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A Constituição Política do Império do Brazil de 1824: Aspectos liberais e a sua incompatibilidade com a realidade do Brasil Imperial.

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Este trabalho tem por escopo analisar a incompatibilidade entre os aspectos liberais da Constituição Imperial de 1824, a primeira do país, com a realidade político-social do império.

A Constituição Política do Império do Brazil de 1824: Aspectos liberais e a sua incompatibilidade com a realidade do Brasil Imperial.

 

 

Ana Carolina Torres Carvalho (FACESF)

anacarolinatcarvalho@outlook.com

 

Leonardo Barreto Ferraz Gominho (Estácio FAL)

ferrazbar@hotmail.com

 

 

RESUMO:

Este trabalho tem por escopo analisar a incompatibilidade entre os aspectos liberais da Constituição Imperial de 1824, a primeira do país, com a realidade político-social do império. Para tanto, abordaremos como descompasso existente no que tange aos valores constitucionais e as práticas adotadas pelo imperador, mostrava-se nítido no cotidiano do país, fragilizando assim a noção de Estado Liberal. Desse modo, o presente artigo científico se propõe a averiguar minuciosamente a dinâmica jurídica, governamental e coletiva da nação aquele período, verificando a forma de comunicação existente entre os poderes no Estado brasileiro, assim como as contradições no que se refere ao liberalismo e a escravidão, e, por conseguinte, observar que os direitos fundamentais defendidos pelo constitucionalismo, tornou-se incoerente diante as políticas autoritárias de uma jovem nação tida como livre.

 

PALAVRAS-CHAVES:

Brasil Imperial; Liberalismo; Constituição Federal.

 

 

1. Introdução

Efetuar uma abordagem a respeito do liberalismo e da Constituição Imperial de 1824 é uma tarefa que requer muita pesquisa e cautela, dado que os seus aspectos políticos ainda dividem opiniões entre os estudiosos do império brasileiro.

Para José Gomes Canotilho[1] o termo constitucionalismo e liberalismo exprimem a mesma ideia, pois se trata de um “governo das leis e não dos homens”. Esses movimentos fazem parte de uma mesma luta a fim de restringir os governos absolutistas e proporcionar mais liberdade aos indivíduos.

Dentro desse estudo, pode-se verificar de maneira sucinta a trajetória do movimento constitucional moderno, citando a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), Constituição Francesa (1791) e a Constituição dos Estados Unidos (1787). Esses foram as principais movimentações responsáveis por fomentar o constitucionalismo pelo mundo, defendendo ideias emancipadoras para nortear a organização dos Estados Modernos. E, posteriormente, um estudo da forma como ocorreu a propagação das ideologias liberais no território brasileiro, assim como, a crise política ocasionada em razão da dissolução da Assembleia Constituinte pelo imperador Dom Pedro I.

Também será foco de análise a dinâmica política do poder moderador e a sua influência diante as atividades do legislativo, executivo e judiciário, destacando os aspectos absolutistas dessa ferramenta a disposição do imperador. Passaremos para abordar algumas violações a direitos que eram tidos como fundamentais na Carta Magna do país e em outras diversas legislações estrangeiras, evidenciando o perfil absolutista do Império.

Ademais, uma explanação a respeito do paradoxo existente entre a manutenção do regime escravocrata e os valores de liberdade defendidos pelo Estado Liberal, no qual milhares de indivíduos foram privados de inúmeros direitos e garantias fundamentais para uma vida digna.

Desta maneira, esse artigo visa apresentar os incontáveis descompassos entre a doutrina liberal e os aspectos político-sociais presentes na realidade do Brasil Imperial, questionando assim o caráter liberal da Constituição Federal de 1824.

Realizadas estas considerações iniciaremos nosso estudo pelo respeito do constitucionalismo e o movimento liberal.

 

2. O constitucionalismo e o movimento liberal

Várias correntes doutrinárias divergem a respeito do início do movimento constitucional que visava limitar o poder dos governantes e instituir o estado de direito. Todavia, foi a partir da idade moderna que essas ideias se espalharam rapidamente, pois as revoluções inglesa, americana e francesa representaram o apogeu das concepções anti-absolutistas.

De acordo com o filósofo Norberto Bobbio[2], o Estado liberal e o democrático são resultados de uma mesma luta contra os poderes absolutos dos governantes, pois “grande parte das teorias elaboradas no decurso do século e que levaram a formação do Estado Liberal e democrático estão inspiradas em uma ideia fundamental: a de estabelecer limites ao poder do Estado”. No absolutismo o soberano detém poderes para tomar decisões sem precisar observar qualquer preceito jurídico, todavia, com o advento das transformações políticas ocasionadas pelo liberalismo filosófico surge as reivindicações para que o governo se submeta ao império das leis.

A primeira constituição escrita se originou nos Estados Unidos da América em 1787 e inicialmente não continha um rol de direitos fundamentais em favor dos indivíduos, sendo posteriormente acrescentadas por diversas emendas constitucionais. A partir de então, esse texto constitucional começou a prever a liberdade de culto e expressão, direitos de propriedade, devido processo legal e outras garantias[3].

É com a Revolução Francesa no século XVIII que os pensamentos liberais e constitucionalistas se expandem pelo continente europeu. Em 1789 foi formulada a Declaração Universal dos Direitos dos Homens e do Cidadão, a qual positivou vários direitos e garantias individuais que em seguida serviram como parâmetro para a criação da Constituição Francesa de 1781 e de vários outros textos constitucionais no mundo. Naquele período a concepção de que os homens possuem direitos naturais, ou seja, independentes e preexistentes a vontade do poder público, justificava a importância do estabelecimento de um texto constitucional para submeter os dirigentes da nação aos preceitos normativos. Nas palavras de Noberto Bobbio[4]o Estado que se modela segundo o reconhecimento dos direitos naturais individuais é o Estado liberal, no sentido originário da palavra”.

