Ação e Significado
A explicação da ação, portanto, não é abarcada de maneira nenhuma por uma teoria pura da sociedade, entretanto, muito do que se tem feito para explicar a ação não passa de descrição de determinadas ordens normativas. Por isto, a teoria pura acaba por apontar determinados pontos problemáticos na teoria da ação, justamente porque esta ultrapassa seus limites, tentando elaborar um estudo de sentidos, significados, não subjetivos.
As esferas de valor
É bastante conhecida e utilizada em sociologia uma divisão de determinadas esferas de valor, distintas por seu conteúdo material, que abarcam em separado, pelo menos, a economia, a cultura e o social. Por vezes se distingue uma esfera religiosa ou uma estética, mas sempre tais divisões são feitas em função do conteúdo específico destas diversas ordens.
Ora, para uma teoria pura da sociedade, esta é um conjunto de elementos cuja única especificidade é o elo normativo. Estes elementos, portanto, ainda que coincidam, e o fazem, com os elementos que compõe a natureza enquanto um conjunto de elementos causalmente vinculados, são distintos pela específica forma pela qual estão ligados. A rigor, a sociedade é a forma normativa, não os elementos interligados.
Assim, não é bem uma casa que faz parte da sociedade, mas as normas sobre como construí-la, habitá-la, destruí-la. Da mesma forma os seres humanos não são o componente específico da sociedade, mas as normas sobre como devem agir.
Colocado este primeiro ponto cabe considerar que como as ordens sociais são distintas em função de suas normas fundamentais, ou seja, por uma diferença formal, não o podem ser por qualquer diferença de conteúdo. Com isto chega-se à conclusão que não há qualquer esfera de sentido ou de valor reservada a qualquer ordem social. A morte não é objeto de regulamentação apenas da religião, mas também do estado, da etiqueta, da arte e da ciência. O sexo não é reservado à erótica ou à religião ou ao estado. Todas as ordens sociais abordam todas as "esferas de valor" ou "esferas de sentido".
Daí ser dificilmente compreensível a distinção em um mundo "privado" e um mundo "público". Tanto o estado como a religião ou a família podem regular o comportamento do indivíduo seja "entre quatro paredes" seja em meio a uma turba revolucionária.
As relações entre Religião e Estado
Como anteriormente realçado, sendo a religião e o estado ordens sociais, não são passíveis de ter quaisquer relações entre si senão nas formas próprias às normas ou aos conjuntos. Ou seja, as únicas relações possíveis entre religião e estado são aquelas da teoria dos conjuntos e as propriamente normativas. As outras "relações" não são entre "religião" e "estado" mas entre seres humanos concretos, ou representam algum processo psíquico de tratamento não lógico de idéias.
Uma religião não é capaz de agir. Não é um ser vivo. Tampouco o é o estado. Uma religião não espirra da mesma forma que não se imiscui ou influencia um estado. Tampouco o estado se espelha ou se adequa a uma religião. Estas são apenas metáforas que pretendem, possivelmente, dizer que uma determinada religião subordina, no sentido de uma específica relação normativa (que significa que as normas da ordem subordinada devem ser logicamente adequadas às da ordem supra-ordenada e que, em havendo contradições, consideram-se válidas as normas da ordem supra e não subordinada).
Assim, as relações apontadas por Max Weber entre o Espírito do Capitalismo e a Ética Protestante são relações de intersecção de conjuntos de normas. Ou seja, determinados comportamentos são dispostos como devidos de acordo com ambas estas ordens normativas. A relação encontrada por Tocqueville entre a igualdade e o catolicismo é uma relação de continência, ou seja, a "igualdade" no sentido de que os indivíduos devem ser tratados de forma idêntica, está contida nas normas que compõe o catolicismo.
Talvez a mais importante conclusão que estas considerações alcançam esteja na adequada interpretação dos resultados obtidos com o estudo de ordens sociais. Tais estudos costumam alcançar conclusões empírico-causais, na forma "se A, então B", sendo que, apesar disto comportam normalmente conceitos com significado normativo, como "igualdade" ou "vocação" (que significa um determinado modo de vida que é devido de acordo com determinada ordem). Ao interpretar tais resultados normativamente, tem-se um resultado claro e preciso que dispensa o recurso à "probabilidade" ou "possibilidade" do comportamento efetivo.
As construções ideal-típicas
Max Weber ao definir a ação social como um comportamento humano dotado de sentido subjetivo orientado para a conduta de outro ser humano, libertou a sociologia dos recursos a entes sobre-humanos e ao sentido objetivo. No entanto, diante da impossibilidade de determinar o sentido subjetivamente pensado e, principalmente, da impossibilidade de encontrar nesta pluralidade de sentidos individuais a unidade de um fenômeno social, Weber trouxe em socorro a "média" social de uma determinada ação e o tipo ideal.
