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Causa supralegal de exclusão de ilicitude: o consentimento do ofendido

O "consentimento do ofendido" não é uma das três hipóteses de exclusão de ilicitude presentes no artigo 23 do Código Penal. O presente artigo vem mostrar como este instituto pode influenciar na conduta delitiva.

O consentimento do ofendido é um instituto jurídico penal que trata da exclusão da ilicitude na conduta delitiva. O Direito Penal, por sua vez, objetiva manter a ordem social através da seleção dos comportamentos humanos mais nocivos capazes de lesionar, ou expor à lesão, bens jurídicos essenciais para a convivência em sociedade.

A Teoria Tripartida do Crime também tem papel importante no presente estudo, pois apresenta as características nas quais uma conduta humana deve se enquadrar para que seja, não somente considerada crime, mas também passível de punição.

Nossa legislação penal foi um tanto quanto omissa no que tange ao consentimento do ofendido, deixando-nos dúvidas da ilicitude presente em casos como o do médico que necessita realizar uma cirurgia no paciente ou do tatuador que lesiona a pele do seu cliente, por exemplo.

O artigo 23 do Código Penal Brasileiro elenca as três hipóteses de exclusão da ilicitude da conduta:

Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato:

I - em estado de necessidade;

II - em legítima defesa;       

III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Parágrafo único - O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.

Como se vê, o consentimento do ofendido não está presente no aludido artigo, logo, trata-se de uma causa supralegal. O presente estudo tem por escopo mostrar como este instituto age de modo a excluir a ilicitude da conduta delitiva.

Apenas o consentimento da vítima não é suficiente para excluir toda e qualquer figura típica. Para isso, alguns requisitos devem ser preenchidos, tais como: a disponibilidade do bem jurídico tutelado pela norma, a validade do consentimento, a necessidade de este último ser manifestado de forma livre e por pessoa capaz, e a anterioridade ou simultaneidade entre o crime e o consentimento.

É latente a necessidade que existe de se estabelecer e compreender os limites do poder de disposição dos indivíduos sobre os seus próprios bens jurídicos, em face da proteção lançada sobre alguns destes, que nem mesmo o próprio titular do direito pode dele dispor por meio do seu consentimento.

O estudo do consentimento é interessante ao Direito Penal pois trata-se da análise da teoria do delito sob a perspectiva da atuação do ofendido, e parte do pressuposto de que autor e vítima se inter-relacionam, através de seu agir comunicativo, para a prática delitiva. Desse modo, a responsabilidade penal do agente pode ser diminuída ou excluída, dependendo do comportamento do ofendido.

A influência do consentimento à teoria do delito é uma questão constitucional, pois baseia-se na dignidade da pessoa humana, presente do artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal brasileira.

Acerca da teoria do delito, José Henrique Pierangeli explica: “Podemos afirmar ser a teoria do delito uma construção dogmática que nos proporciona o caminho lógico para uma averiguação acerca da existência ou não de um delito em cada caso concreto” (PIERANGELI, 2001, pág. 48). Nos dizeres do mesmo:

O direito não cria a conduta; apenas a valora. Os tipos, portanto, constituem meras descrições abstratas da conduta. Esta existe concretamente e cumpre á tipicidade torna-la um delito. Consequentemente, a conduta é um conceito básico, sobre a qual se estruturará o conceito de crime, fazendo sobre ela recair as categorias ou caracteres da tipicidade, da antijuridicidade e da culpabilidade. (PIERANGELI, 2001, pág. 21)

Assim como Pierangeli, doutrinadores como Francisco de Assis Toledo, Roxin e Rogério Greco compreendem o crime como sendo um composto trinário, ou seja, fato típico, ilícito e culpável. Trata-se da teoria finalista trinária. Para Greco, a teoria do crime visa facilitar a averiguação da presença ou ausência de delito em cada caso concreto. Assim aduz:

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O delito não pode ser fragmentado, pois é um todo unitário. Contudo, para efeitos de estudo, deve-se proceder a uma análise de cada um de seus elementos fundamentais, quais sejam: o fato típico, a antijuridicidade e a culpabilidade. Cada um deles, nessa ordem, é antecedente lógico e necessário à apreciação do seguinte. (GRECO, 2014, pág. 143)

Na obra O Consentimento do Ofendido na Teoria do Delito fica claro que o tipo penal constitui um instrumento legal, absolutamente necessário e de natureza preponderantemente descritiva, cuja função é a de individualizar as condutas humanas de relevância penal. Rogério Greco, por seu turno, chama atenção para o fato de que não se admite a criação de qualquer tipo penal incriminador onde não se consiga apontar, com precisão, o bem jurídico que por intermédio dele se pretende proteger.