As constituições liberais têm como características a submissão do Estado às leis, a divisão dos poderes para assegurar a independência e harmonia entre os poderes constitutivos de uma nação e os direitos e garantias individuais que são considerados como primeira geração dos direitos fundamentais[5].

Posteriormente, será analisado o cenário político do Brasil durante o período colonial.

 

3. O cenário político do Brasil Colonial

No Brasil uma nobreza havia se constituído durante os vários séculos de colonização, graduando-se em diversas universidades europeias e disseminando pelo território pensamentos políticos que estavam modificando o cenário europeu: o liberalismo, a democracia, o constitucionalismo, o parlamentarismo e a república.

A revolução pernambucana de 1817 representou o início de um verdadeiro movimento constitucional no Brasil, pois os participantes estavam revoltados como a forma de governar da família real. Sendo assim, as ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade se propagavam pelo território pernambucano e influenciaram os líderes do movimento a tecer críticas ao sistema absolutista. Nos dizeres de Paulo Bonavides[6]:

Se as raízes do constitucionalismo português estavam na “Súplica” a Bonaparte, as nossas se entranhavam no solo da Revolução Pernambucana de 1817, de marcante inspiração republicana. Tinham, aliás, um significado constitucional mais profundo, colocando diretamente em pauta a questão do poder constituinte com extrema clareza e determinação. Tanto pela natureza do movimento, confessadamente separatista e emancipativo, quanto pelos princípios que o inspiravam, todos derivados da ideologia revolucionária solapadora das monarquias absolutas, a Lei Orgânica da nova república era um projeto superior em substância e qualidade à “Súplica” portuguesa de 1808.

O movimento constitucional se expande pelo país e busca a criação de uma constituição escrita que consagre o liberalismo, assegure os direitos individuais e a divisão dos poderes, cumprindo assim o que dispõe o artigo 16, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789[7], de acordo com a qual “não existe constituição a sociedade onde não é assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação dos poderes”.

Surge então a missão de constituir uma forma de governo a partir de princípios que repudiem o absolutismo. A elite brasileira não desejava constituir um estado semelhante ao francês ou americano, pois acreditavam na importância da monarquia para organizar a jovem nação, tendo assim por afinidade o modelo do constitucionalismo inglês.

Em abril de 1821 Dom João se viu obrigado a retornar a Portugal diante a eclosão da Revolução do Porto, contudo deixa o seu filho Dom Pedro de Alcântara em seu lugar aqui no país. Em seguida, no ano de 1822, Portugal ordenou a volta imediata do príncipe, porém ele recusou cumprir a ordem e algum tempo depois emancipou o Brasil de Portugal e convocou uma Assembleia Constituinte para redigir a primeira Constituição Brasileira. Celso Ribeiro Bastos[8] menciona que “com a volta da família real e a regência de D. Pedro I, precipita-se movimento no sentido de dotar o Brasil de uma Constituição. A convocação da Assembléia para tanto dá-se mesmo antes da Proclamação da Independência. O fato é que em maio de 1823 ela já está funcionando”.

Transcorrida esta etapa, será tratada como se deu a dissolução da Assembleia Nacional Constituinte de 1823.

 

4A dissolução da Assembleia Nacional Constituinte de 1823

No dia 03 de julho de 1823 é aberta a primeira sessão da Assembleia Nacional Constituinte, formada por 90 (noventa) membros de aproximadamente 19 (dezenove) províncias.  Os indivíduos responsáveis pela elaboração da primeira constituição do país eram bacharéis, padres, proprietários de terra, funcionários públicos, militares e médicos. O historiador José Honorário Rodrigue[9] explica qual a finalidade de uma assembleia constituinte, cuja origem se deu na França Revolucionária:

A palavra ‘Constituinte’ é destituída de qualquer sentido ideológico-político até o estabelecimento da Assembléia Constituinte francesa, que sucedeu à Legislativa em 1789. A transformação sucessiva da reunião dos Estados Gerais em Assembléia Nacional com a recusa dos nobres e do clero de participarem dela e logo em Constituinte, com o juramento do terceiro Estado de elaborar a Constituição, em qualquer circunstância, deu à Assembléia Constituinte não somente o sentido político de elaboradora de um código nacional de direitos e deveres, mas um caráter ideológico revolucionário, assunção da soberania nacional, não mais exclusiva da pessoa real.

              O constitucionalismo pátrio buscou instituir o Estado Liberal na contramão dos modelos clássicos, pois esses protagonizavam a luta dos setores mais desfavorecidos socialmente em relação à nobreza e ao clero, a fim de adquirir mais liberdade aos que dela mais necessitavam, enquanto no Brasil as classes privilegiadas pelo sistema foram as encarregadas de limitá-lo.

              O imperador Dom Pedro I, príncipe regente do país após Dom João VI retornar a Portugal, apresentava-se favorável à constitucionalização do Império e se declarava partidário das ideias do liberalismo. Entretanto, frequentemente aflorava em sua personalidade condutas antiliberais que ocasionaram inúmeros conflitos por toda a nação. Apesar de assinar alguns decretos concedendo as liberdades pessoais, proclamava discursos com conteúdo absolutista para a Assembleia Constitucional. Na sessão inaugural para criação da nossa primeira constituição, reunido com todos os parlamentares, o Imperador Dom Pedro I[10] causou inquietações ao falar que esperava ser o texto constitucional merecedor de sua aceitação: “(…) Espero, que a Constituição, que façais, mereça a Minha Imperial Aceitação, seja tão sábia, e tão justa, quanto apropriada à localidade, e civilização do Povo Brasileiro; igualmente, que haja de ser louvada por todas as Nações; que até os nossos inimigos venham a imitar a santidade, e sabedoria de seus princípios, e que por fim a executem”.

