"O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direito"
(CANOTILHO)
RESUMO: Este texto tem por fim principal analisar a possibilidade de admissão no Direito Penal brasileiro da figura do estupro virtual, em razão do modismo atual da sextorsão, do ativismo exacerbado, e ainda do cabotinismo aflorado da doutrina pátria que nos parece defender a puros interesses econômicos.
A modernidade exige da lei constantes ajustes de suas regras a fim de proteger com eficiência as relações sociais.
O termo sextorsão é um neologismo criado para explicar a exigência de vantagens diversas por parte de autores que têm a posse de imagens íntimas de vítimas, em troca da preservação do sigilo dessas imagens.
Há quem afirme que o termo sextorsão teve origem nos Estados Unidos, em 2010, ao ser usado oficialmente pelo FBI (Federal Bureau Investigation), em um caso no qual um hacker chantageou mulheres, ameaçando expor sua intimidade, caso não atendessem suas exigências, que consistiam no envio de novas fotos nuas.
Assim, os cibercriminosos podem adquirir essas imagens em razão de invasão indevida nas redes sociais, ou até mesmo em função de um relacionamento amoroso anterior com as vítimas dessa modalidade criminosa.
Não se trata de nova modalidade criminosa, mas sim de novo modus operandi de delinquentes que se utilizam das redes sociais para o cometimento de delitos.
A discussão se reacende em função de um caso concreto registrado no estado do Piauí, onde a justiça confirmou a prisão de um suposto autor de crime de estupro virtual. Segundo consta, um homem teria em sua posse fotos íntimas de uma mulher, e por meio de um perfil de um aplicativo da rede social teria ameaçado divulgar fotos íntimas dessa mulher, caso ela não exibisse seu corpo e praticasse em si mesma atos libidinosos, para que o autor pudesse satisfazer a sua própria lascívia, do outro lado da rede social.
A grande indagação é saber se essa conduta caracteriza ou não crime de estupro na modalidade virtual.
É importante lembrar que o antigo rótulo dos crimes contra os costumes foi modificado pela rubrica dos crimes contra a dignidade sexual, Lei nº 12.015/2009, isto porque os costumes podem mudar de cenário semântico de acordo com o tempo em que são analisados.
Já a dignidade sexual é imutável, qualquer que seja o tempo, o seu momento histórico, a lei não pode modificar o seu entendimento e espectro temporal.
Conforme anunciado na parte exordial, a tipificação penal depende, fundamentalmente, dos interesses manifestados pelos criminosos na utilização da rede social.
Se o autor mediante grave ameaça exige para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fim de não divulgar as imagens íntimas da vítima, a conduta se enquadra como crime de extorsão, previsto no artigo 158 do Código Penal, notadamente, por exigir imprescindível comportamento da vítima para a existência e configuração do crime em apreço.
Mas, e no caso concreto registrado no Piauí, pode caracterizar estupro virtual?
Depois da modificação da lei dos crimes sexuais, o crime de estupro resultou na junção da conjunção carnal e dos atos libidinosos diversos daquela.
Eis a redação do novo texto:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Fica claro que o delito em questão, hediondo na forma do artigo 1º, incisos V e VI, da Lei nº 8.072/90, exige forma vinculada.
Mesmo antes de discorrer sobre esta forma vinculada pelo contato físico, mister se faz apresentar a classificação do crime de estupro, segundo a melhor doutrina.
Destarte, o crime de estupro apresenta a seguinte classificação. Crime comum, porque pode ser praticado por qualquer pessoa. É crime material porque exige resultado naturalístico, consistente no efetivo tolhimento da liberdade sexual da pessoa, homem ou mulher, trata-se de crime comissivo, eis que o verbo constranger exige-se ação do autor, podendo ser excepcionalmente comissivo por omissão, na forma do artigo 13, § 2º, do Código Penal. É crime de dano, porque consuma-se com a efetiva lesão do bem juridicamente protegido. Trata-se de crime instantâneo porque não se prolonga no tempo. É delito unissubjetivo, que pode ser cometido por único agente. Trata-se de crime plurissubsistente, porque vários atos integram a conduta típica.
E por fim, trata-se, de delito de forma vinculada, pois exige-se a efetiva conjunção carnal ou outro ato libidinoso.
A conduta criminosa exige contato físico entre os autores.
Para a primeira parte do ilícito penal, conjunção carnal, a lei exige congresso vagínico, contato físico sexual entre um homem e uma mulher, e na segunda parte, contato físico entre pessoas de qualquer sexo, sob duas modalidades: ou praticando ou permitindo que com ele se pratique outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal.
Quer dizer: ou cometendo o crime na modalidade de conjunção carnal ou outro ato libidinoso, como coito per anum, inter femora, fellatio ou felação, cunnilingus, anilingus, cópula axilar, cópula entre os seios, cópula vulvar, beijo lascivo, passar as mãos nas pernas de alguém, passar as mãos mos seios ou ainda passar as mãos na nádegas de alguém.
Não obstante isoladas decisões de Tribunais Superiores, a exemplo do decisum, que compreende irrelevante, para a configuração do delito de estupro, que haja um contato físico entre ofensor e ofendido, tese que ganhou expressão nacional em julgado da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 2/8/2016, embora em um caso que tratou de estupro de vulnerável (CP, art. 217-A), e de parte da doutrina se contentando com meras assistências contemplativas de autores em face de comportamentos de vítimas que mediante grave ameaça de terem suas imagens divulgadas na rede social, teriam que se submeter a auto-prática de atos de libidinosos para a configuração do crime de estupro virtual, acreditamos que a técnica jurídica e o princípio da taxatividade penal estariam seriamente violados com esse entendimento minoritário.
