20. Credenciamento para a contratação de instituição financeira
De acordo com a Instrução Normativa nº 5/2017, as provisões realizadas pela administração contratante para o pagamento dos encargos trabalhistas, em relação aos empregados de empresas contratadas para prestar serviços de forma contínua, por meio de dedicação exclusiva de mão de obra, serão destacadas do valor mensal do contrato e depositados pela administração em conta denominada conta-depósito vinculada, bloqueada para movimentação, aberta em nome do prestador de serviço.
Embora sem previsão nos incisos do art. 25 da Lei nº 8.666/93, o credenciamento tem sido admitido pela doutrina e pela jurisprudência como hipótese de inexigibilidade que se deduz do caput do referido dispositivo. A inviabilidade de competição configura-se pelo fato de a administração pública dispor-se a contratar todos os que tiverem interesse e que satisfaçam as condições por ela estabelecidas, não havendo, portanto, relação de exclusão resultante de competição. Será credenciado todo aquele que atender a tais condições.
A aplicação do credenciamento na contratação de serviços deve observar os seguintes requisitos: (a) a contratação de todos os que tiverem interesse e que satisfaçam as condições fixadas pela administração, não havendo relação de exclusão; (b) a garantia da igualdade de condições entre todos os interessados hábeis a contratar com a administração, pelo preço por ela definido; (c) a demonstração inequívoca de que as necessidades da administração somente poderão ser atendidas dessa forma, observadas as exigências do art. 26 da Lei nº 8.666/93, principalmente no que concerne à justificativa de preços.
Admite-se, no credenciamento, quando sejam ínfimas as diferenças nos serviços ofertados pelos interessados, a possibilidade de a administração pública fixar o valor do objeto a ser contratado (in casu, os valores de cada um dos serviços relacionados à conta vinculada). Todavia, essa fixação de preço para o objeto somente se justifica se for mais vantajoso para a administração em relação àqueles provenientes de licitação. É que um dos objetivos da licitação é a busca da proposta mais vantajosa e a disputa preordena-se a esse fim.
Existindo ofertas de preços díspares entre as instituições financeiras, ou seja, não sendo os mesmos os preços praticados pelas instituições, abre-se espaço para a abertura de processo seletivo em busca da proposta mais vantajosa para a administração.
No credenciamento alicerçado no art. 25, caput, da Lei nº 8.666/93 examina-se, reitere-se, a inviabilidade de competição caracterizada pelo fato de a administração dispor-se a contratar todos os que tiverem interesse e que satisfaçam as condições por ela unilateralmente estabelecidas, não havendo, portanto, relação de exclusão. Esse raciocínio não se estende ao credenciamento de instituições financeiras habilitadas à prestação de serviços de abertura e operacionalização de contas vinculadas, na forma preconizada pela IN nº 05/2017, porquanto os preços cobrados não são uniformes, o que obriga a administração a buscar a proposta mais vantajosa, observadas as condições postas em edital, por meio de licitação.
21. Conclusão
O exame da IN nº 5/2017, em contraste com a IN nº 2/2008, que veio revogar, e com as normas federais regentes das licitações – desde as da Lei Geral, nº 8.666/1993, passando pelas normas do pregão, do registro de preços e do RDC -, reaviva velha questão do direito administrativo brasileiro, qual seja a dos limites entre os decretos regulamentares e os decretos ditos autônomos. Os regulamentares partem, necessariamente, da preexistência da lei que visam regulamentar, com o que não podem inovar a ordem normativa positivada na lei, e os autônomos estabelecem regramento sem lei anterior, por isto que inovam a ordem jurídica. Os regulamentares são fundados no art. 84, IV, da Constituição da República, do qual se extrai que os decretos, como atos administrativos do chefe do Poder Executivo, limitam-se a proporcionar, mercê das regras regulamentadoras, a fiel execução das leis que almejam regulamentar. Os autônomos podem viabilizar, com regramento inovador, o desempenho de competências privativas do executivo federal, sem, necessariamente, lei anterior que as desdobrem em funções gerenciais e operacionais, como soem ser aquelas previstas no art. 21 da Constituição.
