trabalhadores para seu sustento e de sua família. Desta maneira, resta evidente a necessidade de um olhar diferenciado para estas pessoas, que num momento de qualquer sinistro social previsto constitucionalmente, se veem reféns das colônias ou jogado à sorte com o pouco de documentos que possam vir a comprovar sua atividade.
Por óbvio, tanto na Instrução Normativa do INSS, como também nas leis ordinárias, é possível encontrar rol de possíveis documentos quem tenham o condão de indicar a atividade do pescador artesanal ou marisqueiras (art. 47. e seguintes, IN 77), ficando a cargo da interpretação do interlocutor a possibilidade ou não da concessão previdenciária em favor do segurado, o que o expõe, mais uma vez, a uma situação de extrema fragilidade.
Expressa com maestria o Professor Jefferson Luiz Kravchychyn2:
“Quanto às provas a serem apresentadas por quem trabalha em regime de economia familiar, deve-se levar em conta a dificuldade do interessado, não raras vezes pessoa humilde e de pouca instrução, em obter documentos em seu nome para que tenha reconhecido o tempo de serviço prestado. As particularidades do meio rural devem ser levadas em consideração, pois culturalmente não se vê o homem do campo preocupado com a formalização, por via de documentos, das mais diversas formas de atos – até mesmo o registro de nascimento das pessoas, salvo quando se demonstra necessário.
Os Tribunais aceitam as mais diversas provas, desde que hábeis e idôneas. Devem, entretanto, representar um conjunto, de modo que, quando integradas, levem à convicção de que efetivamente houve a prestação do serviço. O fato do segurado não possuir todos os documentos da atividade agrícola em seu nome não elide o seu direito ao benefício postulado, pois, como normalmente acontece no meio rural, os documentos de propriedade e talonários fiscais são expedidos em nome de quem aparece perante os negócios da família. Nesse caso, os documentos do pai caracterizam-se como prova material indireta, hábil à comprovação do tempo de serviço rural prestado em regime de economia familiar. Igualmente, servem de início de prova da atividade laboral rural o registro da qualificação “agricultor” ou “lavrador” nos documentos militares (alistamento ou certificado de reservista) ou certidões de casamento.
Nesse sentido, a Súmula n.º 73 do TRF da 4.ª Região: “Admitem-se como início de prova material do efetivo exercício de atividade rural, em regime de economia familiar, documentos de terceiros, membros do grupo parental”.”
De tal sorte, resta evidenciada tanto na intensão do legislador ordinário, como na jurisprudência, a necessidade da flexibilização na comprovação da atividade como pescador artesanal, uma vez que a legislação traz inúmeros documentos que servem não apenas como comprovação efetiva do trabalho na qualidade de segurado especial, bem como o início de prova material para tal comprovação.
Mesmo com todo este esforço, é imprescindível adotar o entendimento de que em decorrência da carência de estrutura social mínima para um sadio desenvolvimento, bem como, da predominância da informalidade do trabalho nas localidades onde residem os pescadores, deveria o magistrado, ao se deparar com a situação ora exposta, deter a sensibilidade de analisar no caso concreto as reais possibilidades de comprovação da atividade de pesca artesanal ou marisqueira, e a extensão temporal das provas coligidas aos autos do processo, nestas hipóteses.
4. INÍCIO DE PROVA MATERIAL COMO COMEÇO COGNITIVO NAS AÇÕES PREVIDENCIÁRIAS DO PESCADOR ARTESANAL
Como exposto alhures, o pescador artesanal é um trabalhador cujas condições socioeconômicas o desfavorece em demasiado, equiparando-o com outros segurados da previdência social.
Por tal motivo, a análise da possibilidade de concessão de qualquer benefício previdenciário, no que tange a qualidade de segurado e tempo de carência, deve ser feita sob a égide dos Princípios Constitucionais da Isonomia e Dignidade da Pessoa Humana, buscando no caso concreto a real possibilidade de enquadramento do segurado como especial, dando-lhe tratamento compatível com suas condições sociais e pessoais.
