- INTRODUÇÃO
A relevância de se iniciar esta pesquisa sobre tema tão complexo, nos conduz, inevitavelmente, a uma intensa procura fática da realidade do Sistema Penitenciário Brasileiro. Desviscerando suas origens históricas e desmistificando com base nas teorias positivistas e humanitárias que, hora ou outra, contrapõem em acirrada demonstração de quem verdadeiramente, está mainada de razoabilidade.
Entendemos ser imprescindível uma análise microscópica da realidade existente, no interior do Sistema Prisional. É na verdade, uma quebra de tabu, uma vez que este Sistema não permite mostrar para a sociedade o antro de práticas habituais de desrespeito à lei e à dignidade do ser humano.
Por diversos motivos, que perpassam tanto pelo aspecto físico-estrutural como pelo biológico, a situação dos encarcerados no Brasil alude uma distância enorme entre a legislação posta e o que realmente se pratica nas prisões brasileiras. Isto, é perfeitamente evidenciado por especialistas e pesquisadores elencados nesta alçada. Mirabete, Coelho, Rodrigues, Fucault e outros, mostram a visão idealizadora contrastada com a dura realidade. Como também, nos mostram meios que, albergando as teorias transformadoras, possamos alcançar a ressocialização daqueles que mesmo tendo confrontado a lei, não perderam sua condição de ser humano.
Em seguida, abordamos o tema ressocialização. Primeiramente de forma subjetiva e formal, evidenciando que a estrutura disponível atualmente pelo Sistema não produz a mínima possibilidade, devendo este ser, urgentemente adequado para o propósito.
O Estado e seu aparato, a sociedade e sua força interior baseada em sua numerosidade, as instituições tecno-científicas voltadas ao estudo do comportamento humano, podem unidas, serem agentes de transformação.
Devem-se iniciar as mudanças dentro da estrutura presidiária. O Direito positivado não abraça todas as necessidades da pessoa, apenas minimamente, garante o controle e a ordem social, e quando este é totalmente desrespeitado, como acontece no interior das prisões, a situação fica realmente muito complicada.
2.0 ORDENAMENTO JURÍDICO E O SISTEMA PENITENCIÁRIO
O sistema Penitenciário Brasileiro adota a progressividade da execução da pena, consagrada pelo Código Penal de 1940, e suas importantes transformações, sendo essa forma observada de acordo com critérios objetivos e subjetivos, fazendo com que o condenado inicie o cumprimento de sua pena em determinado regramento carcerário, progredindo, do mais rigoroso ao mais brando (pelos regimes fechados, semiaberto e aberto). Deste modo, o condenado que ingressa numa penitenciária para o início do cumprimento de sua pena, o faz no regime fechado, ou na colônia agrícola ou industrial, no regime semiaberto, para ao final passar ao regime aberto, transferindo-se para a casa do albergado, na inexistência desta, em instituições similares.
O mecanismo básico para a progressão encaminhando o condenado ou condenada a um regime menos severo, reside em ter cumprido um sexto da pena (requisito objetivo) quando primário e, quando gozando de bom comportamento (elemento subjetivo), após avaliação da comissão técnica de classificação. Antes , éra exigido o exame criminológico para tal progressão, requisito que recentemente foi desobrigado em jurisprudência do STJ.
2.1 A origem do sistema penitenciário
Embora o pensamento que orientou a construção da Casa de Correção parecia elevado, pois se pretendia proteger os escravos da perversidade dos seus proprietários. Como afirma o observador françês Dabadie:
No estabelecimento da Casa de Correção, ninguém tinha direito de bater em seu escravo, e uma lei foi votada nesse sentido que, bem aplicada, colocaria um termo a esses abusos gritantes. Mas essa lei é uma palavra vã, e o ódio contra os africanos é tão inveterado no Brasil, que se leva bem pouco em conta. (Dabadie 1848, p.47).
Almeida Valle, em seu Relatório de 1875, (apud Moraes, 1923, p. 18-19) relata que naquele ano, na Casa de Correção, ainda havia galés, submetidos àquelas argolas de ferro, chamada calceta, que a lei manda aplicar, produz o efeito de um ferro em brasa que, cauterizando profundamente, faz cair em mortificações alguma parte do senso moral, que ainda conserva até o momento de recebê-la.