              Em outro trecho do discurso, submete novamente a Carta Magna a sua anuência, afirmando que defenderá a pátria, a nação e a constituição, se essa for digna do Brasil e do Imperador.

              Em setembro do mesmo ano o projeto constitucional foi apresentado, considerando ilegítimo o poder do Imperador para dissolver a Câmara dos Deputados e comandar as Forças Armadas, dado que se temia o autoritarismo monárquico. As discussões sobre a matéria resultaram em tensões políticas entre os constituintes, pois os membros do partido português discordavam dos trechos que limitavam os poderes de Dom Pedro I. Neste contexto, existia a proposta de José Bonifácio[11] para extinguir o tráfico de africanos para o Brasil e adotar medidas que lentamente emancipasse os negros da escravidão. É possível verificar essa pretensão ao analisar o seu discurso proferido em uma sessão da Assembleia Constituinte.

Como cidadão livre e deputado da nação dois objetos me parecem ser, fora a constituição, de maior interesse para a prosperidade futura deste império. O primeiro é um novo regulamento para promover a civilização geral dos índios do Brasil, que farão com o andar do tempo inúteis aos escravos, cujo esboço já comuniquei a esta Assembléia. Segundo, uma nova lei sobre o comércio da escravatura, e tratamento dos miseráveis cativos. Este assunto faz o objeto da atual representação. Nela me proponho mostrar a necessidade de abolir o tráfico da escravatura, de melhorar a sorte dos atuais cativos, e de promover a sua progressiva emancipação.

Jornais como o Tamoio, a Sentinela da Liberdade, a Beira-mar na Praia Grande, ligado aos irmãos Andradas, membros da assembleia, atacava o governo o acusando de planejar a volta do Brasil ao domínio português.  A crise atingiu o seu ápice e os constituintes começaram a cobrar explicações do Imperador que decidiu então decretar o fim da assembleia e prender alguns deputados. Essa dissolução representou um retrocesso para a fase de consolidação do Estado Liberal Brasileiro. Com o auxílio do partido português e de alguns brasileiros, o dirigente da família real incumbiu ao Conselho de Estado a tarefa de criar a Constituição, a qual foi outorgada em 25 de março de 1824[12].

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Paulo Bonavides[13] explica a crise constitucional que se instaurou após a dissolução da assembleia constituinte responsável pela primeira carta fundamental do Brasil:

O poder constituinte originário, dos governados, teve a sua soberania golpeada e embargada, não sendo portanto partícipe da obra criadora das nossas primeiras instituições públicas, como Estado e Nação; e o poder constituinte derivado do absolutismo, o poder constituinte do príncipe que fez a Carta Imperial; ao invés da promulgação, uma outorga; ao invés do ato de soberania de um colégio constituinte, o mesmo ato por obra da vontade e do livre arbítrio de um imperador, que na Carta Fundamental decretara a autolimitação de seus poderes.

              A dissolução e a posterior imposição da nova Carta Magna provocaram grandes descontentamentos no Nordeste do país, principalmente em Pernambuco. Conforme Frei Caneca[14], não se deve apoiar uma constituição outorgada, pois “não foi dada pela soberania da nação, degradaria os pernambucanos da sociedade de um povo livre e brioso, para um valongo de escravos e curral de bestas de carga”.

              Diante das turbulências políticas no Nordeste da nação, o presidente da província de Pernambucano foi substituído por um homem de confiança da Corte, na tentativa de minimizar a instabilidade que colocava em cheque a governança do país. Essa postura deu ensejo ao movimento separatista conhecido por Confederação do Equador. Assim, observada a ameaça ao seu poder, Dom Pedro I decidiu reprimir o movimento e puniu vários participantes com sentença de morte. A postura adotada pelo Estado criou temor a população e inquietou os setores liberais do país que temiam aos excessos dos poderes do governo em face da nação. De acordo com Octaciano Nogueira[15], naquele período, José Bonifácio, o patriarca da independência, já visualizava o desgaste político causado pelo fechamento da Assembleia Constituinte:

Cumpriu-se, finalmente, o vaticínio de José Bonifácio, quando mandou recomendar ao imperador que preservasse a coroa para o filho, porque, para ele, já estava perdida com o ato de força da dissolução. Se em 1831 consumou a revolução da independência deflagrada em 22, e frustrada em 23 pela dissolução da Constituinte, que foi a vitória do absolutismo sobre a aspiração emancipacionista do 7 de setembro (…).

Apesar de Dom Pedro I ter afirmado que a Constituição outorgada seria duplamente liberal, verificava-se as nítidas contradições teóricas em seu texto, transparecendo assim a existência de um Estado arbitrário com uma máscara de liberalismo. O autor Marcos Villella[16] ilustrava muito bem esse fato:

Não é acidental que o autoritarismo esteja tão presente no Brasil. O país já nasceu com uma organização política antidemocrática. E o poder nunca se reconheceu como arbitrário. Ao contrário, D. Pedro I inaugurou o arbítrio travestido de defensor das liberdades – a esquizofrenia de um discurso liberal e uma prática repressiva. No mesmo ano da Constituição outorgada, escreveu que era indigno um governante que não ama a liberdade de seu país e que não dá aos povos aquela justa liberdade.

Como visto, naquele momento, a preocupação maior das elites brasileiras consistia apenas em construir uma nação, relegando a implantação da democracia liberal para segundo plano. Dessa maneira, a forma como a doutrina liberal se disseminou pelo território, restringiu a possibilidade de se alcançar um liberalismo nacional equiparado ao de países como a Inglaterra, França e Estados Unidos, pois nesses locais as transformações políticas ocorreram mediante uma revolução burguesa contra o absolutismo das monarquias.

