1. INTRODUÇÃO.
O legislador complementar, visando dar maior competitividade aos produtos brasileiros destinados ao mercado internacional e atendendo aos objetivos da política governamental de incentivo às exportações, através da Lei Complementar n.º 87, de 13 de setembro de 1996, artigo 3º, inciso II, concedeu imunidade tributária às empresas que realizam as operações de transporte desses produtos do recolhimento do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS:
Art. 3º. O imposto não incide sobre:
[...]
II – operações e prestações que destinem ao exterior mercadorias, inclusive produtos primários e produtos industrializados semi-elaborados, ou serviços;
[...].
Com o advento dessa Lei Complementar, ampliou-se o alcance dos privilégios tributários concedidos pela Constituição Federal (imunidades) às exportações de produtos industrializados (CF, art. 155, §2º, inciso XII, alínea ‘e’ (2)), excluindo da incidência do ICMS todas as operações e prestações que destinem ao exterior produtos primários e semi-elaborados, como o transporte.
Pretendeu a LC n.º 87/96, também conhecida como Lei Kandir, tornar mais competitivo o produto nacional no concorridíssimo mercado internacional, de modo a incentivar a indústria nacional e, por conseguinte favorecer o ingresso de divisas no país e gerar crescimento econômico.
Assim, as empresas que realizam transportes de mercadorias destinadas ao mercado externo estão amparadas pelo artigo 3º, inciso II da LC n.º 86/97 por estar consubstanciada a hipótese da imunidade ali regrada, fazendo jus, destarte, ao não recolhimento do ICMS quando da prestação desses tipos de serviços.
Todavia, os fiscos estaduais vêm cobrando o ICMS sobre esses serviços de transporte, vale dizer, as empresas que realizam transportes de mercadorias destinadas ao exterior vêm sendo obrigadas a recolher o ICMS sobre a prestação desses serviços, mesmo tendo a LC n.º 87/96 expressamente previsto a não incidência desse tributo sobre essas operações.
Com essa tributação indevida, essas empresas vêm sofrendo graves prejuízos em sua ordem econômica e financeira, o que, reflexamente, acaba por encarecer os produtos de seus tomadores de serviços, em detrimento da indústria nacional e desenvolvimento do país.
2. O IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS – ICMS, A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA E A LEI COMPLEMENTAR N.º 87/96.
Os elementos delineadores do fato gerador do ICMS encontram-se insculpidos na Constituição Federal de 1988, que assim determina:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
[...]
II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
[...].
Como pode ser facilmente percebido ao se analisar o aspecto material do fato do gerador do ICMS, este imposto incide sobre a realização de operações relativas à circulação de mercadorias e sobre as prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, ainda que as prestações se iniciem no exterior.
Em seguida, o artigo 155, §2º, inciso X, da Carta Maior traz as hipóteses onde o ICMS não incidirá, vale dizer, elenca as hipóteses de imunidade tributária com relação a esta espécie de tributo:
Art. 155.
[...]
§2º. O imposto instituído no inciso II atenderá ao seguinte:
[...]
X – não incidirá:
a) sobre operações que destinem ao exterior produtos industrializados, excluídos os semi-elaborados definidos em lei complementar;
b) sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica;
c) sobre o ouro, nas hipóteses definidas no art. 153, §5º.
A imunidade tributária é o obstáculo criado pela norma constitucional que limita a competência do legislador. As situações nela descrita ficam fora do alcance da regra jurídica da tributação. Ficam excluídas do âmbito de incidência do imposto.
Difere da isenção tributária, que é a exceção feita pela norma infraconstitucional à regra jurídica de tributação.
Em se tratando de ICMS, tem-se de considerar que a Constituição Federal atribuiu ao legislador complementar competência para "excluir da incidência do imposto, nas exportações para o exterior, serviços e outros produtos além dos mencionados" no dispositivo que estabelece a imunidade nas exportações – CF, artigo 155, §2º, inciso XII, alínea ‘e’.
Assim, quando a LC n.º 87/96 estabelece que o imposto não incide sobre operações e prestações que destinem ao exterior mercadorias, inclusive produtos primários e produtos industrializados semi-elaborados, ou serviços, é razoável entender-se que o legislador complementar ficou autorizado a ampliar a imunidade tributária constante na Carta Maior, relativamente ao ICMS.
