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Contingência como valor intrínseco da sociedade moderna e do Direito

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Agenda 23/09/2017 às 10:48

Este artigo aborda a contingência como um valor inerente à sociedade moderna e ao seu direito. Analisa como o direito moderno, fundamentado na ideia de razão como centro de certeza universal, procurou eliminar a ideia de contingência de sua essência.

1. Introdução

            Este texto surgiu inicialmente e de forma paradoxal não como necessidade de compreender a questão da certeza e da incerteza como um problema teórico do direito, mas da necessidade de tratar da problemática “risco” como algo bastante concreto no direito (especialmente do direito público). No entanto, a medida que respostas eram buscadas na literatura especializada do risco (este entendido como uma espécie peculiar de incerteza) tornou-se impossível não se imiscuir em ambos os problemas. Há um claro paralelo entre o problema da contingência das normas jurídicas e entre a problemática do risco na sociedade e no direito público e é inegável que compreender tanto uma quanto outra questão facilita a compreensão de cada uma delas e do todo em que ambas se encontram inseridas, ainda que se tratem de problemas diversos.

Neste texto não será enfrentada a questão do risco no sentido sociológico de Ulrich Beck e que dá nome a sua célebre teoria da sociedade de risco (Risikogesellschaft). O risco será examinado aqui como um problema da teoria do direito, mais relacionado, portanto, a ideia de segurança jurídica. Ele deverá ser entendido como contingência em uma aproximação imperfeita, porém efetiva para o desenvolvimento que aqui se pretende. Para tanto, o autor fundamenta-se sobretudo na obra de Guilherme Leite Gonçalves e de Niklas Luhmann que serão referenciais teóricos recorrentes. Adota-se aqui mais ou menos a mesma sequência de pontos temáticos propostas pelo primeiro em sua obra “Direito entre Certeza e Incerteza”.

2. Certeza e incerteza no direito

            O direito moderno retira da filosofia da história a ideia do dever ser, temporalizando-a no direito1. A intenção por trás desse empréstimo seria conferir ao dever ser jurídico “consistência material” que implicasse na sua “realidade” e na sua “existência”, além de dar dimensão temporal e normatividade ao direito2. À essa realidade construída deveria ser conferido um nome e o escolhido foi “certeza” que encerra a ideia de que o direito deve ser como diz ser3. O dever ser se refere ao futuro, porém não é possível prever o futuro, ou em uma linguagem sistêmica, observá-lo4, uma vez que este ainda não aconteceu. O futuro só pode ser observado enquanto futuro que ocorreu, mas aí já não é mais futuro.

Assim, na tentativa de solucionar este que talvez seja um de seus problemas mais complexos5, o direito moderno, não deve mais buscar a certeza jurídica no dever ser e sim na aceitação das inúmeras possibilidades de certezas. Mas isso significaria compreender as decisões jurídicas como decisões “arriscadas” ou de risco?6 Pode-se dizer que não em todos os casos, pois conquanto encerrem naturalmente essa incerteza intrínseca as decisões jurídicas podem ser reexaminadas e corrigidas. Por outro lado, é certo que alguns de seus efeitos não poderão ser corrigidos ou reparados.

Não obstante, é levando em consideração tal questionamento que a ideia de certeza e incerteza no direito serve em grande medida como excelente ponto de partida para refletir acerca não somente do princípio dogmático da certeza do direito (ou da segurança jurídica), mas discutir também acerca da problemática do risco a ela paralela. Sabe-se que a sociedade, assim como o direito moderno devem ser pensados a partir de noções como contingência, complexidade e abertura para o futuro7. O risco também é uma noção a ser considerada, por meio da qual é possível abandonar a certeza absoluta para que se chegue a compreensão de que permite uma combinação de incerteza e certeza, uma lição claramente obtida a partir da analogia com o problema da contingência das normas jurídicas8.