Adiante, será examinado a constituição de 1824, em especial o poder moderador.

 

5.  A Constituição Outorgada - Imperial - de 1824 e o poder moderador

A Constituição Imperial de 1824 se baseou na teoria do filósofo Benjamin Constant, o qual criticava a tripartição de Montesquieu e afirmava a necessidade da existência de um quarto poder, o moderador, para atuar como um agente neutralizador, evitando assim que um poder pudesse sufocar o outro. Isso descaracterizava a ideia liberal de limitação dos monarcas, pois o imperador poderia agir sobre qualquer um dos outros poderes comprometendo assim a liberdade desses[17].

Desse modo, a Carta Constitucional previa a existência do poder “quadripartite”, sendo esses o moderador, exclusivo do monarca, além dos poderes judiciário, executivo e legislativo. No artigo 98, da Constituição Imperial, estava disposto a respeito do Poder Moderador como a chave para organizar a política nacional e responsável por manter a independência, equilíbrio e harmonia entre os demais poderes da nação.

O legislativo estava sujeito à dissolução, visto que existia a previsão de destituir a Câmara em hipóteses necessárias para salvação nacional, situações essas definidas de acordo com os interesses do governo. Durante o período de 1840 a 1889, o Poder Moderador dissolveu a Câmara dos Deputados pelo menos 13 (treze) vezes. Esse poder era visto de maneira desagradável pela população do país, de acordo com Frei Caneca[18], servia apenas como um mecanismo de opressão da nação brasileira, visto que gozava de uma vasta influência sobre os setores do Estado, suprimindo assim a liberdade dos outros três poderes. O religioso e político pernambucano, dizia que se tratava de uma invenção “Maquiavélica”, pois era a “(...) chave mestra da opressão da nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos.

Apesar do texto constitucional tentar apresentar esse poder como algo positivo, Frei Caneca apontava o artigo 99 (inviolabilidade do Imperador) e o artigo 101 (atribuições do Poder Moderador) como as principais demonstrações dos aspectos negativos desse instituto. Dessa forma, tornava-se perceptível a existência de atribuições quase absolutas do imperador para organizar a nação e os demais integrantes do governo. Desse modo, de acordo com Paulo Bonavides[19]:

Nossa primeira “ditadura constitucional” ocorreu ao alvorecer do Império. Foi obra do Poder Moderador, configurando, em verdade, um estranho paradoxo, do ponto de vista teórico, porquanto veio a ser exercitada precisamente por aquele Poder que havia sido concebido, teoricamente, pelo menos, como uma espécie de corregedoria dos três ramos em que se divide o exercício da soberania nacional (executivo, legislativo e judiciário).

O modelo de estado pensado pelo filósofo Benjamin Constant, presente o poder moderador como mecanismo para evitar a ocorrência de um desequilíbrio institucional, foi totalmente desvirtuado na prática do império, visto que funcionava apenas como instrumento para manter a estabilidade do trono. O Imperador não estava sujeito a qualquer responsabilidade, atuando como um controlador geral da nação, contrariando assim a ideia dos limites pelas leis e pela população.

Contrariando o pensamento de Benjamim Constant, também atuava como chefe do executivo, papel esse que deveria apenas ser exercido pelos ministros, demonstrando assim o esforço em atender os seus anseios absolutistas. Paulo Bonavides[20] também realiza outros comentários para evidenciar a natureza ditatorial desse quarto poder:

O pensamento central de seu autor – o publicista Constant – era fazê-lo uma espécie de poder judiciário dos demais poderes, investido claramente nessa tarefa corretiva para pôr cobro às exorbitâncias e aos abusos suscetíveis de abalar a unidade política do sistema. Mas tanto na letra constitucional como na execução, os políticos do império lhe desvirtuaram o sentido e a aplicação. Desvirtuaram-lhe o sentido, quando o consubstanciam em artigo da Carta como profissão de fé política e normativa de uma concentração de poderes sem paralelo na história dos países hemisféricos, que se constitucionalizaram à sombra dos dogmas da Revolução Francesa ou dos postulados da Revolução Americana. Basta ver a extensão de poderes conferidos a seu titular no art. 101 da Constituição Imperial de 25 de março de 1824/.../Demais disso, o Poder Moderador era a programação deliberada da ditadura porquanto contrariava a regra substantiva de Montesquieu da divisão e limitação de poderes.

A Constituição Imperial de 1824 implantou uma ditadura constitucional ao instituir a figura do poder moderador, conforme bem evidencia Pedro Lenza[21]:

O Imperador, que exercia o Poder Moderador, no âmbito do Legislativo, nomeava os Senadores, convocava a Assembleia Geral extraordinariamente, sancionava e vetava proposições do Legislativo, dissolvia a Câmara dos Deputados, convocando imediatamente outra, que a substituía. No âmbito do Poder Executivo, nomeava e demitia livremente os Ministros de Estado. E, por fim, no âmbito do Judiciário, suspendia os magistrados.

Ao se analisar o texto da Constituição Imperial de 1824[22] se verifica a sua classificação como mecanismo de articulação de toda política nacional:

Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos.

Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma.

Art. 100. Os seus Titulos são "Imperador Constitucional, e Defensor Perpetuo do Brazil" e tem o Tratamento de Magestade Imperial.

Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador

I. Nomeando os Senadores, na fórma do Art. 43.

II. Convocando a Assembléa Geral extraordinariamente nos intervallos das Sessões, quando assim o pede o bem do Imperio.

III. Sanccionando os Decretos, e Resoluções da Assembléa Geral, para que tenham força de Lei: Art. 62.

IV. Approvando, e suspendendo interinamente as Resoluções dos Conselhos Provinciaes: Arts. 86, e 87.

V. Prorogando, ou adiando a Assembléa Geral, e dissolvendo a Camara dos Deputados, nos casos, em que o exigir a salvação do Estado; convocando immediatamente outra, que a substitua.

