Resumo: O presente estudo abordará a sistemática de tributação do ISS Fixo, atinente às sociedades de profissionais (§3º, do art. 9º, do DL nº 406/1968), e sua possível derrogação à luz das disposições do artigo 8º-A da LC nº 116/2003, incluído pela LC nº 157/2016. Sem a pretensão de exaurir o tema, contextualizar-se-á brevemente a temática relativa ao tratamento tributário antes citado e, no escopo, far-se-ão referências ao federalismo fiscal, à autonomia dos entes federativos, à importância da lei complementar tributária e, afinal, à validade e vigência da norma jurídica. Em sede das considerações supra, busca-se uma conclusão ao seguinte questionamento: à luz do §1º do artigo 8º-A da Lei Complementar nº 116/2003, estaria o §3º do artigo 9º do Decreto-lei nº 406/1968 derrogado tacitamente?
Palavras-chave: ISS Fixo. LC nº 157/2016. Revogação. DL nº 406/1968.
INTRODUÇÃO
Sempre que um novo instrumento normativo traz inovações à ordem jurídica, dúvidas e embates se anunciam no horizonte e, não raro, as turbulências desaguam no Poder Judiciário e, dependendo da envergadura, podem chegar ao cume da Suprema Corte.
Como sabido, no dia 30 de dezembro de 2016, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei Complementar n° 157, de 29 de dezembro de 2016, a qual promoveu diversas modificações no texto da Lei Complementar nº 116/2003, que dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, e dá outras providências em seu bojo. Dentre as alterações merecem destaque a fixação da alíquota mínima do ISSQN em 2% e a vedação à concessão de desonerações tributárias que impliquem em carga tributária em montante inferior ao produto da aplicação do dito percentual.
É neste cenário que surgem inquietações sobre o artigo 9º do Decreto-lei nº 406/1968, especialmente no que se refere à tributação das sociedades de profissionais de forma diferenciada, naquilo que se consagrou, na doutrina e na jurisprudência, como ISS Fixo.
Como dito, sempre que a ordem jurídica passa por mudanças é recorrente a ascensão de insurgências. Sob esta ótica, indaga-se: à luz do §1º do artigo 8º-A da Lei Complementar nº 116/2003, estaria o §3º do artigo 9º do Decreto-lei nº 406/1968 derrogado, ainda que inexista expressa alusão?
O deslinde da problemática passa pela compreensão da lei complementar, no contexto federativo, e sobre suas implicações na autonomia dos entes políticos, assim como sobre a derrogação ou a compatibilização das leis no tempo e no espaço.
Desta feita, para fins do presente estudo serão abordadas apenas as questões atinentes à derrogação ou não da sistemática do ISS Fixo, de modo que a abordagem se abstém de quaisquer outras elucubrações sobre a tributação das sociedades de profissionais, visto que se trata de matéria ampla e passível de extensos aprofundamentos.
BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DO ISS FIXO E DA FIXAÇÃO DO SEU MONTANTE
É cediço que, com a promulgação da Carta Republicana de 1988, o ordenamento tributário pretérito foi recepcionado[1] naquilo que não contrariasse materialmente a nova ordem constitucional. Sob o auspício da recepção encontra-se a Lei nº 5.172/1966 (Código Tributário Nacional – CTN) e o Decreto-lei nº 406/1968, ambos recepcionados com status de lei complementar, cujas normas se impõem aos Entes Federativos (União, Estados, Municípios e Distrito Federal), haja vista o disposto no artigo 146 da Magna Carta.
Controvertida desde a origem, a tributação das sociedades de profissionais de forma diferenciada sempre suscitou e continua suscitando dúvidas sobre os aspectos da pessoalidade e sobre os limites da responsabilidade do profissional que presta serviços em nome da sociedade.
Há muito questionada pelos fiscos municipais, a vigência da Lei Complementar nº 116/2003 culminou em inúmeras discussões sobre a derrogação ou revogação do aludido tratamento diferenciado, em face da não inclusão do artigo 9º do Decreto-lei nº 406/1968 entre aqueles expressamente revogados, nos termos do artigo 10 da referida LC. Todavia, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) pôs termo à controvérsia, sustentando que “o art. 9º, § 3º do Decreto-lei 406/68 não foi revogado pelas legislações que lhe são posteriores”[2], de forma que este remanesceu incólume.
O tratamento tributário diferenciado das sociedades de profissionais circunscreve a pessoalidade na prestação de serviços por profissionais habilitados nelas reunidos, caso em que, existindo prestação de serviços sob a forma personalíssima em nome da sociedade, esta, em tese, tem o direito de recolher o imposto sobre serviços de forma diferenciada, em valor fixo, com fulcro no §3º do artigo 9º do Decreto-lei nº 406/1.968.