2.1. A contingência como elemento inerente à sociedade e

ao direito moderno

Se aceitarmos a definição luhmanniana que qualifica sistema como “complexidade organizada, pela qual a seleção de uma ordem opera” é fácil aferir que sendo a sociedade moderna um sistema social autopoiético que opera a partir da diferença sistema/ambiente (System/Umwelt) a principal característica desta é justamente a complexidade9, uma vez que nesta há sempre mais possibilidades do que se é possível processar (atualizar)10. Pode-se deduzir, também, a partir daí que a incerteza é uma das características mais marcantes da sociedade moderna. Afinal, visto que muitas possibilidades podem surgir, o sistema social deve necessariamente tomar decisões, cuja consequência é a seleção de contingência. No entanto, ainda conforme Luhmann, não se deve deixar de lembrar que “sociedade é aquele sistema às quais os outros sistemas sociais podem referir-se”11. Com isso ele quis dizer que não obstante a contingência ser esse valor intrínseco da sociedade, ela é o sistema que garante um ambiente de menor complexidade para os seus subsistemas sociais12. Luhmann chega mesmo a falar que a sociedade permite “um ambiente por assim dizer domesticado” e portanto mais seguro13.

Essa realidade da sociedade moderna tem naturalmente reflexos sobre o mundo jurídico que também se desenvolve na modernidade sob o signo da diferenciação e da incerteza contrariando o sistema do saber até então vigente que procurava lidar com a complexidade por meio de tentativas de simplificação da realidade social14. No âmbito jurídico e filosófico predominavam então teorias de base racionalista que procuravam entender a realidade jurídica com base no conceito de certeza que nada mais era que uma negação da incapacidade humana de oferecer respostas a todos os problemas decorrentes das transformações sociais e do consequente aumento da complexidade. Era a discussão acerca da certitudo jurisprudentiae, a qual via certitudo como forma e como meio de superação de incertezas15.

O racionalismo, como sistema filosófico da modernidade, ao invés de vislumbrar as transformações sociais como consequências inevitáveis de um novo momento do desenvolvimento humano, do qual as incertezas eram parte integrante, procurou manter a crença em princípios considerados essenciais para o homem, tais como, a segurança, a previsibilidade e a orientação16. A consequência dessa postura irredutível frente a inexorabilidade dos fatos foi a procrastinação do desenvolvimento de meios aptos a lidarem com as inúmeras alternativas e possibilidades surgidas com a modernidade17. A conduta adotada foi justamente em sentido contrário, isto é, procurou-se proceder a um controle das possibilidades e alternativas sociais a partir de fórmulas de base metafísica que procuravam compreender a sociedade a partir de uma unidade, isto é, de um centro de certezas que controla a contingência18.

O racionalismo tinha, portanto, como ponto de partida uma premissa falsa, isto é, ele localizava a origem da incerteza da sociedade pré-moderna no centro transcendental de certeza representado pela figura de um Deus19. A consequência era a impossibilidade da geração de certeza a partir dessa figura imaterial e duvidosa, visto que ela seria responsável por repassar incerteza a todos os demais âmbitos sociais20. Com isso, sua tarefa principal foi deslocar o centro de certeza social de uma figura transcendente para a razão. No âmbito do direito essa transformação se deu com a passagem do jusnaturalismo divino para o jusracionalismo21. Assim, se por um lado, o racionalismo europeu inovou ao pôr fim a era da metafísica medieval como centro de certeza, por outro lado, ao conferir tal papel fundamental a razão de forma pretensamente universal, ele também revelou-se bastante conservador22. Afinal de contas, ao fazê-lo ele restringia a semântica da época, provocando um descompasso entre esta e as estruturas sociais23 em constante transformação.