Os galés eram obrigados a empregar-se nos trabalhos públicos, com a calceta e a corrente de ferro, que produz o efeito imediato da humilhação e acarreta o aniquilamento dos bons sentimentos. Humilhação e aniquilamento parecem ser temas recorrentes e ainda não superados nas prisões brasileiras.
Com a República é abolida a pena de galés, considerado, como expresso no Relatório do Ministro da Justiça do Governo Provisório de 1891, (apud Moraes, 1823. p. 29 e 48), “que as penas cruéis, infamantes ou inutilmente não se compadecem como os princípios de humanidade em que, no tempo presente se inspiram a Ciência e a Justiça Social, não contribuindo para a reparação da ofensa, segurança pública ou regeneração do criminoso”, conforme rezava o Decreto nº774, de 20 de setembro de 1890.
Reparação da ofensa, segurança pública e regeneração são objetivos antigos e conflitantes. O Código Penal da República lança as bases do sistema penitenciário que, ao Governo, pareceu mais conveniente adotar. Como se observa, pelo exposto, a base do sistema era a prisão celular, aplicada à generalidade dos crimes.
2.2 As demências do sistema penitenciário
No Brasil como em toda América Latina, no Ceará não é diferente, ainda vigoram muitos elementos do sistema inquisitorial de fazer justiça. A confissão do acusado continua sendo mais importante do que a evidência conseguida mediante investigação. Daí a prática constante das torturas em delegacias e quartéis. A isso se chama ‘inquérito’. Na fase posterior, na maior parte das vezes, os processos judiciais continuam secretos.
As sentenças, dadas por escrito, continuam sem a audiência pública e aberta das várias partes envolvidas. Fato este periclitante que constitui ataque aos direitos fundamentais, pois o Art.5º, LX da Carta Magna de 1988 diz: “a restrição dos atos processuais deve ser feita somente quando a defesa da intimidade e o interesse social o exigirem”.
As provas chegam até o juiz pelos policiais que não são controlados pelo Ministério Público, nem inquiridos em sessão aberta. Ressalvadas as exceções legais: Crimes Hediondos – Lei n° 8.072/90. Neste caso a progressão de regime é vedada restando ao sentenciado o livramento condicional após o cumprimento de 2/3 de sua reprimenda, se não se trata de reincidente específico, neste caso a lei determina que seja cumprindo integralmente no regime fechado.
O nosso Sistema Penitenciário apresenta-se bastante complexo, no que se refere à estrutura física, uma vez que envolve variados modelos de unidades prisionais, isto é, como unidades penitenciárias e extra-penitenciárias, pois para cada uma delas deve-se verificar sua distinção, tendo o legislador definido os estabelecimentos do Sistema, destinando cada qual a um fim (D’Urso, 1996, p. 44-45).
Numa análise histórica deste Sistema, Coelho (2003), assim assevera: “A crise do sistema penitenciário brasileiro não é uma contingência da atualidade e sim uma continuidade fruto de um longo processo histórico impermeado pelo escravismo do período colonial, mas que agrava-se com a falência gerencial.”
2.3 As dificuldades de regeneração do condenado
Como nos versos do poeta, entre a intenção e o gesto ocorre um profundo divórcio entre planos, resoluções, códigos e a amarga realidade do Sistema Penitenciário. Humilhações e Aniquilações são as vias privilegiadas para a reparação de ofensa. A prisão celular eclesiástica originou-se no período criminológico e consistia na solidão e silêncio, favorecendo a penitência, inspirada em princípios morais: visava a remição dos pecados pela dor, remorso e arrependimento que se alcançava através da solidão, meditação e da prece.
A regeneração no Sistema Penitenciário Nacional, apesar de todas as reformas que praticamente nascem junto com a prisão, sempre foi uma dissimulação justificada. Ao invés de ser uma instituição destinada a reeducar o criminoso e prepará-lo para o retorno social a prisão é uma casa dos horrores, para não dizer de tormentos físicos e morais, infligindo ao encarcerado ou encarcerada os mais terríveis e perversos castigos.