É preciso esclarecer que, por força do §1º, do art. 9º, do DL nº 406/1968,[3] a definição da base de cálculo do ISSQN para os serviços prestados sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte (profissionais autônomos ou liberais), assim como pelas sociedades de profissionais, poderá se dar por meio de qualquer grandeza econômica, sendo vedada a utilização do preço do serviço, eis que o mesmo representa a remuneração do trabalho do profissional.
Como será explicado adiante, as leis complementares condicionam os entes federativos, estabelecendo os contornos a serem observados quando da instituição dos tributos, em especial os impostos. À referida modalidade normativa caberá a determinação da base de cálculo, assim como do fato gerador e do contribuinte (artigo 146, III, “a”, da CF). Contudo, ao instituir o tributo, podem os entes federativos suplementar as normas gerais, explicitando na legislação tributária os requisitos a serem observados para fins da tributação, tanto para o Fisco como para o sujeito passivo. Não obstante, no caso do tratamento tributário das sociedades de profissionais, isto não se concretizou.
A maioria dos Municípios se limitou a replicar as disposições, nuas e cruas, do §3º, do artigo 9º, do DL nº 406/1968. Inexistiu qualquer preocupação em estabelecer determinados conceitos básicos como a definição do trabalho pessoal do profissional habilitado, assim como o que se entenderia por sociedade de profissionais, dentre outros primordiais aspectos. Coube à doutrina e à jurisprudência, no curso de mais de três décadas, o delineamento dos contornos da tributação em tela.
Outra importante questão, que passou despercebida, versa sobre a capacidade contributiva das sociedades de profissionais. Como regra, a definição do quantum devido por profissionais liberais ou autônomos se dá por via de um indexador municipal ou por intermédio da determinação de um valor qualquer em moeda corrente que, como praxe, é estático, sobre o qual incide tão somente a atualização monetária do período. Daí advém a denominação de ISS Fixo.
Sabidamente, os valores mencionados são baixos e inferiores, sem qualquer relação para com a real capacidade contributiva do sujeito passivo, tal como para com aquele contribuinte cuja base de cálculo é o preço do serviço.
FEDERALISMO FISCAL E AS COMPETÊNCIAS TRIBUTÁRIAS
O poder de tributar é a mais pura manifestação da soberania do Estado e, em um modelo federado, onde há a fragmentação do poder político em diferentes níveis de governo, cada ente é empossado de fragmentos deste poder, materializado sob a forma de competências, na forma delimitada no texto constitucional.
O sistema federativo pressupõe unidade e integração, balizando-se pela união indissolúvel das unidades federadas. No caso brasileiro, o caput do artigo do 1º da Constituição Federal preconiza que a República Federativa do Brasil é “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”. Na mesma linha, o artigo 18 do magno texto assim dispõe:
Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
Como integrantes da Federação, os entes políticos são dotados de autonomia para o exercício de múltiplas competências, na forma delimitada pela Constituição Federal. Entre as prerrogativas advindas da autonomia, se destaca a faculdade de instituir e arrecadar tributos. É dizer: a Constituição Federal não institui tributos, mas apenas estabelece os que podem ser instituídos e arrecadados, distribuindo-os entre os entes federados, na forma das competências tributárias. A Carta ora vigente, veda, ainda, em seu artigo 150, inciso I, que os mesmos sejam exigidos ou majorados sem lei que assim estabeleça.
A instituição de tributo é atributo das leis, em sentido formal e material, assim entendido aquilo que foi produzido com a observância do processo legislativo regular. O fenômeno da instituição do tributo traz consigo a insígnia da imposição, no sentido de obrigar o destinatário ao cumprimento do dever de entregar certa quantia em dinheiro, mormente a uma imposição legislativa, de modo que é cabível elucidar que, por força do artigo 5º, inciso I, da Magna Carta, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
A principal função da Constituição Federal, em matéria tributária, resume-se na delimitação do sistema tributário (artigos 145 a 162). Isso abrange a definição dos tributos que podem ser instituídos e arrecadados (quais sejam, impostos, taxas, contribuição de melhoria, contribuições sociais e empréstimo compulsório). Na esteira, encontram-se as disposições que devem ser observadas pelos entes federados, materializadas sob a forma de regras, princípios e imunidades tributárias, naquilo que se denomina de limitações ao poder de tributar.
Ao estruturar o sistema tributário, o legislador constituinte o fez com a máxima observância ao pacto federativo e, assim, estabeleceu a ordem jurídica a ser observada para fins do exercício da competência tributária, especialmente no que tange à necessidade de lei para impor a exigência tributária, haja vista que somente ela pode compelir o cidadão ao cumprimento da obrigação tributária. Nela, o contribuinte encontrará os elementos da exação e poderá saber como e quando deve pagar, bem como quanto e a quem pagar.