2.2. Sobre a distinção entre sujeito e objeto

Ao substituir a metafísica medieval pelo primado da razão, o racionalismo fez muito mais do que simplesmente eliminar crendices e superstições, ele promoveu a distinção entre sujeito e objeto ao papel principal para a compreensão da razão moderna. A razão moderna era produto de um sujeito que conhece e de um objeto a ser conhecido por esse sujeito. Somente o primeiro poderia capturar a verdade oculta no segundo. No entanto, como já observamos, essa racionalidade moderna limitava o verdadeiro conhecimento e entendimento das transformações estruturais da sociedade que eram limitadas por uma semântica empobrecida que buscava a certeza como fundamento. A mathesis universalis representava um único método para o conhecimento humano, o que em outras palavras, era uma forma de redução da complexidade e da contingência. No entanto, o seu diferencial metodológico era também o seu ponto fraco. Assim, não tardariam a surgir questionamentos que colocavam em dúvida as premissas dessa forma de conhecimento que se direcionariam justamente a diferença básica proposta pelo racionalismo entre sujeito que conhece e objeto a ser conhecido. A crítica mais acerba contra a distinção entre sujeito e objeto defendida pelo racionalismo europeu vem do denominado construtivismo radical.

O construtivismo radical com sua base nas ciências naturais, ao contrário do racionalismo, defende a inevitabilidade da contingência, que seria na sua percepção a característica principal do conhecimento moderno24. Ainda que o ponto de partida do construtivismo radical seja o mesmo do racionalismo, ou seja, a distinção entre um sujeito que conhece e um objeto a ser conhecido, o primeiro percebe essa relação de uma forma bem diferente do segundo. A diferença está no fato de que o construtivismo radical coloca em dúvida a possibilidade de se conhecer a realidade de fato por meio da observação. Em outras palavras, o construtivismo radical entende que “o processo de cognição não conhece a realidade existente, mas a inventa”25.

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Essa invenção da realidade se dá pela impossibilidade do sujeito cognoscente de conhecer a realidade ou observá-la sem que durante o processo de observação ele deixe de influenciar o objeto observado. Como bem lembra Guilherme Leite Gonçalves, tal idéia encontra sua síntese no princípio da incerteza elaborado pelo físico Heisenberg que constatou a partir da sua observação dos elétrons que para tanto era necessário iluminá-los e com isso eles se desviavam de seu curso normal, ocorrendo ademais alteração da velocidade e da posição dos mesmos26. Assim, Heisenberg contesta o fundamento da certeza fundado na relação dicotômica entre sujeito e objeto, visto que não seria possível conhecer a realidade sem proceder a uma alteração da mesma. Isto é, a realidade nada mais seria que uma construção do observador feita a partir de suas próprias experiências27. Dessa forma, não há uma distinção entre sujeito e objeto do conhecimento, mas sim uma relação intrínseca entre ambos, visto não haver um observador externo28.

A consequência da crítica do construtivismo radical para a teoria do conhecimento é enorme. A distinção entre sujeito e objeto é substituída por outra distinção, isto é, a distinção entre operação e observação. Nesta não há um observador universal e sim uma multiplicidade de observadores que guardam cada um uma subjetividade própria na observação29. Percebe-se que com essa mudança de paradigma do conhecimento confere-se ênfase à idéia de pluralidade. A partir desses múltiplos observadores com visões subjetivas do objeto observado não se há mais de falar em uma única verdade, mas em uma pluralidade de verdades30. Esse é o golpe final contra a idéia da razão como fundamento universal de certeza do racionalismo moderno.

2.3. Para além do construtivismo radical: A teoria sistêmica luhmanniana

Foi Niklas Luhmann o responsável por transpor para o âmbito das ciências sociais as idéias do construtivismo radical que o ajudariam a compor não só sua teoria sistêmica como também a sua teoria da sociedade (Gesellschaft als eines Sonderfalls sozialer Systeme). Na sua visão o sistema social não se caracteriza por um ser determinado ou por uma dada moral, mas exclusivamente pela operação pela qual a sociedade produz e se reproduz, isto é, o sistema social se caracteriza pela comunicação31. Assim, dando um passo a frente de Talcot Parsons que via na ação essa unidade básica da sociedade ele inova ao trazer elementos da biologia para o universo das ciências sociais sem contanto resumir-se a uma transferência pura e simples das ideias biológicas o que importaria em uma espécie de “darwinismo social”.