Antes de ser a instituição ressocializadora, a prisão tornou-se uma indústria do crime, onde os presos altamente perigosos tornam-se criminosos profissionais, frios, calculistas e incapazes de conviverem fora do presídio.
Hoje os juízes sentenciam, condenam o acusado ou acusada a uma pena. E sem se dar conta condena os réus à outra pena muito mais grave. No despojamento frio do texto do Código, a sentença aparece como uma privação da liberdade. Na realidade, muitas são cumpridas com requisitos da Casa de Correção Imperial. A distância entre a determinação da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, (Lei de Execução Penal) e a execução prática do cumprimento da pena está enormemente acentuada, sobretudo se atentar-se à expressão de Roberto Lyra, (apud Castilho, 1988, p.67) que escreveu na Justificação do Anteprojeto do Código das Execuções Penais, em 1963:
Pela Constituição Federal, o juiz não pode aplicar pena, ainda pecuniária ou acessória, que lei anterior não cominou, mas o carcereiro (ou seu substituto ) cria, aplica e executa penas ou agrava-as extremamente; inuma homens em solitárias ( prisão dentro da prisão); condena-os à fome e à sede, priva-os de visitas e também de correspondência; confisca-lhes, indiretamente, o pecúlio e o salário; explora seu trabalho; isola-os em ilhas; concentra, em instantes de castigo, a perpetuidade da dor, da revolta e da vergonha.
A Constituição proíbe que a pena passe da pessoa do criminoso. Entretanto, a família dele, a mais das vítimas, sofre todas as humilhações até a perdição e a miséria. O Poder Executivo, por meio do carcereiro e de seus subordinados, irroga penas, de plano e secretamente, ofendendo, mais do que os direitos constitucionais, os direitos Humanos.
2.4 O regime fechado – dupla condenação
Na realidade crua do Sistema Penitenciário, a maioria das vezes os prisioneiros ou prisioneiras estão à inteira disposição dos guardas de presídios, um tribunal interno sem regras fixas, sem defesa que, “condena” os internos ao isolamento ou a castigos diversos.
As penas são aplicadas sem nenhum controle do Judiciário, por um conjunto de funcionários geralmente mal remunerados, com baixa formação, em condições precárias de trabalho e submetidos ao medo de ameaças do crime organizado. Ao condenar o acusado a um período determinado de reclusão, o juiz acaba por impor uma condenação bem maior no seu conteúdo à discrição da administração penitenciária.
3.0 A RESSOCIALIZAÇÃO
3.1 A inversão dos fins
O senso comum ao debater contra a leniência dos julgados, raramente se leva em conta esse detalhe cruel. A execução das penas no Brasil deve ser explicitada e particularmente no momento em que todos estão, ou melhor, parecem estar preocupados com o crime na sociedade, fruto do medo que assola a população, pois os reclusos, em geral, não possuem má índole.
Na sua maioria são primárias, as condições prisionais é que os tornam cruéis. O cumprimento da pena, pelo menos do ponto de vista legal, está muito longe de ser imposição de penas que estabeleciam proporcionalidade entre a ação e a reação, olho por olho dente por dente. Ainda hoje, com frequência, a opinião das pessoas ligadas às vítimas, desejam a reparação do mal causando um outro mal ao autor da ato reprovado. Demonstração clara do positivismo histórico de Imannuel Kant.
Nos crimes contra os costumes, tornou-se prática corrente entre policiais e agentes penitenciários colocar os presos, quando chegam aos presídios, justamente nas celas dos chamados tarados, e ainda avisam que está chegando um 121 ou 155, identificando desta forma, aquele que acaba de chegar pelo artigo do Código Penal a que foi incurso, ou ainda no linguajar do preso: “está chegando um menino, noivinha e outros" - denominação que sofre variação regional. Este é, assim, o aviso para atacar.
