1. INTRODUÇÃO
No sistema carcerário brasileiro, composto, em sua grande maioria, pelos denominados criminosos comuns, vem ganhando relevante destaque para a ciência da criminologia o estudo da psicopatia, assim considerada como o diagnóstico psiquiátrico-forense determinante da probabilidade elevada de reincidência criminal.
A psicopatia pode ser compreendida como um transtorno específico da personalidade, decorrente de uma anomalia do desenvolvimento psicológico, sinalizado por extrema insensibilidade aos sentimentos alheios (ausência total de remorso), levando o indivíduo a uma acentuada indiferença afetiva. Enquanto os criminosos comuns almejam riqueza, status e poder, os psicopatas apresentam manifesta e gratuita crueldade.
O fato é que, a despeito de padecer de um transtorno de personalidade, o psicopata é inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato delituoso por ele praticado. Contudo, resta perquirir se o mesmo é capaz de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Eis aí, pois, o ponto crucial da discussão, que será abordado no trabalho, ensejador de relevante celeuma que gira no meio jurídico em torno da psicopatia, advindo da imputabilidade de tais sujeitos; vale dizer, se os psicopatas podem ser considerados como semi ou plenamente imputáveis.
O ordenamento jurídico-penal brasileiro é totalmente silente quanto à responsabilidade penal do criminoso que é diagnosticado como psicopata. E esse silêncio do legislador tem levado os juízes a enquadrarem os psicopatas, ora como imputáveis, ora como semi-imputáveis.
Definir a forma de responsabilização penal do psicopata é de suma importância. Caso se entenda que o mesmo é imputável, responderá ele pelo crime da forma como praticado, em estrita observância ao preceito secundário previsto para a norma infringida.
Por outro lado, a se entender que o psicopata é semi-imputável, haverá redução da pena, de um a dois terços, na forma determinada pelo artigo 26, parágrafo único, do Código Penal.
Dessa forma, o presente trabalho propõe a análise, ainda que em breves linhas, do tratamento dispensado pelo ordenamento jurídico-penal brasileiro ao psicopata que pratica crime, assim como, se há compatibilidade entre o ordenamento vigente e a aplicação a casos concretos, pelo Poder Judiciário, mediante a apresentação de casos específicos julgados e o seu acerto frente às técnicas de interpretação jurídica aplicada.
Com base nessas considerações, destaca-se a importância da presente pesquisa, revelando-se imprescindível estudar tal temática, sobretudo a partir de uma análise da jurisprudência dos Tribunais pátrios, a fim de que seja possível chegar a uma conclusão acerca da responsabilidade penal do psicopata.
2. A DEFINIÇÃO DE PSICOPATIA
Robert Hare, um dos maiores nomes da atualidade no estudo da psicopatia, define tal anomalia como um “conjunto de traços de personalidade e também de comportamentos sociais desviantes”[1]. Segundo referido autor:
Os psicopatas não são pessoas desorientadas ou que perderam o contato com a realidade; não apresentam ilusões, alucinações ou a angústia subjetiva intensa que caracterizam a maioria dos transtornos mentais. Ao contrário dos psicóticos, os psicopatas são racionais, conscientes do que estão fazendo e do motivo por que agem assim[2].
A psiquiatria brasileira, capitaneada por Hilda Morana, classifica a psicopatia como um “Transtorno de Personalidade” ou, mais especificamente, um “Transtorno Global de Personalidade (TG)”. Nesse sentido, de acordo com Morana:
Segundo Hare, os psicopatas diferem de modo fundamental dos demais criminosos. Ele realizou uma pesquisa com o objetivo de encontrar parâmetros que pudessem diferenciar a condição de psicopatia e criou um instrumento de pesquisa, a escala PCL-R. essa escala é um checklist de 20 itens, recentemente validada no Brasil por Morana, com pontuação de zero a dois para cada item, perfazendo um total de 40 pontos. […] Em trabalho recente, Morana et al., por meio de análise de cluster de sujeitos criminosos classificados com transtorno antissocial da personalidade, estabeleceram dois tipos de personalidades antissociais: transtorno global (TG) e transtorno parcial, que encontraram equivalência estatística com psicopatia e não psicopatia tal qual estabelecido por Hare et al. O estudo foi realizado por meio do ponto de corte obtido no PCL-R. […] O grupo com transtorno parcial tem uma manifestação caracterológica significativamente atenuada do grupo da psicopatia, por meio da pontuação na escala PCL-R[3].
