A cada época identifica-se um ícone[1], uma personalidade que bem a caracteriza. Por exemplo, a criatura do Frankenstein[2] que se apresentou como a demonstração de êxito e sucesso da ciência positivista ao criar uma pessoa. Apesar de que ainda sem controle do âmbito metafísico, sem responder à indagação sobre sua alma.
Embora a cultura popular associe o nome Frankenstein à criatura, esta não é nomeada por Mary Shelley. Ela é referida apenas como "criatura", "monstro", "demônio", "desgraçado" por seu criador.
E, após o lançamento do filme Frankenstein em 1933, o público passou a chamar assim a criatura. Isso foi adotado mais tarde em outros filmes. Alguns argumentam que o monstro é de certa forma, um "filho" de Victor e, portanto, pode ser chamado pelo mesmo sobrenome. Frankenstein é o antigo nome de uma antiga cidade na Silésia[3], local de origem da família Frankenstein. Mary Shelley teria conhecido um membro desta família, o que possivelmente influenciou sua criação.
A dualidade ungida do médico e o monstro é bem representativa da modernidade, a denunciar a face oculta dos homens, repleta de pulsões[4], impulsos e emoções vergonhosas que transformava o educado cidadão inglês em um humanoide não civilizado.
Criaturas caricatas se encaixam no mundo caótico de uma cultura marcada de paradoxos e sínteses complexas. Os zumbis, o morto-vivo revela a configuração da sociedade atual. E, há basicamente duas modalidades de zumbis: os de casos reais e os fictícios.
Entre os casos reais de zumbis há uma publicação de 1985 do antropólogo Wade Davis[5], na obra intitulada “’The serpente and the rainbow”, onde descreveu a ação de feiticeiros haitianos ocorridos no ano de 1960, que através de substâncias químicas naturais que eram capazes de tornar em zumbis as pessoas. Que então passavam a ser obedientes ao seu comando.
Há um relato[6] mais antigo datado de 1931 relatado pela antropóloga Zora Neale Hurston[7]. Há ainda outras histórias que atestam a possibilidade real de seres humanos possam se comportar como zumbis fictícios.
Quanto aos zumbis fictícios, suas primeiras informações datam de 1968 com o filme intitulado “A noite dos mortos-vivos” que dirigido por George Andrew Romero[8], com no livro de Wade Davis[9].
Nesse filme, os zumbis são lentos e abobados. Mas, a partir do ano de 2000, os filmes passaram a mostrar zumbis ágeis, fortes, inteligentes que tanto fascinaram e assustaram os fãs do gênero.
Para a definição de zumbi é preciso compreender que é diferente dos monstros anteriores, sendo fruto de um fenômeno cultural, sem autor exclusivo, é preciso fazer uma descrição especulativa.
O zumbi é pessoa que, por algum motivo, deixa de agir de forma autônoma e racional; ele parece dirigido a um único objetivo, sem se importar com os obstáculos que se prostam à sua frente ou com suas próprias condições físicas para cumprir esse objetivo.
Tal objetivo não é buscado por determinação ou ideologia, mas por mero automatismo. O automatismo[10] traz em seu bojo o abandono do estado de liberdade de deliberação cega para entrar numa perseguição determinada a um objetivo ou objeto de cunho praticamente instintivos, ou seja, natural.
Na obra “A natureza de Merleau-Ponty[11] (2000) desenvolveu o dilema clássico natureza versus liberdade” [12]. E, nessa obra redimensional os conceitos tradicionais das escolas filosóficas predominantes.
Ao longo da obra, o filósofo francês demonstra que natureza e liberdade não são conceitos excludentes se forem pensados dentro de um ciclo: a natureza sustenta o corpo que nutre a consciência que se liberta ao se projetar no mundo.
O acaso da natureza está estreitamente ligado ao algoritmo da programação do universo, ou melhor, multiverso. O fenômeno chamado de zumbificação é a interrupção do ciclo, mantendo, de alguma forma, a pessoa presa aos processos automáticos[13] naturais.
A zumbificação[14] pode ser resultante da alienação e, nos remete a uma automação da sobrevivência monitorizada por ideologias, crenças e culturas.
Trazendo essa metáfora para nossa realidade social, há diferentes formas de zumbificação disponíveis. O zumbi reúne numa só criatura o melhor da vida e o melhor da morte. Em sua eternidade encarnada é capaz de vencer os limites normalmente intransponíveis e que desafiam a ciência.