Assim sendo, ainda vigora a Lei de Talião. Em termos jurídicos e institucionais, o Estado já não se dá ao prazer explicito de punir, pois o punido também é um cidadão e como tal deve ser respeitado, de modo que o Estado não mais submete o condenado à punição física de outrora com aplicação de castigos aflitivos relatados na obra “Dos delitos e das Penas”, de autoria de Beccaria (1999) propulsora da renovação e do abrandamento do Sistema Penal.
Entretanto, a forma como o Estado vem mantendo as prisões, provavelmente seja uma situação mais humilhante que a aplicação dos castigos corporais que ocorriam na fase anterior do período Humanitário, misturando os presos primários com outros reincidentes e os que praticaram crimes leves com presos de alta periculosidade, em celas superlotadas, nas quais os espaços construídos para seis abriga vinte e nas quais se encontram doentes misturados com indivíduos sãos, todos mantidos na ociosidade e, sem as mínimas condições de higiene, entregues á própria sorte, submetidos a toda modalidade de exploração pelos inescrupulosos, quando o mais fraco ou pobre torna-se objeto da satisfação do desejo sexual do mais forte.
Bem representativo desta situação é o desabafo do Juiz da 1ª Vara Criminal de Florianópolis, Corregedor dos Presídios: “(...) de trinta em trinta dias, depara-se com as mesmas avaliações: falta de higiene, preso comum misturado aos reincidentes, mulheres convivendo com os homens (...).”
Na obra de Castilho (1988, p.126), percebemos a indignação do Juiz Corregedor que em relato demonstra:
(...) recebido de mau grado pelo Diretor da Cadeia, que me faz cara feia. Esses dias, fui obrigado a interditar o funcionamento de duas celas solitárias escuras, que, segundo o Diretor, eram necessárias para castigar os presos mal comportados. Mas que castigo é esse? Quem vive em uma cela pequena, com mais de cinco, ir para uma, sozinho, é presente. A única coisa ruim é a falta de ventilação e a falta de luz.
A promiscuidade interna é tamanha que com o tempo leva o preso, a perder o sentido de dignidade e honra que ainda lhe resta; isto é, em vez do Estado, via cumprimento da pena, nortear a sua reintegração ao meio social, dotando o encarcerado de capacidade ética, profissional e de honra, age de forma inversa, inserindo o condenado num sistema que segundo Oliveira (apud Coelho 2003, p.1):
(...) nada mais é do que um aparelho destruidor de sua personalidade, pelo qual não serve para o que diz servir, neutraliza a formação ou o desenvolvimento de valores; estigmatiza o ser humano; funciona como máquina de reprodução da carreira no crime; introduz na personalidade a prisionização da nefasta cultura carcerária; estimula o processo de despersonalizarão; legitima o desrespeito aos direitos humanos.
Nota-se, portanto, que o desrespeito ao preso não atinge apenas os seus direitos, agridem a sua própria condição de ser humano, rebaixando-os à situação de animais insignificantes.
3.2 A possibilidade subjetiva da ressocialização
A ressocialização tem como objetivo a humanização da passagem do detento na instituição carcerária, implicando sua essência teórica, numa orientação humanista, passando a focalizar a pessoa que delinquiu como o centro da reflexão científica.
A pena de prisão determina nova finalidade, com um modelo que aponta que não basta castigar o indivíduo, mas orientá-lo dentro da prisão para que ele possa ser reintegrado à sociedade de maneira efetiva, evitando com isso a reincidência. Quanto a isso, Molina (1998, p. 381) faz um alerta: “O decisivo, acredita-se, não é castigar implacavelmente o culpado (castigar por castigar é, em última instância, um dogmatismo ou uma crueldade), senão orientar o cumprimento e a execução do castigo de maneira tal que possa conferir-lhe alguma utilidade.”
Damásio de Jesus refere-se ao modelo ressocializador como sistema reabilitador, que indica a ideia de prevenção especial à pena privativa de liberdade, devendo consistir em medida que vise ressocializar a pessoa em conflito com a lei. Nesse sistema, a prisão não é um instrumento de vingança, mas sim um meio de reinserção mais humanitária do indivíduo na sociedade.