Ademais, no artigo “O que é um psicopata?”, publicado na revista “Scientific American – Mente Cérebro”, depreende-se que:
O termo psicopata foi descrito pela primeira vez em 1941 pelo psiquiatra americano Hervey M. Clecklet, do Medical College, da Geórgia, a psicopatia consiste num conjunto de comportamentos e traços de personalidade específicos. Encantadoras à primeira vista, essas pessoas geralmente causam boa impressão e são tidas como “normais” pelos que as conhecem superficialmente. No entanto, costumam ser egocêntricas, desonestas e indignas de confiança. Com frequência adotam comportamentos irresponsáveis sem razão aparente, exceto pelo fato de se divertirem com o sofrimento alheio. Os psicopatas não sentem culpa. Nos relacionamentos amorosos são insensíveis e detestam compromisso. Sempre têm desculpas para seus descuidos, em geral culpando outras pessoas, raramente aprendem com seus erros ou conseguem frear impulsos[4].
Por tudo isso, conclui-se que a psicopatia pode ser compreendida como um transtorno global e específico da personalidade, decorrente de uma anomalia do desenvolvimento psicológico, sinalizado pela extrema insensibilidade aos sentimentos alheios (ausência total de remorso/sentimento de culpa), levando o indivíduo a uma acentuada indiferença afetiva.
O portador de psicopatia não é um deficiente mental; tampouco sofre de alucinações ou problemas de identidade, como pode ocorrer com as vítimas da esquizofrenia. Nesse sentido, assim leciona EÇA:
A psicopatia não é exatamente um problema mental, no sentido da loucura, sobre a qual estávamos acostumados a pensar, considerando-a um distúrbio qualitativo; trata-se, isto sim, de uma zona fronteiriça entre a sanidade mental e a loucura, pois, na prática os pacientes não apresentam quadros produtivos, com delírios ou alucinações (para ser dado alguns exemplos) e tampouco perdem o senso da realidade, alterando-se somente a quantidade de reações que eles apresentam. Em verdade, conhece-se a personalidade psicopática através da constatação de que existem certos indivíduos que, sem apresentar alterações da inteligência, ou que não tenham sofrido sinais de deterioração ou degeneração dos elementos integrantes de seu psiquismo, exibem, através de sua vida, sinais de serem portadores de intensos transtornos dos instintos, da afetividade, do temperamento e do caráter, sem, contudo, assumir a forma de verdadeira enfermidade mental. São desta forma, em sua grande maioria, pessoas que se mostram incapazes de apresentar sentimentos altruístas, tais como sentir pena ou piedade e de se enquadrar nos padrões éticos e morais das sociedades em que vivem, já que apresentam um profundo desprezo pelas obrigações sociais. Suas motivações são muito mais as de satisfação plena de seus desejos, associadas a uma falta de consideração com os sentimentos dos outros, o que os leva frequentemente, por exemplo, a se envolver em um golpe financeiro, na falência de um concorrente ou, nos casos mais radicais e que chegam mais próximo da aparição ao grande público, no cometimento de um estupro ou de um assassinato[5].
Conforme dito, o psicopata é insensível aos sentimentos do outro, condição essa presente tanto nos sujeitos ambiciosos como naqueles cruelmente perversos. Todavia, enquanto os criminosos comuns almejam riqueza, status e poder, os psicopatas apresentam manifesta e gratuita crueldade.
A propósito, segundo Robert Hare, citado por Morana, “a definição de psicopatia é operacional e se resume em: ‘[…] predadores intraespécie, que empregariam quaisquer meios, inclusive a violência, para satisfazer suas necessidades egoísticas”[6].
Ainda, segundo informações extraídas em sites de busca, o psicopata define-se por uma procura contínua de gratificação psicológica, sexual, ou impulsos agressivos e da incapacidade de aprender com os erros do passado. São pessoas manipuladoras, sem nenhuma consideração pelo próximo, sem inclusive reconhecer seus semelhantes como seres humanos.
Podem, ainda, ser simpáticos e sedutores – e usarem essas qualidades para mentir e enganar os outros. Embora no plano intelectual entendam perfeitamente a diferença entre o certo e o errado, os psicopatas não são dotados de emoções morais: não tem arrependimento, culpa, piedade nem vergonha. São incapazes de nutrir qualquer empatia pelo próximo[7].
Dentre tantas peculiaridades do psicopata, a que mais chama a atenção é a total ausência de culpa. O psicopata usa as pessoas para obter o que deseja, seja usando a crueldade para obter prazer, ou através da usura e exploração[8]. Seus atos criminosos não provêm de mentes adoecidas, mas sim de um raciocínio frio e calculista combinado com a total incapacidade de tratar as outras pessoas como seres humanos pensantes e com sentimentos.
De acordo com Morana, depreende-se ainda que:
O comportamento dos transgressores diagnosticados como psicopatas difere de modo fundamental dos demais criminosos nos seguintes aspectos: os primeiros são os responsáveis pela maioria dos crimes violentos em todos os países; iniciam a carreira criminal em idade precoce; cometem diversos tipos de crimes e com maior frequência que os demais criminosos; são os que recebem o maior número de faltas disciplinares no sistema prisional; apresentam insuficiente resposta aos programas de reabilitação; e apresentam os mais elevados índices de reincidência criminal[9].