Na contemporaneidade é possível identificar duas espécies de zumbis, a saber: o tecnólogo (pelos smartphones, tablets, notebooks, ipods e, etc.) e, ainda, os zumbis produzidos pelas drogas (principalmente o crack[15], cocaína, LSD e tantas outras substâncias psicotrópicas, lícitas ou não).
Ab initio, os caminhos da zumbilândia (em saga) são opostos, mas que parecem levar aos funcionamentos psicológicos semelhantes a uma mediação do contato de um mundo com o outro.
Novamente, Merleau-Ponty desenvolveu reflexões sobre a percepção e os significados apreendidos pela consciência. O filósofo afirmou que:
“O verdadeiro Cogito não define a existência do sujeito pelo pensamento de existir que ele tem, não converte a certeza do mundo em certeza do pensamento do mundo e, enfim, não substitui o próprio mundo pela significação mundo. Ele reconhece, ao contrário, meu próprio pensamento como um fato inalienável, e elimina qualquer espécie de idealismo revelando-me como "ser no mundo".”.
O cogito foi termo latino utilizado por Descartes em suas meditações e, normalmente, a tradução que usualmente se faz para o português é “penso”. O seu lema mais famoso é: “penso, logo existo” (ou penso e, portanto, existo). Ou simplesmente: cogito ergo sum[16].
E, através da afirmação cartesiana, Merleau-Ponty refere-se ao pensamento reflexivo que, ao trabalhar ativamente na ação de pensar filosoficamente, não deve confundir seu objeto de estudo.
Ele não pode saltar a realidade e, como se mostra para os significados surgidos diante da realidade. A compreensão sobre a principal característica dos zumbis pode ser percebida por meio da descrição realizada anteriormente, seja a sua capacidade de não se conectar a uma forma pessoal e atenta àquilo que surge na sua frente.
Ele não vê, por exemplo, uma pessoa com sua história de vida e subjetividade diante de si. Cada vez mais a visão enxerga apenas a significação que lhe interessa a respeito de quem o intercepta.
Afinal, não se trata do verdadeiro cogito conforme nomeia Merleau-Ponty. Refere-se, em verdade, apenas a um cogito parcial, cada vez mais tendencioso e interesseiro[17].
Os elementos contemporâneos nem sempre nos permite acessar a um cogito, mas de certo foco talvez, no princípio consciente, mas, posteriormente, atingindo um nível de funcionamento denominado pré-reflexivo.
A permanência intensa da consciência em nível pré-reflexivo, de modo que raramente se dispusesse ao reflexivo, começamos a perceber a fronteira o limiar entre a natureza e liberdade.
Portanto, aquilo que é automatizado, instintivo e pré-reflexivo nem sempre chega à escolha conscientemente deliberada. Intimamente podemos pensar no imenso arsenal de coisas e sentimentos que precisamos mudar, mas não o fazemos. Pois, se tudo dependesse exclusivamente de uma deliberação, a Psicologia e a Psicanálise seriam então projetos sem sucesso.
As mudanças ocorreriam apenas por uma sugestão clara e direta que seria atendida prontamente. O grande desafio é atingir as mudanças em nível pré-reflexivo, onde se dá o desenvolvimento de hábitos e pensamentos.
Ao eleger os caminhos tecnológicos, ou os caminhos químicos e tóxicos (e decadentes), o que representa uma nova representação com a configuração nas relações humanas e sociais.
De repente, a relação com as outras pessoas se transforma em uma significação pré-reflexiva que faz por meio da realidade, prendendo o sujeito em uma abertura enviesada para o mundo.
Não compete elaborar preconceitos contra a tecnologia ou mesmo contra ao uso de substâncias químicas alteradoras da psiquê[18]. O que se pretende é apontar que ocorre a mesma zumbificação do sujeito através dos caminhos apresentados.
Os zumbis tecnológicos se transportam para outra realidade, aquela que atendem aos estímulos visuais e auditivos. O mundo percebido onde este vive, torna-se não aquele que ali está, mas o outro mundo concretizado e estruturado pela tecnologia. O mundo virtual substitui o mundo real.