Esse modelo tem como característica a reinserção social da pessoa que cometeu a infração; onde a posição da vítima é secundária; admite progressão na execução da pena de acordo com o comportamento do condenado, iniciando-se no regime mais rigoroso até chegar ao regime mais ameno, sendo os regimes fechado; semiaberto; e, aberto, não necessariamente, o sentenciado inicia-se no regime fechado.
3.3 Um modelo ressocializador - Molinista
O modelo ressocializador destaca-se por seu realismo, pois não lhe importam os fins ideais da pena, muito menos o delinquente abstrato, senão o impacto real do castigo, tal como é cumprido no condenado concreto do nosso tempo, não lhe importa a pena nominal que contemplam os códigos, senão a que realmente se executa nas penitenciárias hoje. Importa sim, o sujeito histórico, concreto, em suas condições particulares de ser e de existir, como um ser dotado de dignidade, que deve ser preservada, adstrito do risco de perder sua essência.
O realismo considera a ponderação rigorosa das investigações empíricas em torno da pena privativa de liberdade convencional, que ressaltam o seu efeito estigmatizante, destrutivo e, com frequência, irreparável, irreversível. O modelo ressocializador assume a natureza social do problema criminal, constituído nos princípios de corresponsabilidade e de solidariedade social, entre o infrator e as normas do Estado (social) contemporâneo.
Num Estado Social o castigo deve ser útil para a pessoa que cometeu o crime, o mais humano em termos de tratamento, não podendo tapar os olhos para os efeitos nocivos da pena, caminhando contra o efeito dissuasório preventivo (repressivo), que prefere ignorar os reais efeitos da pena.
Molina (1998, p.383), propõe um novo modelo de ressocialização e critica seriamente o sistema atual:
O modelo ressocializador propugna, portanto, pela neutralização, na medida do possível, dos efeitos nocivos inerentes ao castigo, por meio de uma melhora substancial ao seu regime de cumprimento e de execução e, sobretudo, sugere uma intervenção positiva no condenado que, longe de estigmatizá-lo com uma marca indelével, o habilite para integrar-se e participar da sociedade, de forma digna e ativa, sem traumas, limitações ou condicionamentos especiais.
3.4 Reintegrar ao invés de ressocializar
Vale salientar que Baratta defende o uso do conceito de “reintegração” social ao invés de ressocialização, pois para ele esse conceito (ressocialização) representa um papel passivo por parte da pessoa em conflito com a lei e, o outro, ativo por parte das instituições, que traz restos da velha criminologia positivista, “que definia o condenado como um indivíduo anormal e inferior que deveria ser readaptado à sociedade, considerando esta como ‘boa’ e o condenado como ‘mau’”. (Baratta, 1997, p.76).
Já o conceito de reintegração social, para o autor, abriria um processo de comunicação e interação entre a prisão e a sociedade, onde as pessoas presas se identificariam na sociedade e a sociedade se reconheceria no preso.
Para Bittencourt (1996, p.24), a ressocialização não pode ser viabilizada numa instituição carcerária, pois essas convertem-se num microcosmo no qual reproduzem-se e agravam-se as contradições que existem no sistema social. Segundo Molina (1998, p.383): “A ideia de ressocialização como a de tratamento, é radicalmente alheia aos postulados e dogmas do direito penal clássico, que professa um retribucionismo incompatível com aquela”.
De fato, sua legitimidade (a do ideal ressocializador) é questionada desde as mais diversas orientações científicas, progressistas ou pseudoprogressistas, tais como a criminologia critica, determinados setores da psicologia e da psicanálise, certas correntes funcionalistas, neomarxistas e interacionistas. Alguns desses setores chegam a afirmar que o ideal ressocializador é uma mera utopia, um engano, apenas discurso, ou simplesmente uma declaração ideológica.
O descrédito em relação à ressocialização dá-se por que esta aparecer apenas nas normatizações (Lei de Execução Penal, Regras de Tóquio, Declaração de Direitos Humanos), deixando a desejar no que tange à prática aplicada nas instituições carcerárias. Nestas acontecem, de fato, abusos repressivos e violentos aos direitos dos presos, onde o acompanhamento social, psicológico, jurídico ainda é geralmente precário, insuficiente, obstruindo qualquer forma efetiva de ressocialização e reinserção do preso à sociedade.