No mais, é importante mencionar que nem todos os psicopatas derivam para o crime. Mas a ausência de qualquer escrúpulo e a habilidade para manipular e enganar suas vítimas transformam os portadores do distúrbio em criminosos especialmente perigosos.
3. CULPABILIDADE: IMPUTABILIDADE, SEMI-IMPUTABILIDADE E INIMPUTABILIDADE:
O instituto jurídico-penal denominado “culpabilidade” é conceituado por Rogério Greco como o juízo de reprovação pessoal que se realiza sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente[10].
São elementos da culpabilidade a imputabilidade do agente, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.
Na lição de Cunha, “imputabilidade é capacidade de imputação, ou seja, possibilidade de se atribuir a alguém a responsabilidade pela prática de uma infração penal”[11].
Além disso, ainda de acordo com Cunha, a semi-imputabilidade, prevista no art. 26, parágrafo único, do Código Penal, ocorre quando o agente, “(…) em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”[12].
No caso de semi-imputabilidade, de acordo com o art. 26, parágrafo único, do Código Penal, a pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Por fim, ocorre a chamada “inimputabilidade” quando o agente, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Nesse caso, não se aplica pena privativa de liberdade ou penas restritivas de direitos, ocorrendo, assim, a chamada absolvição imprópria, com a consequente aplicação de medida de segurança, nos termos do art. 97 do Código Penal.
4. A RESPONSABILIDADE PENAL DO PSICOPATA
Questão tormentosa no âmbito jurídico é definir os rumos da responsabilidade penal do psicopata, isto é, se referidos indivíduos são imputáveis, semi-imputáveis ou mesmo inimputáveis.
O fato é que a doutrina da psiquiatria forense é uníssona no sentido de que, a despeito de padecer de um transtorno de personalidade, o psicopata é inteiramente capaz de entender o caráter ilícito de sua conduta, restando perquirir, assim, se ele é capaz de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Nesse sentido, para Morana e outros, “os transtornos de personalidade (TP) não são propriamente doenças, mas anomalias do desenvolvimento psíquico, sendo considerados, em psiquiatria forense, como perturbação da saúde mental”[13].
Os mesmos autores asseveram que “a capacidade de entendimento depende essencialmente da capacidade cognitiva, que se encontra, via de regra, preservada no transtorno de personalidade antissocial, bem como no psicopata”[14].
Nesse sentido, Robert Hare entende que o comportamento dos psicopatas “[…] é resultado de uma escolha exercida livremente”[15].
Por sua vez, o célebre penalista Nelson Hungria afirmava, ainda na década de 1940, que “a responsabilidade penal do psicopata, embora com atenuação facultativa de pena, não é somente uma ilação da moderna psiquiatria, mas uma necessidade de defesa social”[16].
Assim, o psicopata, via de regra, possui a capacidade de entendimento (cognitiva) preservada, remanescendo dúvida quanto à capacidade de determinação (volitiva).
Nesse sentido, ainda de acordo com Morana e outros:
Em relação à capacidade de determinação, ela é avaliada no Brasil e depende da capacidade volitiva do indivíduo. Pode estar comprometida parcialmente no transtorno antissocial de personalidade ou na psicopatia, o que pode gerar uma condição jurídica de semi-imputabilidade. Por outro lado, a capacidade de determinação pode estar preservada nos casos de transtorno de leve intensidade e que não guardam nexo causal com o ato cometido. Na legislação brasileira, a semi-imputabilidade faculta ao juiz a pena ou enviar o réu a um hospital para tratamento, caso haja recomendação médica de especial tratamento curativo[17].
Em sua tese de doutorado, Morana, em uma obra antológica e com a maestria que lhe é peculiar, assim preleciona:
A capacidade de determinação para o sistema penal de outros países restringe-se ao que é denominado de ‘impulso irresistível’ (formulado em Ohio, 1834). Em nosso sistema penal a capacidade de determinação não se restringe apenas ao ‘impulso irresistível’ que seria o caso para sujeitos com descontrole dos impulsos, mas também ao prejuízo da capacidade do sujeito em não poder resistir ao seu modo habitual de ser, como é o caso dos sujeitos com personalidade antissocial com características de perversidade. Contudo, a tendência do judiciário atualmente é a de considerar como semi-imputável apenas os sujeitos que apresentem comprometimento dos impulsos e neste sentido seguir a orientação internacional[18].
Por fim, em comentários ao art. 26, parágrafo único, do Código Penal, Mirabete assim preconiza:
Refere-se a lei em primeiro lugar à perturbação da saúde mental, expressão ampla que abrange todas as doenças mentais e outros estados mórbidos. Os psicopatas, as personalidades psicopáticas, os portadores de neuroses profundas, em geral têm capacidade de entendimento e determinação, embora não plena[19].
Portanto, é afastada de plano a inimputabilidade do psicopata, vez que o mesmo possui plena capacidade de entendimento (cognitiva), de modo que referido indivíduo pode ser considerado imputável ou mesmo semi-imputável, isto a depender do caso concreto.