Desta feita, conclui-se que as normas da Lei Complementar n.º 87/96, excludente do ICMS nas exportações, instituíram imunidade tributária, ainda que a exclusão desse tributo não tenha sido decorrente, diretamente, de norma da Constituição Federal.
A essa espécie de imunidade tributária a doutrina também a denomina de isenção tributária heterônoma. Sobre o assunto, o Hugo de Brito Machado (3) leciona:
Seja como for, tem-se de concluir que a ‘não incidência’ criada pelo art. 3º, II, da Lei Complementar n.º 87/96 é de nível hierárquico superior ao em que atua a lei tributária estadual. Dúvida não pode haver, portanto, que a Lei Complementar n.º 87/96, em seu art. 3º, II, impediu os Estados de tributarem operações e prestações que destinem ao exterior produtos primários. Estabeleceu uma imunidade por extensão constitucionalmente autorizada, ou uma isenção heterônoma, complementando as disposições da Carta Magna, conforme preconiza o seu art. 155, §2º, XII, ‘e’.
3. A NÃO-INCIDÊNCIA DO ICMS SOBRE OS SERVIÇOS DE TRANSPORTE DE MERCADORIAS DESTINADAS AO EXTERIOR. A EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 42/03.
A LC n.º 87/96 traz, em seu artigo 3º, as hipóteses de não incidência do ICMS, sendo que o seu inciso II assim dispõe:
Art. 3º. O imposto não incide sobre:
[...]
II – operações e prestações que destinem ao exterior mercadorias, inclusive produtos primários e produtos industrializados semi-elaborados, ou serviços;
[...].
Como se pode verificar, a "não incidência" criada pelo artigo 3º, inciso II, da LC 87/96, de indiscutível nível hierárquico superior ao em que atua qualquer ato normativo estadual, impediu os Estados de tributarem as operações, prestações e serviços que destinem ao exterior mercadorias, inclusive produtos primários e produtos industrializados semi-elaborados.
Diante desse contexto, os fiscos estaduais, ao cobrarem o ICMS sobre esses serviços de transporte, agem em manifesta ilegalidade, vez que as empresas que realizam tal prestação gozam do benefício da imunidade tributária, prevista constitucionalmente e ampliada por lei complementar (isenção heterônoma).
A fim de justificar a tributação dos serviços de transporte de mercadorias destinadas ao exterior, o fisco de alguns Estados têm argumentado que a tributação do ICMS nesses casos incide sobre a prestação do serviço de transporte em si, que, embora atinente a bens destinados ao exterior, não termina em território estrangeiro.
Tal tese tem por fundamento interpretação adotada pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de Recurso Extraordinário, cuja ementa foi publicada em agosto de 1999:
Tributário. Serviço utilizado no transpote interestadual ou intermunicipal de produtos industrializados destinados ao exterior. Pretendida não-incidência do ICMS. Art. 155, §2º, X, a, da Constituição Federal.
Benefício restrito às operações de exportação de produtos industrializados, não abrangendo o serviço utilizado no transporte interestadual ou intermunicipal dos referidos bens.
Recurso não conhecido (4).
Ocorre que apesar de ser recente a publicação do julgado, a decisão do mesmo foi proferida pelo STF no ano de 1995. Portanto, o fato apreciado pela Suprema Corte é anterior à Lei Complementar n.º 87/96, não devendo ser tal jurisprudência utilizada como justificativa para a indevida cobrança do tributo.
Não se olvide que o fim maior desse benefício tributário é tornar o produto brasileiro mais competitivo no mercado internacional. Ao tributar as etapas do processo produtivo – e o transporte das mercadorias sem dúvida é uma delas – a norma tributária que concede a imunidade torna-se ineficaz uma vez que perderá seu principal escopo.
Portanto, no dizer de Hugo de Brito Machado (5):
Mesmo na hipótese de saídas de mercadorias realizadas com o fim específico de exportação, e destinada a empresa comercial exportadora, armazém alfandegado ou entreposto aduaneiro, pode ser considerada válida a norma isentiva, porque a razão da isenção é a mesma, vale dizer, estimular as exportações.