Baratta (1997, p.71), ressalta que na atualidade o modelo ressocializador demonstrou ser ineficaz, sendo provada a sua falência através de investigações empíricas que identificaram as dificuldades estruturais e os escassos resultados conseguida pelo sistema carcerário, em relação ao objetivo ressocializador. Sem embargo, uma parte do discurso oficial e inclusive algumas reformas recentes (pense-se na nova lei penitenciária italiana de 1987) demonstram que a teoria do tratamento e da ressocialização não foi de todo abandonado.
3.5 A reincidência – entrave a ressocialização
Como mostra a atual realidade carcerária, os requisitos necessários para o cumprimento de funções de ressocialização, unidos aos estudos dos efeitos do cárcere sobre a carreira criminal – pense-se na alta cota de reincidência que têm invalidado amplamente a hipótese de ressocialização do delinquente através do cárcere. (Baratta, 1997, p.75).
Porém, Bittencourt (1996, p.25), ressalta que a ressocialização não é o único e nem o principal objetivo da pena, mas sim, uma das finalidades que deve ser perseguida na medida do possível. Salienta também que não se pode atribuir às disciplinas penais a responsabilidade de conseguir a completa ressocialização do delinqüente, ignorando a existência de outros programas e meios de controle social através dos quais o Estado e a sociedade podem dispor, para cumprir o objetivo socializador, como a família, a escola, a igreja, etc. A Criminologia Critica coloca que não há possibilidade de ressocializar a pessoa em conflito com a lei dentro de uma sociedade capitalista.
Tem como um dos argumentos que respalda essa convicção a própria prisão criada como instrumento de controle e manutenção eficaz do sistema capitalista, cuja verdadeira função e natureza estão condicionadas a sua origem histórica de instrumento assegurador da desigualdade social.
Um segundo argumento ressaltado, nascido da Criminologia Critica, seria o sistema penal, no qual se insere a prisão. O sistema penal possibilita a manutenção de um sistema social que, proporciona a manutenção das desigualdades sociais e da marginalidade. De acordo com Bittencourt (1996, p. 28), “O sistema Penal permite a manutenção da estrutura vertical da sociedade, impedindo a integração das classes baixas, submetendo-as a um processo de marginalização”.
A marginalização social é gerada por um processo discriminatório que o sistema penal impõe, pois o etiquetamento e estigmatização que a pessoa sofre ao ser condenado, tornam muito pouco prováveis sua reabilitação novamente na sociedade. O processo de marginalização agrava-se ainda mais no momento da execução da pena, ficando impossível a reabilitação da pessoa durante a pena privativa de liberdade, pois existe uma relação de exclusão entre a prisão e a sociedade.
Para Bittencourt (1996, p.35), o sistema capitalista constitui óbice a ressocialização, e assim adverte: “Os objetivos que orientam o sistema capitalista (especialmente a acumulação de riquezas), exigem a manutenção de um setor marginalizado da sociedade, podendo afirmar que sua lógica é incompatível com o objetivo ressocializador”.
Portanto, sem a transformação da sociedade capitalista, não poderemos vislumbrar algum tipo de reabilitação da pessoa que cometeu um delito punido pelo Código Penal. Para a Criminologia Crítica, qualquer mudança que se faça no âmbito das penitenciárias não surtirá grandes efeitos, visto que se mantendo a mesma estrutura do sistema, a prisão manterá sua função repressiva e estigmatizadora.
3.6 Reintegrações através do trabalho
Embora não se deva pensar o processo de ressocialização apenas a partir do trabalho penitenciário, principal meio utilizado no Ceará, este sem dúvida pode cumprir algumas das funções que o Estado deixou de fazer, contribuindo para o ato do detido, onde o trabalho poderia se constituir num instrumento de reinserção social.
Ao falar em reinserção social, segue-se o conceito elaborado por Rodrigues (1987), que segundo ele: “(…) se tem em vista a possibilidade de facultamento dos meios necessários e adequados para que, assim, o preso tenha condições de reinsirir-se na sociedade”.