A competência tributária autoriza os entes federados à criação de múltiplas e concomitantes leis tributárias, podendo dispor, como lhes convier, de seus tributos. Todavia, o postulado da autonomia não confere aos entes amplo e irrestrito poder para legislar. É preciso recordar que a forma federativa representa o modo de exercício do poder político do Estado sobre o território e, neste caso, de forma fragmentada. Desta feita, o exercício da competência tributária deve respeitar as limitações contidas no texto constitucional, especialmente aquelas que versam sobre a necessidade de observância das leis complementares, de caráter geral.
A IMPORTÂNCIA DA LEI COMPLEMENTAR TRIBUTÁRIA E SUAS IMPLICAÇÕES NA AUTONOMIA DOS ENTES FEDERATIVOS
Sempre que o tema lei complementar vem à baila, é comum conceituá-la como instrumento que se destina a complementar diretamente o texto constitucional. Trata-se de flagrante equívoco terminológico, visto que sua função é regular tão somente a matéria constitucional de maior relevância, na forma delimitada pelo legislador constituinte.
As leis complementares se diferenciam das leis ordinárias, essencialmente, em razão das matérias àquelas reservadas, geralmente de grande relevância ou polêmica e, principalmente, pelo quórum necessário para sua aprovação, superior ao exigido quando da edição de uma lei ordinária. Sobre o assunto versam os artigos 59, II; 61; 69; 146; 146-A; 148; 153, VII; 154, I; 155, §1°, III e § 2°, XII; 156, III, §3º, 161 e 195, §4º da Constituição Federal.
Destaca-se que não é função da Constituição Federal regular minuciosamente as matérias, sob pena de engessamento do ordenamento jurídico, diante da rigidez do processo legislativo para alteração do texto constitucional. A Magna Carta se presta, primordialmente, a ser o estatuto básico da sociedade, por meio do qual se estrutura o Estado e seus poderes, garantindo e protegendo os valores e direitos individuais e coletivos.
O legislador constituinte, ao positivar o processo legislativo, estabeleceu que certas e determinadas matérias, dada sua relevância ou complexidade, não poderiam ficar sujeitas a constantes alterações através do processo ordinário. Antevendo a necessidade de aprofundamento nos debates e maior consenso entre os parlamentares, preconizou que tais matérias deveriam ser tratadas em sede de lei complementar. Sobre isto escreveu Alexandre de Moraes[4]:
[...] a razão da existência da lei complementar consubstancia-se no fato do legislador constituinte ter entendido que determinadas matérias, apesar da evidente importância, não deveriam ser regulamentadas na própria Constituição Federal, sob pena de engessamento de futuras alterações; mas, ao mesmo tempo, não poderiam comportar constantes alterações através do processo legislativo ordinário.
Como o princípio do federalismo pressupõe unidade, estabilidade e perenidade, isto obsta o exercício desordenado das competências pelos entes políticos. É aí que surge a importância da lei complementar.
No contexto da tributação, as leis complementares editam normas com o fito de orientar ou preordenar a edição das leis ordinárias que instituem e impõem as exações. Destaca-se que, no exercício das competências tributárias, todos os entes federativos devem obediência à Constituição Federal e, no tocante a isto, ela, em seu artigo 146, assim dispôs:
Art. 146. Cabe à lei complementar:
I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.
As matérias contidas no artigo 146 são normas gerais aplicáveis a todos os entes federados. Elas delimitam os contornos das competências tributárias e são de observância inafastável. Registra-se que a expressão norma geral não é sinônimo de norma genérica, posto que elas vinculam os entes federas e os administrados, eis que orientam o exercício da competência tributária.
As normas gerais em matéria de legislação tributária são imperativas e carregam em seu bojo o postulado da segurança jurídica, assegurando a unicidade do pacto federativo, na medida em que uniformizam institutos tributários para fins do legítimo exercício da competência tributária. Isso ocorre, especialmente, no que tange à instituição dos tributos que, como regra, se dá mediante a edição de lei ordinária, salvo nos casos em que o texto constitucional determine que a instituição do tributo em questão pressupõe lei complementar, como por exemplo, o empréstimo compulsório (artigo 148 da CF/1988).
Embora os entes políticos sejam autônomos, característica que implica em sua liberdade para o exercício das competências tributárias, destaca-se que os mesmos se acham aprisionados aos contornos definidos pelas leis de normas gerais. Qualquer lei ordinária editada à revelia de tais normas ou que exorbitem seus limites é tida como inconstitucional.