Os zumbis da tecnologia são transportados, para outra realidade, onde os sinais apitam, acendem e avisam em suas telas. O mundo é tocante ou mais propriamente tocável, no sentido literal da palavra, de ser sensível ao toque dos dedos. O maior problema para o zumbi tecnológico é que o mundo fisicamente próximo dela não deixa de existir.
Já em 2013 nos EUA registrou-se a majoração do número de quedas, acidentes e atropelamentos o que aumentou de forma drástica e proporcionalmente ao uso trivial de smatphones pelas ruas, conversando, recebendo e enviando mensagens. Sendo percebido tanto o uso pelos motoristas como por passageiros.
A zumbificação de pessoas ocorre por meio do uso do celular. E mesmo os que se encontram mais próximos e usando ou não o smartphone, no momento da contaminação, sofrem maiores sequelas. A todo instante, é raro encontrar, quem não esteja enfocando uma tela de celular, onde há um painel multi-informacional.
E, tudo que lá consta, parece ser mais real e acessível que o mundo o real e concreto, em sua volta. Por vezes, o mundo em sua volta pode tornar-se um obstáculo, por não ser tão acessível, dinâmico e prático como o mundo digital.
Assim, é muito comum que as pessoas estejam próximas com seus celulares, mas estejam interagindo fazendo uso de aplicativos enriquecidos de sons, cores e acontecimentos novos enquanto que ambiente analógico se mantém distantes de relações sociais e humanas concretas.
É possível ainda se reconhecer que esse entendimento promovido pelos smartphones esteja ainda mais integrado à realidade circundante. E, já existem as tecnologias vestíveis (wearable), com a oferta de relógios inteligentes, óculos, roupas e demais acessórios que garantem que a pessoa esteja sempre conectada ao telefone, a internet, as redes sociais e, demais aplicativos informacionais[19].
E, até mesmo os órgãos sexuais sintéticos podem ser integrados a todo esse funcionamento virtual das relações à distância. Tais recursos integram dois âmbitos de realidade, colocando no mundo concreto de hologramas, redes sociais, jogos e outros aplicativos que complementam o mundo.
Sobre os zumbis do crack, sua realidade se mostra bem mais cruel. A participação de uma química externa (assim como no caso dos zumbis haitianos) no processo de zumbificação provoca a presença de sequelas físicas, psicológicas, sociais, afetivas que tanto estimulam a escravidão na busca de maior substância na ilusão do prazer.
A cega e inopinada procura para manutenção do vício para continuar a manter o funcionamento do psicológico sob o efeito da droga, é comum que comece um processo de progressiva decadência degradante que tanto corrói saúde, laços familiares, emprego, bens materiais, paz e, tudo enfim.
Em diversos locais do mundo o surgimento das chamadas cracolândias[20], local onde há o deliberado uso e abuso dessas substâncias por várias pessoas, gera uma multidão de zumbis que se utilizam de diversas estratégias para conseguir recurso para manter a saciedade do vício.
É comum, inclusive que as pessoas contem histórias dramáticas narradas até a exaustão e, já nem sabem mais, para quem as contou, e tentam comover a todo custo o interlocutor para conseguir mais recursos e serem rapidamente investidos em novas doses de drogas.
O mundo do zumbi do crack está além da realidade que os circunda, mas isso não provoca um complemento divertido e interessante nem na seara acadêmica das ciências sociais e humanas e nem nas ciências da saúde.
A metáfora dos zumbis é tão particularmente expressiva que alguns apresentadores de TV que já usaram tal termo para designar essas pessoas que definham nas ruas dos grandes polos urbanos, o fazem com absoluta naturalidade e indiferença.
Há um grande perigo social que alerta ao identificar o zumbi como o mostro contemporâneo, encarnado sob a couraça de mortos-vivos. O uso político da expressão “zumbi” promove e acelera ainda mais severamente a desumanização das pessoas que chegam ao mais fundo da miséria em suas vidas, justificando qualquer violência que ocorra contra eles.
Afinal, quase toda literatura e até mesmo as produções cinematográficas sobre os zumbis apregoam que essas criaturas devem ser mortas sem hesitação ou piedade.
A jornada heroica forçosamente inclui o abandono da compaixão e a adoção da fria estratégia de aprender a matar sem pensar duas vezes, extirpando a vida de quem já está praticamente morto. Ou pelo menos, socialmente morto. Promovendo assim, talvez uma faxina eugênica[21].