Na interpretação da norma de imunidade ou de isenção, como na interpretação das normas jurídicas em geral, devem ser considerados todos os elementos que nos fornece a hermenêutica, entre os quais destacamos os elementos sistemático e teleológico. A consideração do elemento teleológico na interpretação das normas de exoneração tributária, aliás, conta com decisivo apoio da jurisprudência, que tem preconizado o atendimento da finalidade das normas isentivas ou imunizantes, asseverando, por exemplo, que:
‘a imunidade do açúcar destinado à exportação, relativamente ao ICM, com base no art. 23, §7º, da CF 1967/69, não alcança apenas o ato final, mas todo o processo de elaboração do produto, não podendo o Estado tributá-lo no ato da remessa para o Exterior, a pretexto de que está tributando apenas a venda da matéria prima (6)’.
Ademais, a outra tese levantada pelo fisco, de que a imunidade trazida pelo artigo 3º, inciso II, alberga apenas as operações de transporte que se destinam diretamente ao exterior, também não deve lograr êxito.
Ora, a norma em questão não teria sentido se excluísse da tributação do ICMS somente aquela operação que destina diretamente ao exterior o produto nacional. Deve-se, pois, afastar da incidência do imposto todas as operações que integram o processo de exportação. Deve-se considerar o serviço de transporte dessas mercadorias como um todo, destinado a um único fim, qual seja, a sua exportação.
Roque Antonio Carraza (7), bem explica essa situação:
Também não incide ICMS quando o serviço de transporte internacional é efetuado por uma ou mais empresas. Explicamo-nos melhor.
Não raro, a empresa contratada realiza o serviço de transporte internacional por etapas. Do local de origem da mercadoria até a divisa com o país vizinho o transporte é feito com o mesmo veículo. Na fronteira a mercadoria é trasladada para um veículo apropriado e levada até o local de destino, no exterior.
[...]
Mesmo assim, a nosso ver, o ICMS não é devido. Por quê? Simplesmente porque há, na espécie, um único serviço de transporte. Apenas sua execução se faz em etapas. Portanto, mesmo quando a mercadoria, para alcançar seu destino final no exterior, for transbordada, ainda que com o concurso de outra empresa, não há, na espécie, incidência de ICMS.
Aliás, a própria LC n. º 87/96 dispõe que a não incidência do ICMS alberga todas as operações de serviço de transporte de mercadorias destinadas ao exterior, conforme artigo 3º, parágrafo único, incisos I e II, verbis:
Art. 3º. [...]
Parágrafo único: Equipara-se às operações de que trata o inciso II a saída de mercadoria realizada com o fim específico de exportação para o exterior, destinada a:
I – empresa comercial exportadora, inclusive tradings, ou outro estabelecimento da mesma empresa;
II – armazém alfandegário ou interposto aduaneiro.
Por derradeiro, qualquer dúvida que por ventura ainda pudesse existir acerca da ilegalidade da cobrança do ICMS sobre as operações de transporte de mercadorias destinadas ao mercado internacional foi superada com o advento da Emenda Constitucional n.º 42/03.
Com efeito, referida Emenda Constitucional deu nova redação ao artigo 155, §2º, inciso X, alínea ‘a’, estabelecendo que o ICMS não incidirá sobre "operações que destinem mercadorias para o exterior, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores".
Com isso, o constituinte derivado, além de ampliar a amplitude da imunidade quanto às mercadorias – não mencionando somente os produtos industrializados – também fez referência expressa, agora a serviços (o que não ocorria na redação primitiva de tal dispositivo).
Nas lições de José Eduardo Soares de Mello (8):
Em razão da EC n.º 42/03 haver estabelecido que o ICMS não incidirá sobre ‘serviços prestados a destinatários no exterior’ (nova redação ao art. 155, §2º, X, a), pode-se entender que fica prejudicado o questionamento da incidência do ICMS sobre a prestação de serviços de transporte internacional, uma vez que o tomador de serviços, localiza-se no exterior.
4. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Finalmente, a matéria tratada no presente artigo já resta pacificada no Superior Tribunal de Justiça, conforme se pode verificar dos recentes julgados cuja ementa abaixo se transcreve:
TRIBUTÁRIO – ICMS – SERVIÇO DE TRANSPORTE DE MERCADORIA DESTINADA AO EXTERIOR – NÃO INCIDÊNCIA.
A Lei Complementar n.º 87/96 prevê a não-incidência do ICMS na prestação de serviços de transporte de mercadorias destinadas à exportação.