Muitas vezes, tratam-se de pessoas analfabetas, semianalfabetas, cuja única vertente é trabalhar de sol a sol, na maré e no catado do marisco para sobreviver e alimentar sua família, nutridas de desinformação e pouco importando seu cadastro junto aos órgãos oficiais de fomento à atividade pesqueira, ou quiçá a alguma entidade organizacional, quais sejam, colônias, sindicatos ou associações de pescadores.
Nesta toada, muito trabalhadores ficam descobertos pelos benefícios da previdência social, sendo expostos às intempéries da vida, sem qualquer apoio do Estado, o qual deveria garantir aos seus cidadãos uma vida digna, com o mínimo de estrutura – pilar do Estado Democrático de Direito.
A comprovação de atividade da pesca artesanal, na qualidade de segurado especial, muitas vezes se dá por início de prova material cujo marco temporal é incapaz de comprovar o mínimo de carência necessária ao gozo do benefício. Para exemplificar tal assertiva, imaginemos a hipótese de um pescador artesanal, que sempre exerceu a atividade nos parâmetros normatizados, com 63 anos de idade e busca a aposentadoria por idade rural, nos termos dos art. 39,I cc 143, da lei 8.213/91, no ano de 2017.
Ocorre que o documento mais antigo que o trabalhador possui que evidencia sua qualidade de pescador artesanal é de 2007. Desta maneira, em tese seria possível apenas a comprovação de 120 meses de efetivo exercício da atividade com a necessária cumulação da prova testemunhal através de uma Justificação Administrativa ou via judicial, sucumbindo assim a pretensão do segurado face à carência exigida de 180 meses, com exercício imediatamente anterior ao requerimento administrativo.
Da análise do início de prova material sob a ótica estritamente prática, é possível o entendimento de que o trabalhador exerce a atividade há apenas 10 anos, começando em 2007. Tal raciocínio inclusive é a base da defesa judicial da autarquia previdenciária, alicerçada pela súmula 149 do STJ, in verbis:
“A prova exclusivamente testemunhal não basta à comprovação da atividade rurícola, para efeito de obtenção de benefício previdenciário”.
Ocorre que a súmula 34 da Turma Nacional de Uniformização, expressa:
“Para fins de comprovação do tempo de labor rural, o início de prova material deve ser contemporâneo à época dos fatos a provar”
Nota-se, dessa forma, que necessária se faz para a comprovação de atividade do pescador artesanal como segurado especial o binômio início de prova material acrescido de substancial prova testemunhal.
Ocorre que tal entendimento não explicita qual a efetiva eficácia do início de prova material para a demarcação temporal do início efetivo das atividades do segurado, no caso concreto.
É comum que muitos pescadores tenham exercido esta atividade por toda a vida, sem inclusive ter tido qualquer vínculo de natureza urbana, mas que apenas possuem início de prova material recente.
Seria isonômico exigir deste humilde trabalhador que este possua documentos que demonstrem cabalmente sua atividade por todo o período de carência da aposentadoria por idade rural, por exemplo, 180 meses? Principalmente pelo fato de o estado não oferecer estrutura suficiente aos segurados para que este tenha o mínimo de informação da necessidade de sair da informalidade.
Obviamente, adotar o entendimento defendido pelo INSS de forma desregrada penalizará milhares de segurados que terão seu direito ao gozo dos benefícios previdenciários tolhidos de forma abrupta, cujas dificuldades foram expostas pela ineficiência do estado em garantir o mínimo existencial para estes trabalhadores, que veem na atividade de subsistência sua única forma de sobrevivência.
Nesta toada, imprescindível a análise pelo magistrado do caso concreto, tendo como parâmetros as peculiaridades desta especial classe de trabalhador, já em muito sacrificado pelo meio sócio econômico.
Informa o art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum3.”