CESARE BECCARIA, em sua célebre Obra Dos Delitos e das Penas, pontuava que basta que as leis sejam claras e que não se verguem a interesses particulares. Assim, no tocante à interpretação da lei, o Mestre de Milão é muito claro.
Afirma que a lei deve ser concreta e clara, sendo de fácil interpretação e sem variações. Assim, não haveria lacunas, evitaria a injustiça e dispensaria a interpretação do “espírito da lei” resultado da boa ou má lógica do magistrado.
A meu sentir, o fato registrado em solo piauiense se amolda nas sanções do artigo 146, dos crimes contra a liberdade pessoal, sobretudo, com o ato de constranger alguém mediante violência ou grave ameaça ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda.
Aqui no caso concreto do Piauí, a vítima, sob grave ameaça de ter suas imagens íntimas divulgadas pela rede social, se masturbando ou introduzindo objetos na cavidade vagínica, estaria fazendo o que a lei não manda, o que, sem dúvidas, configuraria, o crime de constrangimento legal.
Vale lembrar que a lei penal não pode ser considerada instrumento de vingança, mas sobretudo, manto protetor das relações sociais, sob pena de contribuir para aumentar a inflação legislativa, tão nociva aos interesses sociais.
Se o dinamismo social exige mudanças na estrutura legislativa, cabe ao legislador modificar a lei para ajustá-la ao mundo atual e real.
Simplesmente tipificar, inovando condutas criminosas onde a lei não o fez, é algo temerário de um modelo eminentemente repressor, de ranço persecutório, e que deve ser afastado e combatido por profissionais que têm compromissos isentos com o bem estar social.
O importante mesmo é que o Brasil se filie urgentemente à Convenção de Budapeste, mandamento internacional de apoio ao combate e repressão aos crimes virtuais no ambiente globalizado, considerando que as redes de computadores e a Internet são tão impactantes na vida social hodierna que promovem grandes transformações tecnológicas, trazendo consigo benefícios e mazelas.
A tipificação dos crimes cometidos no ciberespaço é necessário de imprescindível para que os poderes públicos possam acompanhar a dinâmica de um mundo globalizado.
Como se afirmar, o ingresso do Brasil à Convenção de Budapeste (Convenção sobre o Cibercrime, 2001), trarão significados importantes ao tornar o país membro integrante da supracitada Convenção, pois o Brasil adentraria num Regime Internacional de combate ao cibercrime, facilitando, assim, uma cooperação maior com outros países que sofrem das mesmas práticas ilícitas, mas que possuem leis diferentes.
Defender a existência de prática de crime de estupro virtual como no caso concreto de Piauí, não obstante, o respeito por posições em contrário, acredito que seria o mesmo que utilizar-se do direito penal como soldado na linha de frente e não soldado de reserva.
Seria a mais frontal violência ao princípio da legalidade, em especial, agressão à função legislativa.
A meu sentir, aqui o Poder Judiciário estaria se arvorado de suas funções de dizer o direito para criar tipos penais onde a lei não previu, uma forma de ativismo judicial perigoso e prospectivo, a ameaçar gravemente o estado de direito, mesmo porque aprendemos no interior que o sapateiro não vai além das sandálias.
O que poderia acontecer virtualmente, seria a existência de crimes previstos para os casos estatuídos no estatuto da criança e do adolescente, e no Código Penal, nas modalidades de exploração sexual, ou até mesmo facilitação prostituição ou armazenagem de fotos de crianças e adolescentes em qualquer fontes de dados de informática, comportamento expresso na Lei nº 8.069/90.
A vingar esse esdrúxulo entendimento de estupro virtual no Brasil, fruto de imaginação de exploradores do mercado jurídico, somos obrigados a firmar também nosso entendimento acerca de um caso de estupro culposo em nossa legislação, muito embora essa excepcionalidade não conste expressamente do Código Penal.
Por fim, acreditamos, permissa venia, que a decisão de confirmar a prisão de alguém por crime de estupro na modalidade virtual foi equivocada, sem respaldo e sem fundamentos legais, com emersão de sintomas de um estado essencialmente policialesco, acarretando graves ofensas aos princípios da legalidade, taxatividade, segurança jurídica, além de transgressão ao modelo de estado de direito.
Defende-se e propugna aqui pela criminalização da conduta deste fato concreto, extremamente censurável, constrangedor e abominável, repugnando-se da utilização da tecnologia para o cometimento de toda e qualquer modalidade de delitos, cujo autor deve ser exemplarmente punido, mas a meu aviso neste caso concreto registrado no Piauí, configura-se crime de constrangimento ilegal, artigo 146 do Código Penal, rubrica contra a liberdade pessoal, e não estupro virtual como decidiu o sistema de justiça criminal naquele estado.
Acredito mesmo que devemos repensar um melhor direito penal, que seja oriundo de uma fonte segura e técnica, protetor na sua essência, instrumento de garantia de uma sociedade afogada em crises de identidade, sem precedentes, para se evitar que os profissionais do direito, juristas econômicos, mídia barulhenta e cabotinos de ocasião possam aparecer diante de fatos inovadores que nos surpreende todos os dias com novas notícias, num país de uma multidão de leis, confusa e polissêmica, a serviço da impunidade e dos contorcionismos exegéticos em favor da classe dominante.