VI. Nomeando, e demittindo livremente os Ministros de Estado.

VII. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154.

VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas e os Réos condemnados por Sentença.

IX. Concedendo Amnistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado.

Importante frisar que somente no Estado Brasileiro houve a positivação do Poder Moderador, criação intelectual do filósofo Benjamin Constant, não existindo nenhum outro país a adoção desse modelo de repartição dos poderes[23].

Após, será abordada a fragilizada independência do Poder Judiciário diante da Constituição Imperial de 1824.

 

6. A fragilizada independência do Poder Judiciário

A Carta Constitucional de1824 foi a de maior duração na histórica jurídica do país, vigente de 1824 a 1889, tendo aproximadamente 65 (sessenta e cinco) anos. Isso ocorreu especialmente em razão da sua natureza ditatorial. Influenciada pelo modelo de constitucionalismo inglês, no qual apenas é pauta constitucional aquilo que diz respeito aos poderes do Estado e os direitos individuais, teve somente uma modificação em seu texto, o ato adicional de 1834[24].

Amplos poderes sobre o controle de constitucionalidade foram concedidos ao Imperador e não ao Poder Judiciário, fato esse diferente da atual realidade jurídica. A Constituição Imperial[25], em seus artigos 151 e 152, delimitavam ao Poder Judiciário unicamente a função de aplicar as leis no caso concreto para dirimir os litígios.

Art. 151. O Poder Judicial independente, e será composto de Juizes, e Jurados, os quaes terão logar assim no Civel, como no Crime nos casos, e pelo modo, que os Codigos determinarem.

Art. 152. Os Jurados pronunciam sobre o facto, e os Juizes applicam a Lei.

Nota-se a falta de autonomia do poder judiciário para tornar inaplicável as normas consideradas contrárias a Constituição Imperial, gerando assim dependência aos caprichos do Imperador. O Poder Moderador, naquela época, era o responsável por avaliar a constitucionalidade, facilitando assim as posturas arbitrárias, pois não havia outro órgão estatal encarregado de reprimir atos políticos de natureza opostos a ideia do Estado Liberal. Ademais, poderia ter seus magistrados suspensos por ordem imperial.

O poder jurisdicional estava submetido aos interesses do executivo e do moderador, uma vez que a Justiça das suas decisões poderia ser analisada a critério desses outros poderes. Octaciano Nogueira[26] transcreve o posicionamento de Marquês de Paraná, ao afirmar que:

Não tenho notícia de lei alguma posterior à Constituição, constitutiva da Magistratura, e que, regulando o que a esse respeito fosse de direito na conformidade da Constituição, tivesse decidido que o Poder Executivo não podia aposentar os magistrados. Não tenho notícia de lei alguma sobre este objeto, regulando-se nesta parte pela antiga legislação, é evidente que o monarca tinha o direito de aposentar os Magistrados. Este direito era reconhecido na Ordenação do livro 1º, Título 50, §16; este direito era reconhecido na Ordenação do livro 2º, Título 54; este direito era reconhecido também em assento da Casa da Suplicação.

Existia uma determinada limitação aos juízes para o desenvolvimento de suas competências, pois o governo os controlavam por meio da livre promoção, remoção, suspensão e aposentadoria compulsória. Essa situação a qual os membros da justiça eram submetidos refletia uma cultura marcada pela ética colonial patrimonialista, fazendo da Administração Pública um ambiente marcado pela vontade do monarca. Antônio Carlos Wolkmer[27] evidencia essa realidade ao em seu livro, ao defender que:

O governo central utilizava-se dos mecanismos de nomeação e remoção de juízes para administrar seus interesses, fazendo com que a justiça fosse partidária, e o cargo, utilizado para futuros processos eleitorais (fraudes e desvios) ou mesmo para recompensar amigos e políticos aliados. Assim, o juiz deixava de apreciar conflitos de sua competência (impessoalidade, neutralidade) para entrar numa prática “antijudiciária”, em que só contava o atendimento ao partido aliado e aos chefes no interior.

Outro fator que limitava a atuação do judiciário era a negação de garantias constitucionais aos magistrados. A vitaliciedade e inamovibilidade, imprescindíveis para o exercício da jurisdição não eram assegurados, mostrando assim a fragilidade da independência tanto almejada para os poderes que compõe uma nação.

Um caso notório a respeito dessas violações, citado por Joaquim Nabuco em um dos seus livros, ocorreu durante o Ministério da Conciliação, entre 1853 e 1856, no qual dois juízes foram aposentados e um terceiro transferido por absolverem alguns réus considerados culpados pelo governo. Destarte, torna-se evidente a debilidade do Judiciário, pois além de não ter garantida a devida independência institucional, era punido quando contrariava os interesses da majestade.

O escritor Elival da Silva Gomes[28] relata sobre a situação vivenciada pelo Poder Judiciário:

Na verdade, é na concepção francesa, mas também no “rule of law” inglês, de supremacia do Parlamento e dos atos que dele emanam que iremos encontrar a justificativa de sua lacuna. E é sob sua luz que se devem compreender os dispositivos da Constituição de 1824 que cuidavam do Supremo Tribunal de Justiça (arts. 163 e 164). (...) Com efeito, algumas brechas deixadas pela Constituição de 1824 no desenho da instituição enquanto poder do Estado, bem como na aplicação distorcida de suas normas, fizeram com que o Poder Judiciário do Império viesse a ser tido por alguns como um ‘Poder dependente’.

              Um Estado não pode ser livre, enquanto os exercícios das funções estatais se voltaram para uma única pessoa ou órgão, é preciso buscar a separação dos poderes como um dos mecanismos garantidor do Estado Constitucional de Direito.