Comprova-se tal assertiva a sentença prolatada pela Dr. ª Tannille Ellen Nascimento De Macêdo, juíza substituta da 23ª Vara dos Juizados Especiais Federais da Seção Judiciária da Bahia, no julgamento do processo nº 0012951-59.2017.4.01.3300, in verbis:
“O exame de demandas como a presente reclama do julgador aplicação concreta da norma revestida de caráter principiológico contida no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo a qual "na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum." Por tal razão, é firme o entendimento de que, examinando-se as peculiaridades de cada caso, é possível destinar-se a tais demandas uma interpretação pro-misero, atendendo, a um só tempo, o interesse do trabalhador e a necessidade de comprovação do tempo de serviço alegado, mediante uma análise mais flexível da documentação probatória.” (grifo nosso)
Deve o magistrado ter como trilha no momento do julgamento o objetivo de atingir o propósito social da norma, qual seja, o de garantir os benefícios previdenciários aos trabalhadores rurais e pescadores artesanais e seus equiparados, afim de cumprir com a missão constitucional da previdência social.
Sensível à necessidade de observância das questões sociais que circundam o segurado especial, foi publicada no Diário Oficial da União em 27 de junho de 2016 a sumula 577 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), in verbis:
“É possível reconhecer o tempo de serviço rural anterior ao documento mais antigo apresentado, desde que amparado em convincente prova testemunhal colhida sob o contraditório.”
A Turma Nacional de Uniformização, com a publicação da súmula 14, mostrou-se solidária ao segurado especial, senão vejamos:
Para concessão de aposentadoria rural por idade, não se exige que o início de prova material, corresponda a todo o período equivalente à carência do benefício
Com a publicação da referida súmula, de observância obrigatória pelos magistrados, art. 927, IV do CPC/15, o Superior Tribunal de Justiça normatiza o entendimento de que o início de prova material não é um marco temporal, mas deve ser encarado como início de cognição que o magistrado deve ter para que, corroborado com convincente prova testemunhal, declare que os períodos anteriores da prova devem sem considerados como trabalhados efetivamente na qualidade de segurado especial.
Neste sentido, se pronunciou o Colendo Tribunal Regional Federal da 4ª Regiao, no julgamento do Agravo Regimental, abaixo ementado.
PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. APOSENTADORIA RURAL POR IDADE. COMPROVAÇÃO DO LABOR RURAL POR MEIO DE INÍCIO DE PROVA MATERIAL COMPLEMENTADA POR PROVA TESTEMUNHAL. AGRAVO PROVIDO. AGRAVO REGIMENTAL DO INSS DESPROVIDO. 1.A CF/88 incluiu o trabalhador do campo no Regime Geral de Previdência Social, nos termos do art. 201, § 7º., II, tendo a Lei 8.213/91, que regula os Benefícios da Previdência Social, estabelecido um período de transição em que o trabalhador rural que já integrava o sistema de previdência social encontra-se dispensado do recolhimento das contribuições necessárias ao reconhecimento do tempo de atividade agrícola.2.A Lei 8.213/91 dispõe em seu art. 143. que será devida aposentadoria por idade ao trabalhador rural que completar 60 anos de idade, se homem, e 55 anos de idade, se mulher, além de comprovar o exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício, em número de meses idêntico à carência.3.O art. 55, § 3º. e o art. 106, parágrafo único da Lei 8.213/91 elencam os documentos necessários à comprovação do exercício de atividade rural, ressalvando não ser admitida prova exclusivamente testemunhal, salvo na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito. Esta Corte já pacificou entendimento de que o rol previsto no citado art. 106. da Lei 8.213/91 é meramente exemplificativo. 4.A concessão de aposentadoria rural possui relevante valor social, uma vez que busca amparar o obreiro rural por meio de distribuição da renda pela via da assistência social. Dessa forma, não se deve aplicar rigor excessivo na comprovação da atividade rurícola, sob pena de tornar-se infactível, em face das peculiaridades que envolvem o trabalhador do campo, que normalmente não dispõe de documentos que comprovem sua situação. Diante dessa situação, conforme orientação jurisprudencial do STJ, para a demonstração do exercício de trabalho rural não se exige que a prova material abranja todo o período de carência exigido pelo art. 142. da Lei 8.213/91, sendo necessário apenas início de prova material complementado por prova testemunhal. 5.In casu, o Magistrado de 1o. grau entendeu que os depoimentos colhidos em juízo aliados à prova material conseguiram demonstrar de forma idônea, harmônica e precisa o labor rural exercido pela autora.6.Contudo, o Tribunal a quo não reconheceu o direito ao benefício, por entender que a parte autora não apresentou prova material contemporânea aos fatos alegados, não abrangendo também todo o período de carência, o que, como visto, vai de encontro ao entendimento jurisprudencial do STJ, que permite que a prova testemunhal amplie o período constante da prova material, como no caso.7.A decisão agravada não reexaminou as provas constantes dos autos, tendo adotado os fatos tais como delineados pelas instâncias ordinárias.8.Agravo Regimental do INSS desprovido. ACÓRDÃO. Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da PRIMEIRA Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao Agravo Regimental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Benedito Gonçalves, Sérgio Kukina (Presidente), Regina Helena Costa e Marga Tessler (Juíza Federal convocada do TRF 4ª Região) votaram com o Sr. Ministro Relator.