Segundo o autor:
Por "sentido" entendemos el sentido mentado y subjetivo de los sujetos de la acción, bien a) existente de hecho; en un caso históricamente dado, ) como promedio y de un modo aproximado, en una determinada masa de casos: bien b) como construido en un tipo ideal con actores de este carácter. En modo alguno se trata de un sentido "objetivamente justo" o de un sentido "verdadero" metafísicamente construido. Aquí radica precisamente la diferencia entre las ciencias empíricas de la acción, la sociología y la historia, frente a toda ciencia dogmática, jurisprudencia, lógica, ética, estética, las cuales pretenden investigar en sus objetos el sentido "justo" y "válido". (WEBER, 1997: 6)
O sentido "existente de fato" é posto pelo próprio Weber em contraposição ao sentido ideal típico, que não existe de fato. Tampouco existe um sentido "médio". Se pudéssemos quantificar o quão poderoso é um deus na significação subjetiva de diversos indivíduos e se tal trabalho fosse feito com todos os adeptos de uma determinada religião, o que significaria dizer que o deus daquela religião é poderoso em grau 35, em média? Ou o que significa dizer que a maioria dos membros de uma dada religião crêem, de fato, na reencarnação?
Um número bastante grande de católicos no Brasil atual crê na reencarnação. Isto poderia ser revelado em um survey. Digamos que tal pesquisa fosse realizada e se descobrisse que 30% da população católica crê na reencarnação. Isto por acaso significa que existe um sentido de catolicismo que, ou que o catolicismo, aceita a reencarnação em alguma medida?
O "sentido médio" é mera estatística de sentidos subjetivos. Não representa nenhum sentido objetivo e não representa, muito menos, um sentido de uma massa, ou conjunto de pessoas. Não serve como unidade de uma ordem, de um estado ou de uma religião. Não há, empírico-causalmente, qualquer sentido além do subjetivo.
O sentido ideal típico é uma construção ideal. Como tal tem o mesmo status ontológico que o sentido objetivo dos juristas e lógicos, ou seja, é um sentido subjetivo do pesquisador. Entretanto, o tipo ideal é construído com um rigor duvidoso, de forma não necessariamente lógica e sem preocupações com a possibilidade de contradição. Weber afasta de sua análise o sentido objetivo dos juristas para reintroduzir um sentido objetivo que pretende imputar à realidade e considerar qualquer comportamento destoante como um "desvio".
Posteriormente, o método ideal típico ganha em precisão quando pretende estabelecer uma conduta racionalmente orientada a um fim. O fim, entretanto, é estabelecido pelo pesquisador, bem como os meios disponíveis.
Segundo Weber,
Siempre se trata de un sentido empírico y mentado por los partícipes – sea en una acción concreta o en un promedio o en el tipo "puro" construido – nunca de un sentido normativamente "justo" o metafísicamente "verdadero". La relación social consiste sola y exclusivamente – aunque se trate de "formaciones sociales" como "estado", "iglesia", "corporación", "matrimonio", etc. – en la probabilidad de que una forma determinada de conducta social, de carácter recíproco por su sentido, haya existido, exista o pueda existir. Cosa que debe tenerse siempre en cuenta para evitar la sustancialización de estos conceptos. Un "estado" deja, pues, de existir sociológicamente en cuanto desaparece la probabilidad de que ocurran determinadas acciones sociales con sentido. Esta probabilidad lo mismo puede ser muy grande que reducida hasta el límite. En el mismo sentido y medida en que subsistió o subsiste de hecho esa probabilidad (según estimación), substió o subsiste la relación social en cuestión. No cabe unir un sentido más claro a la afirmación de que un determinado "estado" todavía existe o ha dejado de existir. (WEBER, 1997: 22)
Weber está enganado. Jamais sociólogo algum mediu o estado como um número entre 0 e 1. Se o estado fosse uma probabilidade isto seria possível. Uma probabilidade que possa ser tanto muito grande quanto próxima a um limite mínimo (zero?), é simplesmente um meio de fugir à mensuração. Como se não bastasse, Weber admite a mera "possibilidade". Ora, se um casamento consiste na "possibilidade" de que determinadas ações sociais recíprocas por seu sentido ocorram, então todas as pessoas do planeta estão casadas umas com as outras, já que é "possível" ou provável em um grau muito pequeno, próximo do limite, que venham a realizar tais comportamentos.