O filósofo Giorgio Agamben bastante influente nos temas relacionados com o urbanismo e relações humanas contemporâneas trouxe ao nosso conhecimento o conceito de homo sacer.
O homo sacer é uma pessoa que perde seu status de cidadão e, não precisa ser respeitado como tal. Na Roma Antiga tais homo sacer poderiam ser assassinados, por qualquer um, a qualquer momento com a garantia de que o assassino sairia impune.
Porém, o homo sacer não poderia ser morto em rituais religiosos, pois não era digno de ser oferecido à divindade. Questionamos esse processo crescente de desumanização, lembremos-nos da trágica morte do índio Galdino[22] em Brasília e, tantos outros mendigos e moradores de rua[23] que são espancados, torturados e queimados e até mesmo flechados como se tal conduta fosse absurdamente normal.
Homo sacer é uma expressão em latim que significa literalmente homem sagrado. ou seja, homem a ser julgado pelos deuses.
É, de fato, uma figura obscura do direito romano arcaico, que se refere à condição de quem cometia um delito contra a divindade, colocando em risco a pax deorum[24], a amizade entre a coletividade e os deuses, que era uma garantia de paz e prosperidade da civitas.
Portanto, tal delito significava uma ameaça ao próprio Estado. De sorte, que o indivíduo era consagrado à divindade, entregue à mercê da vingança dos deuses, sendo expulso do grupo social, tendo excluídos todos seus direitos civis e, a sua vida passava a ser considerada sagrada no sentido negativo.
Podendo ser morto por qualquer um, porém não em rituais religiosos. A figura do homo sacer é similar a do personagem Caim[25], da mitologia judaico-cristã.
Tal conceito cunhado por Agamben, filósofo italiano, cuja produção se concentrou as relações contínuas entre filosofia, ética, estética, lógica, literatura, política e o meio jurídico.
O autor é importante intelectual na teorização do mundo contemporâneo e, vem sendo considerado como referencial teórico em diversas pesquisas. Retomando a figura do direito romano homo sacer para evidenciar o ponto entre o poder soberano e a biopolítica que é exercido pelo meio jurídico e que torna certas vidas descartáveis.
Agamben retomou a distinção feita por Aristóteles entre bios e zoé. Bios é o reino da ética e da moral onde se manifesta o juízo, representa o modo de viver dentro do grupo que depende da linguagem. Enquanto que zoé é a vida nua, natural e biológica, tão comum a todos os homens, ou seja, a mera existência.
Para o autor, o homo sacer demonstraria a inversão da tese de Walter Benjamin[26] de que a vida nua seria onde cessa o domínio do direito sobre o ser vivente.
Diferentemente, para o filósofo italiano, a vida nua é o campo em que se mantém o paradoxo, pois é o lugar em que vida foi excluída exatamente por sua inclusão, onde só o direito pode alcançar o vivente.
Assim, a vida torna-se limável pela ordem do poder soberano juridicamente construído, o poder jurídico torna o vivente excluído, aniquilado e descartável.
Assim como os zumbis do crack ou do smartphone possuem uma interpretação mediada nas relações, estaríamos nós, também aprendendo a tomar determinadas interpretações como conceitos culturais mais corretos que nossa forma própria e pessoal de perceber a realidade?
O que enxergamos na carcaça humana dos zumbis uma faceta obediente e passiva e, sua destruição e extermínio não chega configurar nem crime ou barbárie. A indiferença nos fazem assassinos mais cruéis que todas as bestas que já extintas sobre o planeta[27].
Quando será que entenderemos finalmente que confinar a realidade a nossa volta à indiferença e negligência, significa também atentar contra a nossa própria humanidade e, ao direito de sobreviver e, buscar caminhos de defender a igualdade, a dignidade e a compaixão?
Referências:
TORRES, André Roberto Ribeiro. Monstro do cotidiano. In: Revista Filosofia, Ciência e Vida n. 126. 2017.
MARTINS, Aline Souza. Homo sacer, sujeitos abandonados ao crime. Giorgio Agamben e Psicanálise. Disponível em: http://www.appoa.com.br/correio/edicao/240/homo_sacer_sujeitos_abandonados_ao_crime/158 Acesso em 31.08.2017.
TILBURI, Márcia. A zumbificação da política brasileira Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/marcia-tiburi-a-zumbificacao-da-politica-brasileira/ Acesso em 30.08.2017.