Como anteriormente mencionado, crime é definido como fato típico, culpável e antijurídico (ou ilícito), posição a qual nos filiamos. Nesse sentido, esclarece Hans Welzel:

A tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade são três elementos que convertem uma ação em um delito. A culpabilidade – a responsabilidade pessoal por um fato antijurídico – pressupõe a antijuridicidade do fato, do mesmo modo que a antijuridicidade, por sua vez, tem de estar concretizada em tipos legais. A tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade estão relacionadas logicamente de tal modo que cada elemento posterior do delito pressupõe o anterior. (WELZEL, Hans. Derecho penal alemán, p. 57)

Significa dizer, portanto, que a tipicidade consiste no enquadramento da conduta do agente na norma penal descrita em abstrato, ou seja, existe a necessidade de a ação ser tipificada para que seja considerada criminosa. Logo, se não há tipicidade, não há crime. A antijuridicidade, por sua vez, trata-se da contrariedade entre o ordenamento jurídico e a conduta do agente. Deste modo, mesmo que haja uma ação típica, não há crime sem antijuridicidade. Já a culpabilidade é a possibilidade de se considerar alguém culpado pela prática de uma infração penal. Assim, além de típica e ilícita, a ação do agente deve também ser culpável.

Zaffaroni, jurista argentino, estabeleceu considerações importantes que devem ser feitas para estabelecer um juízo de culpabilidade dentro da concepção normativa pura, quais sejam: reprovabilidade, disposição interna contrária à norma, possibilidade de realizar outra conduta, possibilidade de motivação na norma, exigibilidade e âmbito de determinação.

Segundo Pierangeli, “a palavra consentimento vem do latim consentire e, no seu sentido originário, exprime a concordância entre as partes ou uniformidade de opinião. Por tal razão, emprega-se a palavra mútuo consentimento, com o significado de consentimento”. (PIERANGELI, 2001, pág. 72)

O ordenamento jurídico brasileiro admite, como causa supralegal de exclusão da ilicitude, o consentimento do ofendido. Entretanto, para que tal instituto seja aplicável, é necessário que se obedeça a certos requisitos, quais sejam: a concordância do ofendido, consentimento explícito, capacidade para consentir, disponibilidade do bem. O consentimento deve ser dado antes ou durante a prática do ato ilícito, revogação do consentimento e conhecimento do agente. Também é possível extrair da obra de Pierangeli que:

No que toca à proibição de excesso, tem-se que a conduta do sujeito deve sempre respeitar os limites impostos pela causa justificante. Se o agente ultrapassar a seara do consentido pelo ofendido, desvaliosa será a sua conduta, uma vez que violadora da finalidade protetiva do sistema legal, e portanto, passível de censura quanto ao excesso. (PIERANGELI, 2001, pág. 58)

Pode-se concluir que, obedecidos os requisitos, o consentimento da vítima produz efeitos na esfera jurídica. Portanto, faz mister que tal instituto incorpore nosso texto legal, haja vista sua ampla aplicabilidade em nossa sociedade.


Referência

PIERANGELI, José Henrique. O Consentimento do Ofendido na Teoria do Delito, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 1, parte geral: (arts. 1º a 120) / Fernando Capez. – 18. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2014.

ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. São Paulo: RT, 1997.

WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Tradução de Juan Bustos Ramirez e Sergio Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1987.

Http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=Consentimento+da+ofendida&p=6 “O Consentimento do Ofendido como causa Supralegal de Exclusão da Ilicitude”

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