2.3.1. A comunicação como a menor unidade operativa de um sistema social

A comunicação surge na teoria sistêmica luhmanniana como a unidade operativa do sistema social, responsável por dar respostas ao problema da construção da ordem social e do convívio entre sistemas vivos e consciência32. A comunicação é para Luhmann a menor unidade operativa do sistema social. Ou seja, “os sistemas só existem na medida em que eles operam; os sistemas sociais operam, quando se comunicam”33. A comunicação ocorre assim no âmbito da diferença sistema/ambiente, o que implica dizer em outras palavras que a comunicação nada mais é uma operação que possibilita aos sistemas sociais se reproduzirem autopoeiticamente e manterem-se diferenciados do ambiente34. Ou, conforme Luhmann, ela é uma forma específica de observar o mundo a luz de uma diferença específica entre informação e transmissão35. A escolha da comunicação como unidade operativa dos sistemas sociais não se dá, portanto, ao acaso. Ela é uma consequência da superação de conceitos antropocêntricos e sociocêntricos de sociedade, perceptível no desatrelamento entre sociedade, cultura e Estado, permitindo compreender a sociedade como comunicação/não-comunicação.

2.3.2. A comunicação como um processo de seleção entre Alter e Ego

A comunicação é composta por três elementos: informação, comunicação e entendimento (Information, Mitteilung, Verstehen)36 e se dá pelo menos entre dois indivíduos, isto é, entre Alter e Ego. O primeiro, Alter, é denominado também simultaneamente de “Outro” ou “Remetente" e o segundo, Ego, é designado “destinatário”, “endereçado” ou “Eu”37. Alter e Ego se referem tanto aos sistemas psíquicos como aos sistemas sociais. É entre os dois que se observa a característica principal do ato de comunicar, isto é, a seletividade. Com isso se quer dizer que a comunicação é um processo de seleção que se dá em três momentos, daí ser também possível aferir o caráter contingente dessa. Nesse processo, a seleção de informação e a transmissão ou comunicação ficam a cargo do remetente, enquanto a seleção cabe ao destinatário.

Conforme já mencionado a comunicação entre Alter e Ego não é desprovida de obstáculos ou contingências que podem interferir ou interromper a comunicação. Daí falar-se na dupla contingência no processo comunicativo. Ou seja, ainda que Ego não tenha certeza se Alter compreendeu de fato o que lhe foi comunicado e Alter, da mesma forma, também não tenha certeza se o que ele compreendeu é exatamente o que Ego pretendia comunicar-lhe a comunicação ocorre de forma independente, revelando não só o seu caráter autopoiético como também a face de Alter Ego dos agentes de comunicação38.

Outro ponto fundamental na transposição realizada por Luhmann é a definição da diferença a partir do conceito de forma de Spencer-Brown por meio do qual se chega a uma diferença de dois lados39. Ao adotar a comunicação como referência ele a separa de seu ambiente, isto é de tudo aquilo que não é comunicação (consciência, vida orgânica, manifestações naturais etc.)40. Com isso ele chega a diferença sistema/ambiente que possibilita chegar a outra importante conclusão, isto é, a de que o sistema é simultaneamente fechado e aberto. Essa conclusão é importante, quando se pensa no sistema jurídico como uma espécie de sistema social. O sistema jurídico existe pela sua capacidade de distinção do ambiente, ou seja, ele existe na medida em que é distinto do ambiente. Por ser fechado operativamente e aberto cognitivamente, ele pode sentir as demandas políticas e econômicas, sem que essas possam controlar suas operações41.