A coexistência dessas espécies de normas infra legais suscita pelo menos duas questões de fundo controvertidas: se seria compatível com a ordem constitucional inaugurada em 1988 a edição de decretos autônomos; e, respondida afirmativamente que seja tal indagação, se os decretos regulamentares e os autônomos estariam igualmente sujeitos a controle concentrado de constitucionalidade quando se lançassem a editar normas em aparente conflito com a Constituição.
Tais questões são reabertas pela IN nº 5/2017, o que se ilustra com pelos menos dois temas por ela versados como condições universais para que as empresas sejam admitidas a participar de licitações para a contratação de serviços: (a) a exigência de apresentarem a chamada “declaração de elaboração independente de proposta”; (b) a exigência de apresentarem declaração de que não empregam menores de forma vedada pela legislação de proteção ao trabalho de menores. A falta de qualquer dessas declarações, na abertura do procedimento licitatório, impede que as empresas faltosas sejam admitidas a participar do certame. Logo, tais declarações constituem condições universais de admissão às licitações na administração federal para a contratação de serviços, e, não, propriamente, requisitos de habilitação para contratar.
A primeira declaração não conta com prévia previsão legal; trata-se de exigência criada pela norma regulamentar, que, portanto, nesse ponto, seria autônoma. A segunda declaração conta com expressa previsão em lei anterior, embora seja por esta definida como requisito de habilitação, e, não, como condição geral de admissão ao certame, seguindo-se a dúvida - seria norma meramente regulamentar ou autônoma?
O texto que se ora conclui dedica, nos itens próprios, comentários a tais desafios conceituais, com importantes repercussões na ordem jurídica, constitucional e administrativa. Basta lembrar, para perceber-se a sua relevância, que o Supremo Tribunal Federal admite o controle concentrado de constitucionalidade de regulamentos autônomos em face da Constituição cujos preceitos violariam, mas não admite o controle de constitucionalidade de normas de mera regulamentação de lei, pela evidente razão de que se a suposta contrariedade do regulamento é à lei que o precede, o controle é de legalidade, e, não, de constitucionalidade. Seja como for, os intérpretes e aplicadores defrontar-se-ão com questão visceral, qual seja a da validade dessas normas reguladoras. Seriam passíveis de nulidade, acaso contrárias às leis ou à Constituição? E com que efeitos sobre as licitações eventualmente já concluídas e os contratos já celebrados com base nas normas depois consideradas inconstitucionais ou ilegais? Se nulos, sê-lo-iam com eficácia ex tunc (retroativa) ou ex-nunc (para o futuro, a partir da declaração de nulidade)? A solução que melhor atenderia ao interesse público depende de exame casuístico ou haveria critério distintivo genérico?
A IN nº 5/2017 intenta consolidar a orientação que a jurisprudência dos Tribunais Judiciais Superiores e de Contas da União têm traçado nas matérias suscitantes de dúvidas e conflitos, não raro atraindo a responsabilização dos agentes públicos e privados envolvidos nas contratações administrativas de serviços. Mas tampouco o repertório jurisprudencial se apresenta estático, até porque é construído a partir de soluções adotadas em face das circunstâncias e peculiaridades dos casos concretos que chegam ao exame das Cortes, podendo, portanto, variar em função do perfil de cada caso. Tais precedentes também são referidos ao longo dos presentes comentários, com o fim de esclarecer o sentido das normas reguladoras, quando estas os retratam, o que não ocorre em todas as situações, até porque a IN nº 5/2017 cuida, igualmente, de propor alternativas que ainda não foram objeto de tutela jurisdicional.
Recorde-se, à guisa de conclusão do exame a que se procedeu sobre as regras, sobretudo operacionais, da IN nº 5/2017, que o direito administrativo enfrenta um desafio planetário, reeditado em todos os ambientes estatais e culturais em que avançou como ramo autônomo das ciências jurídicas, a partir do século XIX. E que foi magistralmente desenhado pelo saudoso Eduardo Garcia de Enterría, que tantos discípulos e admiradores fez em viagens acadêmicas ao Brasil até os primeiros anos desta centúria: “Es posible, es seguro podria decirse, que la función administrativa constituya un predicado esencial y permanente de las sociedades humanas, pero es seguro que esta esencialidad y esta permanencia no son capaces de expresarse em una estructura definitiva e inmutable [...] La historia de la Administración es, por ello, la historia de un permanente hacer y deshacer, la historia de un constante proceso de revisión de sus estructuras instuticionales, proceso que llega a formar parte así de la esencia misma del concepto” (La Administración Pública y el Estado contemporáneo, p. 166. Madri: Civitas, 1961).