Reveste-se de ilegalidade as limitações impostas pela Portaria n.º 026/99 – SEFAZ – ao gozo deste benefício fiscal pelas empresas exportadoras, porquanto restringe direito resguardado por lei complementar, em flagrante ofensa ao princípio da hierarquia da leis.
Recurso improvido (9).
PROCESSUAL CIVIL – TRIBUTÁRIO – ICMS – PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE INTERESTADUAL – MERCADORIAS DESTINADAS AO EXTERIOR – LEI COMPLEMENTAR N.º 87/96 – MATÉRIA PACIFICADA – ARTIGO 557 DO CPC – APLICAÇÃO.
O direito vigente após a edição da Lei Complementar n.º 87/96, repele a distinção entre transporte interestadual e transporte internacional, referente à incidência do ICMS na prestação de serviço de transporte de mercadorias destinadas ao território estrangeiro.
O relator, com espeque no artigo 557 do CPC, pode negar seguimento a recurso manifestamente improcedente.
Agravo improvido (10).
5. CONCLUSÕES.
A LC n.º 87/96, em seu artigo 3º, inciso II, concedeu imunidade tributária (isenção heterônoma) às empresas que realizam operações de transporte de mercadorias destinadas ao exterior, ampliando o rol das imunidades trazidas pela Constituição Federal, em seu artigo 155, §2º, alíneas ‘a’ a ‘c’.
O objetivo da LC n.º 87/96 foi tornar mais competitivo o produto nacional frente ao mercado internacional, incentivando a indústria nacional, favorecendo a entrada de divisas e promovendo o desenvolvimento econômico do país.
Ao exigirem o ICMS sobre essas operações, os fiscos estaduais têm agido em manifesta ilegalidade, vez que as empresas que praticam tais operações gozam do benefício fiscal em debate.
Outrossim, a EC n.º 42/03 deu nova redação ao artigo 155, §2º, inciso X, alínea ‘a’, fazendo expressa menção à imunidade tributária dos serviços prestados à destinatários do exterior, espancando de vez qualquer dúvida que ainda pudesse existir acerca da ilegalidade da cobrança do ICMS nos serviços de transporte de mercadorias destinadas ao exterior.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
CARRAZA, Roque Antonio. ICMS. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
MACHADO, Hugo de Brito. ICMS. Produtos destinados à exportação. Serviço de transporte. Não incidência. Inteligência do art. 3º, II, da Lc 87/96. In Revista Dialética de Direito Tributário n.º 50.
______. Aspectos Fundamentais do ICMS. São Paulo: Dialética, 1997.
MELLO, José Eduardo Soares. ICMS. Teoria e Prática. 7. ed. São Paulo: Dialética, 2004.
NOTAS
1
Advogado inscrito na OAB/SC sob o n.º 18.539. Especializando em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Membro do Escritório Paulo Tatim & Advogados Associados S/S, em Florianópolis/SC. Texto originalmente elaborado sob a forma de petição inicial, referente aos autos n.º 023.03.366900-0, de Mandado de Segurança, em trâmite perante a Vara da Fazenda Pública de Florianópolis/SC, recentemente julgado procedente em primeira instância.2
"Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal: [...]. §2º. O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: [...] XII – cabe à lei complementar: [...]; ’e’ excluir da incidência do imposto, nas exportações para o exterior, serviços e outros produtos além dos mencionados no inciso X, ‘a’."3
ICMS. Produtos destinados à exportação. Serviço de transporte. Não incidência. Inteligência do art. 3º, II, da Lc 87/96. In Revista Dialética de Direito Tributário n.º 50, p. 78.4
STF – 1ª Turma – RE 196.527/MG – rel. Ministro Ilmar Galvão – DJU 13.08.1999.5
Aspectos Fundamentais do ICMS. Dialética: São Paulo, 1997, p. 206. Apud: op. cit., p. 83.6
TRF 2ª Região – 1ª Turma – MAS 90.02.21899-0/RJ, j. 1.12.917
ICMS. 4º ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 113.8
ICMS. Teoria e Prática. 7ª ed. São Paulo: Dialética, 2004, p. 346)9
STJ – 1ª Turma – REsp. n.º 418.957/MT – rel. Ministro Garcia Vieira – DJU 26.08.2002.10
STJ – 1ª Turma – AGA n.º 308.752/MG – rel. Ministro Garcia Vieira – DJU 30.10.2000, p. 133.