Os meios necessários não diferem dos da sociedade externa à prisão. Assim, enfoca-se o trabalho como um fator determinante de segurança, de estabilidade, de estruturação individual e social, fator determinante de inclusão / exclusão (inserção e de reinserção), fator que clarifica, conforme conceito de Yazbek (1996), o constituir-se classe subalterna, tendo a vivência da pobreza, da subalternidade e da exclusão.
Nesse sentido:
Os presos se configuram como trabalhadores que se encontram, em sua grande maioria, ociosos, trabalhadores necessitados de políticas que supram suas necessidades básicas, bem como, de suas famílias, e que precisam nesse período de vida, - de extrema fragilidade existencial - ter, na penitenciária, um espaço de redescoberta de seu potencial enquanto ser humano, um espaço de educação pelo trabalho. (Mirabete, 1997, p. 99).
Assim, ao se falar de reinserção social, admite-se, inequivocamente, “uma atuação sobre o indivíduo delinquente que, nem por isso, se deixa encarar como um problema que polariza em si precisamente as tensões entre a reforma do indivíduo e da sociedade” (Rodrigues, 1982, p. 27).
O Direto Penal assume a função de proteção da sociedade, sem, entretanto, modifica-la ou alterá-la, clarificando, desta forma, a concepção de ressocialização que pressupõe repassar ao preso o mínimo ético indispensável à convivência em sociedade. Por outro lado, a maioria dos criminosos sofre de transtorno de personalidade.
São pessoas com personalidade imaturas ou dissociais, que não receberam noções a respeito do próximo. “O crime, nessa perspectiva, é tido como um déficit de socialização. Então, a prisão deve ser o espaço onde haja um programa de ressocialização”. (Mirabete, 1997, p. 63).
Obstante, Rodrigues complementa a idéia:
(...) que visa integrar o indivíduo no mundo dos seus concidadãos, sobretudo nas coletividades sociais básicas como, por exemplo, a família, a escola ou o trabalho, proporcionando o auxílio necessário que o faça ultrapassar a situação de defasamento social em que se encontra”. (Rodrigues, 1982, p. 29).
A prisão moderna é, segundo Foucault, “uma empresa de modificar indivíduos” (2002, p.208), tendo, portanto, duas obviedades fundamentais na forma simples da privação de liberdade sendo no papel, suposto ou exigido, um aparelho transformador de indivíduos.
Neste sentido, a prisão representa, um aparelho disciplinar, exaustivo: um reformatório integral que prescreve princípios de isolamento em relação ao mundo exterior à unidade penal, aos motivos que o levaram à infração, conduzindo-o, através desse a isolamento, à reflexão, ao remorso e à submissão total, ao reconhecimento do preso sobre o poder que a ele se impõe, de um tipo de trabalho que tem por objetivo regular, acabar com a agitação, impor hierarquia, vigiar, constituindo, assim, uma relação de poder. É uma espécie de prisão que extrapola a simples privação de liberdade ao tornar-se um instrumento de modulação da pena.
3.7 Condições necessárias para a ressocialização – visão Fucaultiana
Os custos crescentes do encarceramento e a falta de investimentos no setor por parte da administração pública que geram a consequente superlotação das prisões, estão, na base das dificuldades do nosso sistema penitenciário, onde decorrem problemas como a falta de condições necessárias à sobrevivência (falta de higiene, regime alimentar deficiente, falta de leitos), deficiências no serviço médico, elevado índice de consumo de drogas, corrupção, reiterados abusos sexuais, ambiente propício à violência, quase ausência de perspectivas de reintegração social, e inexistência de uma política ampla e inteligente para o setor.
Como afirmava Foucault: “Aquilo que, no início do século XIX, e com outras palavras criticava-se em relação à prisão (constituir uma população ‘marginal’ de ‘delinquentes’) é tomado hoje como fatalidade. Não somente é aceito como um fato, como também é constituído como dado primordial”.