              Decorrida esse tópico, será apreciado de maneira suscita o papel Imperador como chefe do poder executivo.

 

7.  O Imperador como chefe do poder executivo

No papel de chefe do poder executivo organizava e administrava todo o país, havendo essa previsão no artigo 102, da Constituição Imperial. Em vista disso, de acordo com o autor Itaboraí, citado por José Afonso da Silva[29],  no Brasil “Aqui o Rei reinava, governava e administrava”, enquanto no modelo de Estado liberal inglês o monarca reina, porém não governa o país.

 O Senado e o Conselho de Estado eram os dois órgãos que reforçavam o poder do soberano, pois o primeiro essencialmente conservador e formado por membros escolhidos pelo Imperador, atuava contra os movimentos liberais da Câmara dos Deputados. Enquanto o Conselho de Estado funcionando como um aparelho consultivo auxiliando na tomada de decisões administrativas e na interpretação da Constituição Imperial[30].

A titularidade do poder executivo foi modificada nesse período, pois a ideia original consistia nas atribuições dessas funções aos ministros, porém no Brasil o responsável por essas atividades se tornou o Imperador, desfavorecendo assim o alcance do equilibro e da independência dos poderes almejados para um Estado liberal. Na verdade, o país estava longe de possuir uma nação verdadeiramente livre, pois havia um descompasso entre a constituição formal e a prática do Império.

Em seguida, será avaliado algumas restrições ao exercício dos direitos civis e políticos.

 

8. As restrições ao exercício dos direitos civis e políticos

O texto constitucional[31], em seu artigo 179, inciso IV, continha garantias políticas e civis aos cidadãos, prevendo que “todos podem comunicar os seus pensamentos por palavras, escritos, e publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura”, entretanto, jornalistas eram constantemente ameaçados e presos por manifestarem críticas ao governo.

Um jornalista, chamado Luís Augusto May, confiando no liberalismo do Estado realizou vários ataques ao Imperador, vindo a ser vítima de um espancamento em sua própria residência por um grupo de homens mascarados, onde alguns afirmam o envolvimento de Dom Pedro I na prática delituosa[32].

Outro aspecto ausente era a soberania popular, pois o sujeito outorgante da Carta Constitucional[33] acreditava ser o detentor da soberania do Estado Brasileiro. Ademais, praticamente inexistia representação política, posto que no capítulo XI, artigos 91, 94 e 95, haviam inúmeras restrições ao direito de participação eleitoral e voto. De acordo com o artigo 92 eram proibidos de exercer o voto:

Art. 92. São excluidos de votar nas Assembléas Parochiaes:

(...)

V - Os que não tiverem de renda liquida annual cem mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou Empregos.

Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-se I ´- Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego.

Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem nomeados Deputados. Exceptuam-se I - Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda liquida, na fórma dos Arts. 92 e 94.

Portanto, é notório que o texto não citava mulheres e escravos, apenas permitindo a participação, nas eleições indiretas, dos homens que possuíam determinada renda, caracterizando assim a figura do voto censitário.

Naquela época a população era composta de aproximadamente doze milhões de pessoas e dentre esses apenas existiam cento e cinquenta mil eleitores, observando assim a falta de representatividade dos reais interesses dos brasileiros. Explica Francisco Belisário Soares de Souza, citado por Octaciano Nogueira[34]:

Os candidatos não se preocupam com os eleitores, mas com o governo, cujas boas graças solicitam e imploram. Ser candidato do governo é o anelo de todo o indivíduo que almeja um assento no parlamento; proclamar-se e ser reconhecido como tal é o seu primeiro e principal cuidado. Ninguém se diz candidato dos eleitores, do comércio, da lavoura, deste ou daquela aspiração nacional, mas do governo (…). Os solicitadores se acotovelam nas ante-salas dos Ministros e Presidentes de Província e abandonam os comícios populares; naqueles e não nestes pleiteiam suas candidaturas. Tudo tornou-se oficial nas eleições. O mais desconhecido cidadão nomeado Presidente de Província constitui-se logo w, por este único fato, o único poder eleitoral da Província a que preside. O Ministro do Império, seja o mais nulo dos políticos de seu partido, faz e desfaz Deputados ao seu talante, desde o Alto Amazonas até o Mato Grosso, com uma simples carta de recomendação. O que se observa nas altas regiões políticas reproduz-se nos colégios e freguesias eleitorais.

A Constituição Imperial iniciava com uma assertiva ilusória afirmando que o Império era uma organização política de todos os brasileiros, porém como se visualizou, apenas 1% (um por cento) da população tinha algum tipo de influência na vida política do país. Para o Imperador, uma boa democracia seria apenas aquela no qual pudesse haver o controle da família real, garantindo assim os seus anseios. Além do mais, o Poder Moderador dificultava a efetivação dos direitos fundamentais previstos naquela constituição, pois agia em praticamente todos os assuntos referentes a organização da vida política, assim como ilustra Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins[35]: “A concretização dos direitos fundamentais ficou, entretanto, comprometida com a criação do Poder Moderador que concedia ao imperador poderes constitucionalmente ilimitados”.

Findando, será verificado de maneira breve o cenário da escravidão durante o Império Brasileiro.

 

9. A escravidão durante o império brasileiro.

Em 1822, quando o país se tornou independente de Portugal, as elites locais se dedicaram para modernizar as instituições, porém mantendo o escravo como a principal força de trabalho. O grande dilema durante o século XIX se consistiu em defender o liberalismo, discursando em favor das liberdades individuais e coletivas, enquanto se mantinha o escravo isento desse rol de direitos inerentes a qualquer pessoa, apesar da declaração de direitos e garantias arrolada na Constituição Imperial o artigo 179, o sistema escravocrata foi mantido para continuar movimentando a economia[36].

