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Roberto J. Vernengo e a interpretação literal da lei

Agenda 16/10/2017 às 10:20

Analisa-se o texto "La interpretación literal de la Ley y sus problemas". Para Vernengo, no direito, é comum a utilização de palavras para designar relações complexas, cuja percepção extrapola os sentidos.

1. Breve introdução

Roberto J. Vernengo é um premiado jurista argentino, com obras importantes no campo da teoria geral do direito. No Brasil, entretanto, talvez sua obra não seja tão conhecida. Aqui, confesso, tomo a liberdade da sinédoque: não havia cruzado com Vernengo ao longo da minha vida acadêmica.

Nosso primeiro encontro se deu através do grupo de pesquisa “Ponderação de interesses no direito administrativo e contrafações  administrativas”, vinculado à  Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e liderado pelo professor Ricardo Marcondes Martins. Nas reuniões do grupo realizadas em setembro de 2017, discutimos o livro La interpretación literal de la Ley y sus problemas, publicado pela editora Abeledo-Perrot, de Buenos Aires.

Neste artigo, apresentaremos e analisaremos o texto de Vernengo, sem outras pretensões senão a de promover um primeiro contato com o autor. Não apenas no direito, mas em diversos campos culturais (veja-se o caso da música, por exemplo), países em desenvolvimento (apenas para utilizarmos um rótulo usual), como o Brasil e a Argentina, são negligentes no intercâmbio entre pares e buscam mais ao norte os seus referentes. É preciso lembrar que podemos encontrar qualidade sem fazer uso de viagens tão longas e que, talvez, os vizinhos apresentem boas (ou melhores) soluções para nossos problemas, já que costumam ser os mesmos com os quais eles se veem obrigados a lidar.


2. Limites da racionalidade jurídica

Interpretar, no direito, é deduzir de um dispositivo normativo, através de transformações formais logicamente coerentes, expressões equivalentes ou sinônimas, até que se alcance uma fórmula capaz de solucionar uma determinada questão jurídica (seja uma questão eminentemente teórica ou de aplicação prática direta). A interpretação jurídica se pretende atividade eminentemente racional, mas até que ponto podemos falar de uma “realidade” jurídica?

A racionalidade do direito depende da coerência, do ponto de vista lógico, dessas operações de dedução. Acontece que, como destaca Vernengo, não alcançamos, no direito, um método confiável que permita aferir a equivalência de duas expressões normativas.  Os instrumentos metodológicos utilizados pelo direito para realizar essas deduções – como, por exemplo, a analogia – não poderiam ser admitidos como confiáveis, se adotarmos parâmetros de lógica (formal) mais estritos. O direito sofre da imprecisão própria da linguagem natural (ambiguidade, vaguidade, textura aberta etc.), porque é dessa linguagem que se servem os dispositivos normativos.

Na interpretação dos enunciados normativos há algo mais que uma operação lógica. Mesmo a chamada interpretação literal da lei depende mais que do bom conhecimento do vernáculo. E toda interpretação tem início com a literalidade do texto.

É certo que nenhum tipo de comunicação (de que a interpretação é uma espécie) é puro e que a uma abordagem zetética da questão levaria a um niilismo estéril. Não é esta a proposta de Vernengo, que procura se ater à análise  das possibilidades e limites de uma relação racional entre enunciado normativo e sua interpretação.


3. DIFICULDADES DA INTERPRETAÇÃO LITERAL

A interpretação literal não é atividade tranquila, como o senso comum nos faz querer crer. Tanto assim que os intérpretes nem sempre estão de acordo quanto ao sentido literal de dispositivos normativos.

A primeira dificuldade está em que nenhum dispositivo normativo é interpretado de forma isolada. Seus termos se referem a outros que lhe dão sentido e se encontram fora do dispositivo. Como mínimo, a interpretação de um dispositivo legal pressupõe uma relação de seus termos com os demais dispositivos do mesmo diploma.

A identificação de sentido das palavras requer um processo de substituição por equivalentes. Esse processo tende a levar a um ciclo infinito de substituições. A decomposição de uma definição em termos simples, com sentidos mais evidentes, aponta  para  uma solução da questão. No extremo, poderia ser buscada na definição ostensiva de todos os termos utilizados numa linguagem, isto é, num cenário em que cada palavra é o nome de uma coisa.

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Ainda assim, a solução é incompleta, porque nem mesmo a designação da palavra a um objeto garante que este será entendido enquanto classe, por suas características comuns aos demais objetos semelhantes a ele. Além disso, nem tudo que é expresso por palavra é coisa individualizável e sujeita à identificação por experiência sensoriais. E expressões desse tipo são indispensáveis para a linguagem jurídica, como é o caso da palavra justiça. 

Toda interpretação em direito deve buscar, a partir de um dado dispositivo, um sentido que seja coerente com o chamado “espírito da lei” ou, em outras palavras, à intenção do legislador (ainda que tido como entidade abstrata racional). Não é incomum que nesse processo seja violado o sentido literal do texto. Afinal, o legislador pode redigir de forma equivocada o dispositivo.