A construção ideal típica seria, ainda, uma construção abstrata, que se sabe imperfeita, de uma possibilidade ou probabilidade, que pode estar próximo do limite mínimo, de que determinados indivíduos venham a se de uma determinada maneira, recíproca por seu sentido subjetivo. E este é, ainda, inacessível à verificação empírica.
Parece-me, portanto, que Weber comete um grave erro ao destratar os estudos lógico-dedutivos de significados. Este erro compromete sua teoria e metodologia, no sentido de que a torna passível de qualquer influência subjetiva do pesquisador. Em verdade, o pesquisador tem a mais ampla liberdade para construir o resultado que almeja. Tais falhas, no entanto, são amenizadas pela erudição do pesquisador, que empreende um estudo histórico do comportamento de seres humanos e, conjuntamente, um estudo dogmático-comparativo de ordens sociais.
Tivesse Weber negligenciado como afirma em sua metodologia o sentido objetivo, porque citaria a confissão de Westminster? Por que citaria tantas passagens bíblicas, interpretaria as palavras do evangelho, interrogaria as epístolas de São Paulo, estudaria as diversas confissões protestantes e os concílios católicos? O cientista social hodierno que não dispõe da mesma erudição e pretende construir uma tipologia ideal corre, portanto, a meu ver um sério risco de se perder em opiniões subjetivas e criar, para imputar aos atores, um sentido completamente diverso do subjetivamente mentado. A verificação posterior jamais encontraria tal erro, mas tão somente "desvios" do tipo criado.
Por certo que uma pedra pode servir para medir o cumprimento de uma estrada, mas é um instrumento muito pouco adequado.
Ao contrário do que Weber parece supor, a construção do sentido objetivonão é necessariamente metafísica ou eivada de juízos de valor, como bem o sabe o leitor, e o crítico, de Kelsen. Ademais se trata de um estudo lógico e coerente que, independentemente da possibilidade ou impossibilidade da explicação causal do comportamento humano, é capaz de colaborar na descrição do mesmo, não em termos causais, mas em termos mais precisos do que uma "probabilidade mínima" ou uma "possibilidade".
Quando digo que o católico deve ir à missa aos domingos segundo os dogmas do catolicismo sei precisamente o que isto significa. Quando digo que existe uma possibilidade, ou probabilidade em algum grau elevado ou próximo do mínimo, de que um determinado ser humano se comporte de acordo com um tipo ideal construído de, havendo, por certo, gradações e imperfeições, sendo que nunca há uma coincidência exata, e que, se existisse algum indivíduo típico, ele iria à missa em um domingo, não sei o que isto significa.
Bibliografia
KELSEN, Hans (1934) Teoría General del Estado. Editorial Labor S.A, Barcelona.
KELSEN, Hans (1945) Sociedad y Naturaleza. Editorial Depalma, Buenos Aires.
KELSEN, Hans (2000) Teoria Pura do Direito. Martins Fontes, São Paulo.
KELSEN, Hans (2000b) Teoria Geral do Direito e do Estado. Martins Fontes, São Paulo.
TOCQUEVILLE, Alexis de (1998). A Democracia na América. Belo Horizonte, Editora Itatiaia Limitada.
WEBER, Max. (1997) Economía y Sociedad. México/D.F. Fondo de Cultura Económica.
WEBER, Max. (2000). A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, Editora Pioneira.
WEBER, Max. (2001). Metodologia das Ciências Sociais. São Paulo, Cortez Editora.
NOTAS
1 É importante notar aqui que, para Kelsen, direito e estado são uma só e mesma coisa, de forma que sua crítica à sociologia do direito é a mesma que formula à sociologia do estado ou sociologia política.
2 A expressão "Direito Positivo" é contraposta à expressão "Direito Natural". Direito Natural é um direito que se supõe não criado por seres humanos (positivado), mas dado na própria natureza. Assim, alguns autores afirmam que a vida humana, a linguagem ou a "sociedade" trazem consigo um direito inerente, não criado por homens e nem alterável por eles. Por "Direito Positivo", pelo contrário, entende-se todo direito criado por homens, seja por meio de um processo legislativo ou por meio de costumes. Juristas brasileiros costumam chamar de "direito positivo" apenas as normas jurídicas criadas de acordo com o processo legislativo, deixando de lado as normas criadas pelo costume. Isto, no entanto, leva à erro. Caso se pretenda reservar esta expressão ao direito legislado, deve-se então entender que, em Kelsen, direito "positivo" equivale ao que os juristas brasileiros chamam de "direito objetivo", ou seja toda e qualquer norma considerada como válida e criada por qualquer processo humano.