Era visível a ilegalidade de um regime que vai à contramão dos princípios fundamentais do direito moderno. A liberdade deve ser uma das principais bandeiras da população e do Estado, pois sem essa, os outros preceitos básicos não podem ser exercidos em sua plenitude.  A teoria da liberdade individual, desenvolvida por Johann Kaspar Bluntschli[37] disciplinava que:

1. Não há propriedade do homem sobre o homem. Todo homem é uma pessoa, isto é, um ente capaz de adquirir e possuir direitos.

2. O direito internacional não reconhece a nenhum Estado e nenhum particular o direito de ter escravos.

3. Os escravos estrangeiros tornam-se livres de pleno direito desde que pisam em solo de um Estado livre, e o Estado que os recebe é obrigado a respeitar-lhes a liberdade.

4. O comércio de escravos e os mercados de escravos não são tolerados em parte alguma. Os Estados civilizados têm o direito e o dever de apressar a destruição desses abusos onde quer que se encontrem.

Os princípios mencionados acima, presentes na obra Direito Internacional Codificado, consideram a escravidão um fator severo que não deve ter amparo em qualquer tipo de legislação. Hipoteticamente se existisse algum tipo de base normativa para isso, mesmo assim, a lei de um país só poderia determinar a escravização dos seus nacionais, não tendo poder assim para permitir a escravidão dos africanos. Além disto, mesmo supondo que indivíduos tidos como cidadãos fossem a vítima desse sistema, a norma ainda não poderia os submeter a tal situação, porquanto a Constituição Imperial garante essa proteção aos nacionais. Esses argumentos de Johann Kaspar Bluntschli possuem como objetivo mostrar a ilegalidade e contradição de um regime que ataca as liberdades individuais.

O movimento abolicionista buscou acabar com a escravidão, não apenas por ser moralmente incorreta, mas também por ser contrária a própria legislação pátria, tendo em vista a existência de leis como a Eusébio Queiroz, Ventre Livre e Sexagenário[38].

Na antiguidade e durante muitos séculos se procuravam legitimar a dominação de um senhor sobre seu escravo, configurando esse abuso como o direito de propriedade e o assimilando a propriedade sobre animais domésticos. Entretanto, gradativamente a civilização europeia foi limitando esse abuso de poder.

No Brasil, essa degradação da própria natureza humana estava tão enraizada na cultura do país de acordo com Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo[39]Quem chega no Brasil e abre um dos nossos jornais encontra logo uma fotografia da escravidão atual, mais verdadeira do que qualquer pintura”. Desse modo, é evidente a falácia da dita nação liberal existente naquele momento, pois constantemente eram acionados juízes, policiais e se necessário fosse até mesmo o exército para forçar crianças, homens e mulheres a trabalhar de forma incessante sem a mínima dignidade. Ainda na concepção do abolicionista[40], a Constituição Imperial era negligente no que tange a abordagem dos escravos, pois:

Qualquer palavra que desmascarasse essa triste constituição social reduziria o foral das liberdades do Brasil, e o seu regime de completa igualdade na Monarquia democratizada, a uma impostura transparente; por isso a Constituição não falou em escravos, nem regulou a condição desses. Isso mesmo era uma promessa a esses infelizes, de que o seu estado era todo transitório, a atribuir-se a lógica à vergonha mostrada pelos que nos constituíram por aquele decreto. 

Em 1855, quando o governo encarregou o jurista Teixeira de Freitas para a elaboração e codificação das primeiras leis civis, a temática escravista estava omissa. Um país que tinha o trabalho escravo como base do sistema econômico e social, maquiou a realidade ao não tratar desses indivíduos nas principais legislações que regulavam a vida cotidiana, servindo assim para os manter no estado bárbaro que se encontravam.

Apesar de toda funesta realidade, existiam indivíduos que lutavam para abolir a escravatura, influenciados principalmente pela ideia iluminista de liberdade que circulavam a atmosfera do ambiente acadêmico. Sujeitos como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Francisco Montezuma e Luiz Gama, disseminavam veementemente ideias liberais e advogavam em busca da alforria de escravos. Os tribunais tornaram-se o palco para questionar o paradigma da escravidão e liberdade, deslegitimando gradativamente esse regime de dominação instituído na sociedade[41].

            O princípio da liberdade, aclamado na Revolução Francesa e na Declaração dos Direitos do homem e do Cidadão, estava inserido na concepção desses defensores e foi fundamental para motivá-los a pressionar o poder monárquico.  O abolicionista Francisco Jê Acaiaba Montezuma[42] ao se referir ao negro falava que esse “abriga sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade”.

O advogado baiano Luiz Gama[43] litigou e conseguiu judicialmente a liberdade de aproximadamente quinhentos escravos, atuando de maneira totalmente gratuita. Diz que certo dia, surge em seu escritório um escravo que a suplica a ajuda do abolicionista para atuar em sua defesa, surgindo logo em seguida o proprietário do negro para questionar o porquê de alguém querer a liberdade se era bem tratado, então ele responde: “falta-lhe o principal! Falta-lhe a liberdade de ser infeliz onde e como queira”.

A Constituição Imperial[44] em seu título 8º, caput do artigo 179, previa a inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos, como a liberdade, segurança individual e propriedade, assim como no inciso XIX a vedação as práticas de tortura, açoites, marcas de ferro e todas as demais penas cruéis. Todavia, o artigo 60, do Código Criminal de 1830[45] determinava que:

Art. 60. Se o réo for escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés, será condemnado na de açoute, e depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo tempo, e maneira que o juiz designar. O número de açoutes será fixado por sentença; e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta.   