A finalidade da prisão de ressocializar a pessoa presa, nas situações atuais, é tarefa impossível. Como já evidenciou Denise de Roure (1995,p.208): “Falar em reabilitação é quase o mesmo que falar em fantasia, pois hoje é fato comprovado que as penitenciárias em vez de recuperar os presos os tornam piores e menos propensos a se reintegrarem ao meio social”.
Embora o Legislador Ordinário ao editar a Lei 7.210/84 - Lei de Execução Penal – (L.E.P.) o tenha feito com bastante sapiência, no entanto, o Poder Executivo não se aparelhou para executar com maestria os comandos insculpidos nos seus 204 artigos, os quais se fossem bem executados certamente poderiam ter impedido que o sistema penitenciário apresentasse o caos atual.
A finalidade da pena, por sua vez, não teria tomado o rumo que tomou, ou seja, ao invés de ressocializar e preparar para o convívio social, vem provocando a marginalização, resultando em crimes geralmente de maior gravidade que aquele inicialmente praticado pelo indivíduo no seu primeiro encarceramento.
A Lei de Execução Penal (L.E.P) determina, no seu artigo 5ª, que os presos ao ingressarem no sistema penitenciário, sejam classificados, segundo os seus antecedentes e personalidades, para orientar a individualização da execução penal. O artigo 6ª da (L.E.P), por sua vez, ordena que as classificações desses apenados deverão ser feitas por intermédio de uma Comissão Técnica de Classificação - CTC, comissão que deverá elaborar um programa individualizador.
Acrescenta o mesmo comando que essa Comissão acompanhe a execução dessas penas privativas de liberdade e restritivas de direito. Já no artigo seguinte, ou seja, o 7ª (sétimo), da L.E.P. descreve a composição dessa Comissão Técnica de Classificação - CTC, ao preconizar que a Comissão Técnica de Classificação será presidida pelo diretor do estabelecimento prisional e composta por dois chefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social, sendo a composição mínima de seis membros.
Todavia, em muitos dos Estados da federação, nem mesmo existe essa comissão, como no caso do Ceará, onde é atenuada essa deficiência com o remanejamento de agentes penitenciários para suprir essa carência, no entanto, o próprio quadro de agentes para a atividade fim já é deficitário.
4.0 Conclusão
É presente a ideia de que a ressocialização no nosso Estado e no Brasil, está ainda na fase fetal. A imprensa apresenta não raramente, fatos que assemelham-se ao descrito nesta pesquisa – tortura, tratamentos cruéis, inclusive de menores em casa que são destinadas a reeducação… provocam na sociedade, o descrédito das instituições que são incumbidas do reintegrado ao convívio social, pessoas que embora tenham cometido crimes, não perderam a condição natural de seres humanos.
Abordamos o conceito da dupla condenação. O sujeito recebe as penas impostas pela norma positivada e, no decurso do cumprimento, sofre o castigo das péssimas condições de tratamento em que é submetido nas prisões. Fato que corrobora negativamente para uma possível ressocialização, isso quando não ceifa de vez uma eventual reintegração a sociedade.
Vimos em Fucault, a ressocialização através do trabalho. Instituto que pode resgatar a vontade do preso de rever seu comportamento pela importância e dignidade inerentes. No nosso Estado, através de parcerias entre empresas privadas e a Secretaria de Justiça, órgão responsável pelo Sistema Prisional, tem desenvolvido alguns projetos de reinserção dos egressos no emprego formal. Somam-se hoje cerca de 67 empresas que fazem parte deste programa.
Trata-se sem dúvida, de uma bela iniciativa, no entanto só alcança aqueles presos que praticaram crimes de baixa gravidade e sem ameaça e violência a pessoa. O paradoxo persiste exatamente, em ser os autores de crimes graves que mais necessitam de serem ressocializados. Destarte, os passos iniciais estão sendo dados, restando a consciência de que o Estado e seus modelos de aplicação da força coercitiva, sua responsabilidade na defesa de toda sociedade, deve suplantar os abismos existentes entre a formalidade legal e a realidade contrastante.
BIBLIOGRAFIA
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 14 ed., Rio de Janeiro: Graal, 1999.
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