3 Pode-se perceber nesta definição uma influência kantiana no sentido de entender por natureza não um conjunto de objetos ontologicamente reais alheios à experiência humana, mas sim um construto humano acerca de suas percepções.
4 Não encontrei em Weber passagem que elucidasse a que confederação ele se refere, mas resta a impressão de que se trata da união das chamadas "doze tribos" de Israel. Jeová seria assim o deus da união das tribos israelitas. Em outro trecho porém, Weber se refere ao mesmo deus como sendo o deus da aliança entre israelitas e medianitas.
5 Não posso evitar reconhecer nesse texto um juízo valorativo do autor. Ele apresenta o sacerdote, por ele mesmo definido como alguém que recebe sua autoridade de uma ordem religiosa estabelecida, em contraposição ao profeta que anuncia algo novo, ou não, ancorado em seu carisma pessoal, como alguém que deixa de lado o sentimento ético da religiosidade. Isto é, no mínimo, estranho. No entanto, a caracterização do "sentir ético de la religiosidad" feita pelo autor no trecho citado, como derivação de todos os deveres a partir de uma relação específica e repleta de sentido com o próprio deus, é demasiado subjetiva para que se possa contestá-la. Ora, é difícil crer que os sacerdotes de qualquer religião monoteísta se furtem a derivar os deveres de uma relação com deus, já que a autoridade que tal relação confere aos deveres é imensa. O que Weber parece ter em mente, no entanto, é um sentimento, ou uma espécie de vivência íntima com deus, uma "experiência pessoal" como é chamada entre os cristãos. Porém, não bastaria que os deveres fossem derivados de tal experiência, mas este processo tem de ser feito por quaisquer meios desde que não racionais. Como pode Weber saber se o padre que prega o catecismo não o faz em virtude de experiência semelhante. Por que razão a pregação em "preceptos positivos" exclui a relação imediata e pessoal com deus? Penso que exclui pelo simples motivo de que Weber vê com maus olhos a "racionalização" de determinados aspectos da vida humana, e tem grande simpatia pelas relações "repletas de sentido", especialmente quando tal sentido não está ancorado em qualquer racionalização, especialmente em preceitos positivados.
6 Em determinado momento Weber afirma que a radical fuga do mundo não pode ser postulada por qualquer religião histórica. Isto não parece ser assim. Seitas que marcam determinado dia para que todos os seus adeptos se suicidem, por exemplo, talvez sejam exemplos históricos de rejeição completa do mundo, ou seja, rejeição e fuga do mundo em todos os sentidos possíveis.
7 Weber rejeita trabalhar com o sentido objetivo, mas utiliza conexões puramente lógicas de sentido, sem fazer qualquer referência ao sentido subjetivamente pensado pelos agentes.
8 Kelsen observa incidentalmente que:
A una consideración detenida no puede pasar tampoco inadvertido el hecho de que dentro de esa ciencia (tan discutible desde el punto de vista metodológico): la Teoría general del Estado, constituida por la unión de la Teoría del Derecho político con la Sociología del Estado, y tan contradictoria que destruye su objeto y acaba por destruirse a sí misma al postular conscientemente la dualidad de sus métodos, la diversidad fundamental de finalidades y planteamientos de las cuestiones; dentro de esta ciencia, decimos, la parte más importante, la más rica de contenido es precisamente la Teoría jurídica. 8 2
Pretende o autor que isto seja uma evidência do quão pouco frutífero é o estudo que negligencia o caráter intrinsecamente normativo do fenômeno estatal. De fato uma comparação ainda que superficial sobre o grau de objetividade entre os estudos jurídicos e sociológicos acerca dos estado parece apontar para uma análise mais profunda e rigorosa dos autores que adotam aquele ponto de vista.
9 A teodicéia católica é bastante lógica e coerente. A idéia de que o que não existe é o mal e não deus, de que deus é eterno e, portanto, atemporal, permitem que o caminho de salvação seja construído exatamente na forma de uma "conta bancária" (conjunta de todos os fiéis) de méritos e deméritos, o que resulta, juntamente com a confissão, o batismo e a extrema unção, em uma ética "frouxa". Isto não é evidência de irracionalidade mas de um conjunto de normas simplesmente diverso.
10 Em verdade o caminho de salvação católico não é necessariamente decorrente das boas obras, mas de uma "opção", um ato "volitivo". Para o catolicismo a ação não é o principal, mas o "sentido" ou a "vontade subjetiva" que orienta a ação, de forma que não há, por exemplo, quem "peque" sem o querer, pois o "dolo" ou a "culpa" também são elementos essenciais do "tipo" pecaminoso.