Nesse período, um dos julgamentos históricos foi o que levou o escravo “Ricardo” a ser condenado a forca por ter tentado contra a vida de “José Bernardes”. Tudo começou em 24 de fevereiro de 1850, quando o negro feriu gravemente “Bernardes” após tentar se defender de injustas agressões do feitor da fazenda. Essa situação, na concepção de Luiz Gama[46] é perdoável, pois ‘’perante o direito, é justificável o crime do escravo perpetrado na pessoa do senhor”.

Também atuando em defesa da liberdade, o ilustre Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo, em Recife/PE, enfrentou uma das maiores batalhas intelectuais ao defender diante do júri popular um escravo confessadamente assassino. O crime foi motivado por retaliação, uma vez que “Tomás” após ser açoitado em praça pública, matou o seu senhor com um tiro à queima-roupa e o guarda logo ao ser detido.  Essa seria uma das defesas mais difíceis, no entanto Joaquim Nabuco aproveitou a repercussão do caso para defender as pautas abolicionistas. Diante dos jurados proferiu um discurso polêmico, concluindo que o escravo não cometeu crime alguém, apenas teria removido um obstáculo da sua vida. Diante de todas as explanações, surge o questionamento no que se a essência do liberalismo nacional, pois, nas palavras de José Bonifácio, citado pelo renomado Joaquim Nabuco[47] em seu livro O abolicionismo:

Sem a emancipação dos atuais cativos nunca o Brasil firmará sua independência nacional e segurará e defenderá a sua liberal constituição. Sem liberdade individual não pode haver civilização, nem sólida riqueza; não pode haver moralidade e justiça, e sem estas filhas do céu, não há nem pode haver brio, força e poder entre as nações.

            Desse modo, verifica-se que a escravidão contribuiu para debilitar a imagem liberal da Constituição Imperial de 1824, ocasionando assim uma verdadeira dissociação entre o Brasil das aspirações teóricas e o do cotidiano da população que mais carecia de liberdade.

 

Conclusão

Este artigo tratou das controvérsias existentes no liberalismo imperial, evidenciando as discordâncias no que tange aos discursos de caráter moderno que ecoavam nos ambientes políticos e a realidade político-social do Brasil durante o Império.

É evidente que a maneira como esse movimento se dissipou por todo o território se distinguiu dos aspectos revolucionários eclodidos na Europa e Estados Unidos da América, facilitando assim a estruturação de um governo despótico. A própria nobreza e membros da elite do país atribuíram a si o papel de introduzir as concepções iluministas na nação, moldando o Estado com o liberalismo que era conveniente aos seus interesses.

O objetivo do movimento liberal era criar uma Constituição que freasse o poder arbitrário das monarquias absolutistas, garantindo assim liberdade e outros direitos individuais aos cidadãos.  Todavia, no Brasil o Imperador instituiu diversos mecanismos no texto da lei fundamental para manter a sua vasta influência nas decisões nacionais e a estabilidade da diante o cenário político.

Desde o primeiro momento na tentativa de estruturação de um Estado Liberal, o Imperador acabou com todas as expectativas progressistas ao dissolver a Assembleia Nacional Constituinte que seria a responsável por elaborar a primeira constituição do país, outorgando os seus interesses para o país.

O Poder Moderador era um verdadeiro instrumento a serviço dos anseios absolutistas do governo imperial, pois tinha atribuições quase ilimitadas em relação aos outros poderes, fragilizando assim a independência do judiciário e legislativo.

Outrossim, a organização estrutural do Estado, assim como a dissociação entre o Brasil legal e o real, comprometeram o exercício dos direitos e garantias individuais, tornando explícito o caráter antidemocrático das relações sociais e políticas.

Como também foi exposto anteriormente, o sistema escravista mantido durante todo o período colonial e imperial, enquadrada por alguns como direito a propriedade, colocava em cheque o discurso liberal da Constituição Imperial. E, diante toda situação de violação a direitos previstos na Constituição, vários indivíduos influenciados pelas ideais iluministas questionavam todo instante a lógica de escravidão.

Destarte, a política adotada durante esse período opõe-se à natureza do movimento constitucional moderno, pois em vez de garantir a independência dos poderes, liberdades individuais e políticas, mostrou na realidade o inconsistente estado liberal brasileiro.  Apesar das divergências doutrinarias, nota-se que o liberalismo exercido nesse período permaneceu apenas em seus aspectos meramente formais, comprometendo assim a efetivação dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

 

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Sobre os autores
Leonardo Barreto Ferraz Gominho

Graduado em Direito pela Faculdade de Alagoas (2007); Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2010); Especialista e Mestre em Psicanálise Aplicada à Educação e a Saúde pela UNIDERC/Anchieta (2013); Mestre em Ciências da Educação pela Universidad de Desarrollo Sustentable (2017); Foi Assessor de Juiz da Vara Cível / Sucessões da Comarca de Maceió/AL - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Foi Assessor do Juiz da Vara Agrária de Alagoas - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Conciliador do Tribunal de Justiça de Alagoas. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito das Obrigações, das Famílias, das Sucessões, além de dominar Conciliações e Mediações. Advogado. Professor da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Professor e Orientador do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Responsável pelo quadro de estagiários vinculados ao Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF - CCMA/FACESF, em Floresta/PE, nos anos de 2015 e 2016. Responsável pelo Projeto de Extensão Cine Jurídico da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF, desde 2015. Chefe da Assessoria Jurídica do Município de Floresta/PE. Coautor do livro "Direito das Sucessões e Conciliação: teoria e prática da sucessão hereditária a partir do princípio da pluralidade das famílias". Maceió: EDUFAL, 2010. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico I: discutindo o direito por meio do cinema”. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821832; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito civil e direito processual civil”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821749; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821856. Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 02. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558019. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico II: discutindo o direito por meio do cinema”. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558002.

Ana Carolina Torres Carvalho

Acadêmica de Direito da FACESF.

Informações sobre o texto

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