Tal entendimento cristaliza as diretrizes do Estado Democrático de Direito, na medida em que permite ao humilde trabalhador pescador artesanal, cujas possibilidades de comprovação da atividade se deram tolhidas pelas intempéries da vida, de gozar de benefícios previdenciários que faz jus, sendo merecedor do acalanto constitucional previdenciário de proteção do trabalhador pela incapacidade presumida pela idade avançada, ou talvez por qualquer mácula a sua saúde que não o permita voltar ao trabalho de imediato, inteligência do art. 201, I, da CRFB/88.
5. CONCLUSÃO
Diante de todo exposto, é possível chegarmos a importantes conclusões acerca da necessária ótica social que o magistrado deve ter ao analisar a concessão do benefício previdenciário em favor do pescador artesanal na qualidade de segurado especial, levando em consideração não apenas o início de prova material como um marco temporal para o início real da atividade, mas sim encarar a prova como um início de sua cognição acerca da real história de labor do trabalhador, dotando de eficácia como carência o período anterior ao documento mais antigo colhido pela parte.
Adotar tal entendimento é levar em consideração os princípios constitucionais da Dignidade Da Pessoa Humana, Isonomia E Bem-Estar Social, garantindo o mínimo de dignidade a uma classe de trabalhadores que sofrem em demasia com o descaso prático do Estado e que muitas vezes são marginalizados das oportunidades de usufruir de benesses previdenciárias às quais têm direito.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição, 1988.
BRASIL. Lei 8.212, de 24 de julho de 1991
BRASIL. Lei 8.213, de 24 de julho de 1991
BRASIL. Decreto 3.048, de 06 de maio de 1999
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 19ª ed. Niterói - RJ: Editora Impetus, 2014
JÚNIOR, Hilário Bocchi. Manual do Advogado Previdenciário. 1ª ed. Salvador - BA: Editora Juspodivm, 2015
KRAVCHYCHYN, Jefferson Luis. Prática Processual Previdenciária, 5ª edição, Rio de Janeiro – RJ. Ed. Forense, 2014
KERTZMAN, Ivan. Curso Prático de Direito Previdenciário. 13ª edição, Salvador – BA: Editora Juspodivm, 2015
https://luzimariogomes.jusbrasil.com.br/artigos/111826572/o-inicio-de-prova-material-da-atividade-rural-para-fins-de-reconhecimento-da-qualidade-de-segurado-especial, Acesso em 23 de julho de 2017
https://www.conteudojuridico.com.br/artigo,beneficios-rurais-prova-material-e-inicio-de-prova-material-na-legislacao-previdenciaria,51812.html, Acesso em 21 de julho de 2017
Notas
1 Constituição Federal, Art. 193.
2 Em sua obra “Prática Processual Previdenciária”, 5ª edição, Rio de Janeiro – RJ. Ed. Forense, 2014, p. 159.
3 Decreto Lei 4657 de 04 de setembro de 1942, art. 5º.