A IN nº 5/2017 pretenderia atualizar ritos e procedimentos das licitações federais para a contratação de serviços. Na ânsia de combinar modernidade de gestão estatal com segurança jurídica e expedita fluência dos respectivos processos administrativos, terá logrado êxito em alguns pontos e incidido em desvios técnicos em outros. Decerto que outras IN virão, no ensaio permanente de “hacer y deshacer” em busca da superior satisfação do interesse público. Se for este o sincero objetivo de cada nova versão, já a administração pública brasileira estará descortinando os horizontes para os quais devem convergir direito, gestão e ética. Não sendo tal o objetivo, então a IN nº 5/2017 e suas sucessoras estarão sendo, em sua concepção e aplicação, mais um espasmo burocrático sem compromisso com o direito, a gestão e a ética.
Notas
[1] A existência de referenciais de preços oficiais (tabelas), a formar os custos do objeto e a fixação de critério de aceitabilidade baseado em preços máximos, unitário e global, possibilita à administração efetivar a contratação segundo os preços praticados pelo mercado. Nessas condições e, ainda, admitida a oferta de descontos lineares sobre todos os itens da planilha, dificulta-se a prática do chamado “jogo de planilhas”, tendo em vista que até os itens com grande demanda terão que ser comercializados a preço mais baixo do que o orçado.
[2] O art. 2º, II, do Decreto federal nº 9.046/17, que dispõe sobre as condições para a contratação plurianual de obras, bens e serviços, no âmbito do poder executivo federal, define o contrato como sendo o ajuste entre órgãos ou entidades da administração pública federal e particulares em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, não obstante a denominação utilizada, realizado com fundamento nas disposições da Lei nº 8.666/93, da Lei nº 12.462/11, ou da Lei nº 10.520/02.
[3] http://portal2.tcu.gov.br/portal/pls/portal/docs/2057620.PDF
[4] De acordo com o art. 5º, I, da Lei nº 10.520/2002 (lei do pregão), é vedada a exigência de garantia de proposta (art. 31, III, da Lei nº 8.666/1993) nessa modalidade.
[5] O Tribunal de Contas da União expediu orientações aplicáveis à realização de contratos de gestão com organizações sociais. Assim:
9.2. informar à Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal, em referência ao Requerimento 26/2016, objeto do Ofício 1.016 (SF), de 3/8/2016, que:
9.2.1. o Supremo Tribunal Federal, por meio da ADI 1.923, ratificou a constitucionalidade da contratação pelo Poder Público, por meio de contrato de gestão, de organizações sociais para a prestação de serviços públicos de saúde;
9.2.2. as fiscalizações realizadas por este Tribunal sobre o assunto nunca questionaram a constitucionalidade de tais contratações e partem do pressuposto de que elas se apresentam validamente instituídas pela Lei 9.637/1998 e são uma realidade corriqueiramente posta;
9.2.3. a jurisprudência consolidada do Tribunal de Contas da União (e.g. Acórdãos 3.239/2013 e 352/2016, ambos do Plenário deste Tribunal) é no sentido de reconhecer a possibilidade de realização de contratos de gestão com organizações sociais, com as seguintes orientações sobre a matéria:
9.2.3.1. apesar de abrir mão da execução direta dos serviços de saúde objeto de contratos de gestão, o Poder Público mantém responsabilidade de garantir que sejam prestados na quantidade e qualidade apropriados;
9.2.3.2. do processo de transferência do gerenciamento dos serviços de saúde para organizações sociais deve constar estudo detalhado que contemple a fundamentação da conclusão de que a transferência do gerenciamento para organizações sociais mostra-se a melhor opção, avaliação precisa dos custos do serviço e dos ganhos de eficiência esperados, bem assim planilha detalhada com a estimativa de custos a serem incorridos na execução dos contratos de gestão;
9.2.3.3. a escolha da organização social para celebração de contrato de gestão deve, sempre que possível, ser realizada a partir de chamamento público, devendo constar dos autos do processo administrativo correspondente as razões para sua não realização, se for esse o caso, e os critérios objetivos previamente estabelecidos utilizados na escolha de determinada entidade, a teor do disposto no art. 7º da Lei 9.637/1998 e no art. 3º combinado com o art. 116 da Lei 8.666/1993;