4. DEFINIÇÃO OSTENSIVA E LINGUAGEM JURÍDICA

Mesmo que fosse possível definir ostensivamente todos os termos empregados pelo direito, a unidade significativa se encontra enunciada de modo que acaba por conferir sentido aos termos que a compõem. Sob essa perspectiva, os conectivos lógicos desempenham papel essencial na definição de sentido dos demais termos do  enunciado.

A demonstração ostensiva de enunciados jurídicos sofre de problemas semelhantes àqueles concernentes à demonstração ostensiva de termos diversos. A dificuldade específica para a definição ostensiva no caso de enunciados legais está em que estes não descrevem apenas fatos, mas obrigações jurídicas (relações de imputação), que não podem ser demonstradas por uma definição sensível (obtida pelos sentidos).


5. DEFINIÇÕES OSTENSIVAS E A ONTOLOGIA DO DIREITO

Por essas razões, a demonstração ostensiva não é um recurso comumente utilizado na aplicação  do direito. No direito enquanto discurso científico sob a perspectiva fenomenológica (ontológica), entretanto, sua utilização é necessária.

Ou seja, para uma perspectiva filosófica que veja o direito como algo no mundo fenomênico (ao contrário de outras, como o constructivismo lógico-semântico) é necessário, no discurso científico, relacionar o fenômeno jurídico com a experiência sensível. Para uma perspectiva como essa, a possibilidade de demonstração ostensiva seria condição de possibilidade do conhecimento jurídico.


6. DEFINIÇÃO OSTENSIVA E EQUIVALÊNCIA COM OBJETO

Uma perspectiva fenomenológica sobre o fenômeno jurídico permite sustentar a tese da equivalência entre a expressão denotativa e o próprio objeto. A adoção dessa postura teórica pressupõe uma visão ontológica sobre a constituição do mundo  (visto  como conjunto de elementos individuais).

Ocorre que a definição de fato ostensiva apenas pode ser concebida para objetos da realidade empírica. Para outros tipos de objeto, uma definição ostensiva só pode ser aceita enquanto metáfora. No caso do direito, lidamos com predicados universais, que não podem ser individualizados no mesmo sentido em que individualizamos um objeto da realidade empírica.


7. DEFINIÇÃO OSTENSIVA DE FATOS

O objeto do direito são fatos e não coisas. As definições ostensivas de fatos são altamente imprecisas, isto porque sempre serão descrições de acordo com um ponto de vista da realidade. Um recorte e não a realidade em si. Portanto, a intuição sensível sobre fatos ou não é possível ou é possível, mas depende de uma ação não passiva do sujeito cognoscente.


8. DEFINIÇÃO OSTENSIVA E NOMES UNIVERSAIS

Toda definição ostensiva traduzida em linguagem implicará a utilização de nomes universais (“azul” definida como “aquela cor que indico”). Esse recurso a enunciados de nível lógico superior (mais abstratos) ocorre sucessivamente e recairá numa relação cuja verdade se justifica apenas por convenção. Por isso, sustentar a possibilidade de conhecer a coisa em si é dissimular uma definição convencional de fundo. Assim, toda definição ostensiva é, no fundo, uma definição puramente “verbal” (convencional).


9. IMPOSSIBILIDADE DE DELIMITAÇÃO DE SENTIDO ÚNICO PARA OS ENUNCIADOS JURÍDICOS

Se não se pode afirmar a existência de um fenômeno jurídico ontologicamente representado, não é possível alcançar uma definição conceitual única do direito, ou seja, a identificação de critérios idênticos ou equivalentes para a atribuição da qualificação de “jurídico” a uma classe de coisas ou fatos.

Isto é consequência da utilização da linguagem natural pelo direito. A superação da impossibilidade de delimitação de sentido único dependeria da construção de uma linguagem artificial ou uma reconstrução do recorte da linguagem natural utilizado pelo direito.


10. TRANSFORMAÇÕES NA LINGUAGEM JURÍDICA E AUSÊNCIA DE EQUIVALÊNCIA

Diferente do que ocorre em transformações em linguagem lógica, transformações em linguagem jurídica modificam o sentido da oração primitiva. Por  exemplo, no giro modal que transforma uma afirmação simples numa proposição proibitiva há alterações secundárias no enunciado, como a conversão do tempo verbal (“Fulano fuma na praça” para “É proibido que Fulano fume na praça”).


11.  MODAIS DE ENUNCIADOS E SUA JURIDICIDADE

Determinados modais lógicos indicam – sob o ponto de vista sintático – que determinado enunciado pode ser tido como jurídico. Contudo, não parece ser possível, sem que sejamos arbitrários, estabelecer uma lista taxativa desses modais juridicizantes. Seria possível uma enumeração aberta de regras de formação de enunciados jurídicos. Assim seria possível caracterizar os elementos da classe dos enunciados jurídicos.

Uma definição ontológica do tipo “O Direito é...” seria uma restrição excessiva das regras de formação da linguagem jurídica. Por isso, toda definição ontológica é arbitrária; são especulações facilmente descartadas.


12. TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO

Entender um enunciado é  dispor de uma tradução aceitável do mesmo. Ou seja, transformar o enunciado de forma a alcançar uma configuração “equivalente”, mas de compreensão mais simples. Sem a tradução o sentido do texto original permaneceria oculto ou dissimulado.

Diz-se tradução no sentido de que se trata de uma transposição de uma sublinguagem (menos conhecida do interlocutor, como jargões profissionais, por exemplo) para outra sublinguagem (mais conhecida do interlocutor, normalmente a linguagem natural), ainda que dentro de um mesmo idioma.

Aqui surgem dois problemas. Não é garantido que a sublinguagem mais simples disponha de expressão apta para descrever a expressão não compreendida, o que dependerá da riqueza terminológica e sintática dessa sublinguagem mais simples. Se  não há expressões que permitam um equivalente adequado, a tradução estará condenada a uma aproximação parcial. Isso não é incomum porque toda linguagem (e sublinguagem) é um recorte da realidade e que corresponde às necessidades de sua utilização. Por essa e por outras questões as possibilidades de tradução (e, portanto, de interpretação) de uma expressão admite uma gradação.

Assim, a produção de sentido se dá por uma relação de coordenação, em determinados contextos de uso, entre duas linguagens (ou sublinguagens) e seus correspondentes signos.


13. QUANDO DUAS EXPRESSÕES SÃO SINÔNIMAS?

Entendida interpretação como tradução, no sentido exposto, é possível afirmar que o sentido de um enunciado é a classe de seus enunciados sinônimos (equivalentes).

Ocorre que o conceito de sinonímia é bastante obscuro. Afinal, quando é possível identificar que duas expressões têm a mesma significação ou significações muito parecidas? Vernengo foge da solução ontológica, que responderia a esta questão afirmando que duas expressões são sinônimas se se referem a um mesmo objeto. Tampouco é  aceita a ideia de que expressões com igual valor lógico (substituíveis indiferentemente num enunciado) sejam sinônimas, porque é possível que duas palavras possam ser substituídas indiferentemente  num contexto mas que se refiram a objetos distintos. O autor rejeita também uma  definição de sinonímia sob a perspectiva psicológica, como a evocação – a partir de expressões distintas – de representações semelhantes na mente do interlocutor.

A sinonímia apenas seria possível, num sentido estrito, para expressões tautológicas, inteiramente objetivas. Essa ideia, entretanto, constitui um ideal racional dificilmente verificado na realidade empírica do direito, uma vez que as expressões usualmente utilizadas na vida cotidiana (portanto, a linguagem natural) são, de uma forma geral, vagas e imprecisas.

Não há solução pacífica para a questão que indaga: quando dois são sinônimos? A obscuridade é ainda maior se nos questionamos quando dois enunciados complexos são sinônimos. Para o autor, a formulação de uma regra abstrata para a solução dessas questões é tarefa utópica.


14. CONCLUSÃO

O questionamento que motiva o autor é aparentemente simples: como se dá a interpretação literal de um texto normativo? Como as perguntas feitas pelas crianças (cuja mente encontra-se em pleno estágio de cogitação filosófica), a questão surpreende porque, para o aplicador do direito sua formulação não seria nem mesmo necessária, já que de resposta autoevidente.

Vernengo demonstra que, ao contrário, a questão é extremamente complexa e pode ser respondida por duas perspectivas bastante distintas.

A perspectiva da ontologia efetua a interpretação literal pela definição ostensiva, identificando as palavras às coisas do mundo empírico que elas designam (“apontando” as coisas) através de definições denotativas.

Vernengo rejeita essa solução. Para ele, nem todas as palavras designam coisas. Especialmente no direito, é muito comum a utilização de palavras parra designar relações complexas que não podem ser verificadas de forma sensível. Além disso, o processo de identificação de sentido de um enunciado normativo recairá em termos que apenas podem ser definidos de forma convencional.

A outra perspectiva de solução apresentada, está a do chamado “giro linguístico”, que indica que a interpretação literal se dá pela tradução. Tradução seria a transferência do enunciado entre camadas de sublinguagem de forma que seu sentido resulte cada vez mais facilmente apreensível. Ou seja, transformação de linguagem mais complexa  (técnica/jargão) em linguagem natural.

Acontece que, ao contrário do que o senso comum parece indicar, entendida sob essa perspectiva, a interpretação literal encontra limites de precisão mais estreitos. Isso porque o enunciado fica submetido ao nível de imprecisão da linguagem natural. Nesse sentido, não existe mecanismo de validação de equivalência entre enunciados e, por isso, um sentido autêntico – hipoteticamente existente – não pode ser confirmado intersubjetivamente. Para isso seria necessária a criação de uma linguagem técnica autônoma para o direito. 

Sobre o autor
Guillermo Glassman

Doutor e Especialista em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GLASSMAN, Guillermo. Roberto J. Vernengo e a interpretação literal da lei. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5220, 16 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60591. Acesso em: 22 nov. 2024.

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