9.2.3.4. as organizações sociais submetem-se a regulamento próprio sobre compras e contratação de obras e serviços com emprego de recursos provenientes do Poder Público, observados os princípios da impessoalidade, moralidade e economicidade, sendo necessário, no mínimo, cotação prévia de preços no mercado;
9.2.3.5. não é necessário concurso público para organizações sociais selecionarem empregados que irão atuar nos serviços objeto de contrato de gestão, entretanto, durante o tempo em que mantiverem contrato de gestão com o Poder Público Federal, devem realizar processos seletivos com observância aos princípios constitucionais da impessoalidade, publicidade e moralidade;
9.2.3.6. os Conselhos de Saúde devem participar das decisões relativas à terceirização dos serviços de saúde e da fiscalização da prestação de contas das organizações sociais, a teor do disposto no art. 1º, §2º, da Lei Federal 8.142/1990;
9.2.3.7. os contratos de gestão devem prever metas, com seus respectivos prazos de execução, bem assim indicadores de qualidade e produtividade, em consonância com o art. 7º, I, da Lei 9.637/1998;
9.2.3.8. os indicadores previstos nos contratos de gestão devem possuir os atributos necessários para garantir a efetividade da avaliação dos resultados alcançados, abrangendo as dimensões necessárias à visão ampla acerca do desempenho da organização social;
9.2.3.9. a comissão a quem cabe avaliar os resultados atingidos no contrato de gestão, referida no art. 8º, §2º, da Lei 9.637/1998, deve ser formada por especialistas da área correspondente;
9.2.3.10. devem ser realizados estudos que indiquem qual sistema de remuneração dos serviços prestados é mais adequado para o caso específico do objeto do ajuste a ser celebrado, levando em consideração que a escolha da forma de pagamento por tempo, por procedimentos, por caso, por capitação ou a combinação de diferentes métodos de remuneração possui impacto direto no volume e na qualidade dos serviços prestados à população;
9.2.3.11. os processos de pagamento das entidades contratadas devem estar suportados por documentos que comprovem que os serviços foram efetivamente prestados – demonstrando o controle da frequência dos profissionais, os procedimentos realizados, os pacientes atendidos – e que garantam que os impostos, taxas e encargos trabalhistas aplicáveis ao caso foram devidamente recolhidos;
9.2.3.12. não há amparo legal na contratação de mão de obra por entidade interposta mediante a celebração de termos de compromisso com organizações da sociedade civil de interesse público ou de instrumentos congêneres, tais como convênios, termos de cooperação ou termos de fomento, firmados com entidades sem fins lucrativos;
9.2.3.13. deve ser promovido, no âmbito das unidades federativas, o fortalecimento dos órgãos de controle e de gestão de modo a se permitir o acompanhamento efetivo dos contratos de gestão; (Acórdão nº 2.057/2016 – Plenário, Rel. Min. Bruno Dantas, Processo nº 023.410/2016-7).
[6] Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: PROCESSO ADMINISTRATIVO. CORRUPÇÃO DE SERVIDORES PÚBLICOS IMPUTADA A EMPREITEIRA DE OBRAS PÚBLICAS. DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE PARA CONTRATAR COM O PODER PÚBLICO. 1. Competência concorrente para a prática do ato. O Ministro de Estado Chefe da Controladoria-Geral da União tem competência concorrente para instaurar processoadministrativo relacionado à defesa do patrimônio público e ao combate à corrupção. 2. Declaração de inidoneidade. A declaração de inidoneidade imputada à impetrante resulta de condutas difusas de corrupção praticadas ao longo de três anos (presentes a servidores públicos: passagens aéreas, estadas em hotéis, refeições a servidores públicos). 3. Razoabilidade e proporcionalidade da punição. A promiscuidade de servidores públicos com empresas cujas obras devem fiscalizar constitui um método sórdido de cooptação, de difícil apuração. Sempre que esta for constatada, deve ser severamente punida porque a lealdade que deve haver entre os servidores e a Administração Pública é substituída pela lealdade dos servidores para com a empresa que lhes dá vantagens. Ordem denegada, insubsistência da medida liminar, prejudicado o agravo regimental. (MS 19269/DF. Rel. Min. Ari Pargendler, DJe 5.12.2014).