Naturalmente, a realidade representada pela sociedade mundial é muito mais complexa do que se desejaria e o fortalecimento do código econômico ter/não ter ou de seu desenvolvimento hipertrófico faz com que o direito enfrente dificuldades no momento de impor normas jurídicas às relações e organizações transnacionais. Tal dificuldade importa em limites à realização do Estado democrático de direito. Como esclarece Neves, não se trata „simplesmente de autopoiese da economia em face da política e do direito“ e sim de um desenvolvimento hipertrófico do código econômico em relação aos códigos binários lícito/ilícito e poder/não poder42. Neves também chama atenção para as nefastas consequências da preponderância do código da economia no plano da sociedade mundial que variam desde a instrumentalização de mecanismos jurídicos e políticos pela economia como à criação de problemas ecológicos e criminalidade econômica internacional43. Ele se refere, portanto, aos novos riscos da sociedade mundial que se robustecem, ultrapassando as fronteiras dos Estados, em virtude da associação perniciosa com o código binário ter/não-ter, afirmando-se em face dos direitos coletivos e difusos dos indivíduos44.

3. A evolução social e do direito em Luhmann

3.1. O conceito de evolução

            Evolução tem muitos significados como reconhece Luhmann em Einführung in die Theorie der Gesellschaft. Ela pode significar tanto “desenvolvimento” como também a “representação de uma história ou de um processo”45. Ela pode ser evolução no sentido das teorias sociológicas da década de 50 e 60 que a qualificavam como “transformação social”, como também pode ser evolução no sentido da teoria de Darwin. Sobre as primeiras já se falou brevemente e sobre a segunda, pode-se dizer que esta não é o tema principal a ser aqui trabalhado, visto tratar-se de evolução biológica. Assim, percebe-se que a menos que se faça referência expressa sobre o tipo de teoria ao qual ela se refere não é possível trabalhar o conceito de forma satisfatória46.

            A evolução a qual Luhmann se refere é a dos sistemas sociais. Ela se dá por meio da transformação do improvável em provável ou por meio de uma normalização crescente das improbabilidades”47. Sendo importante compreender que improbabilidade é o grau de desvio de um ponto de partida que uma vez incorporado a estrutura do sistema caracteriza a evolução48. No direito ela também surge como um processo incontrolável e incerto que se configura mediante o aumento da complexidade (aquisição de contingência) que termina por ocasionar a estabilização do direito positivo ou direito da modernidade49. Daí ser possível afirmar que a contingência é valor intrínseco da sociedade moderna e do direito.

Para entender melhor o processo de evolução é interessante diferenciá-la inicialmente da idéia de progresso, visto que progresso implica em um fim a ser atingido. Em seguida, é interessante entender o funcionamento dos mecanismos condicionantes do processo evolutivo do direito (variação, seleção e estabilização), pois é por meio deles que é possível compreender como se dá a passagem de um modelo de certeza, típico das sociedades pré-modernas, para o modelo de incerteza social que é retrato da sociedade moderna e do seu direito.

3.2. Evolução, progresso e causalidade

Definido o que se deve entender por evolução no sentido proposto por Luhmann, deve-se desde logo rejeitar a questão sobre uma suposta “direção” do processo evolutivo50. Tal tendência foi bem marcada do século XVII ao XIX, porém é tida nos dias atuais como ultrapassada51. A rejeição dessa ideia revela claro o caráter crítico a ideia de um modelo progressivo de história52. Tal rejeição não se trata de uma crítica à teoria da evolução de Darwin, e sim de uma crítica a um “sentido histórico positivo da evolução” que seria desprovida de caráter valorativo (wertneutral)53. Apesar disso, ainda que não seja uma crítica serve também para recordar que a evolução em termos sistêmicos não deve ser compreendida de forma análoga a evolução em sentido biológico. A evolução em sentido biológico pressupõe “a supremacia de fatores ambientais na emergência do fenômeno evolutivo, enquanto a teoria sistêmica acentua que a evolução é resultante de transformações internas na correspondente unidade de reprodução”54. Com isso a teoria sistêmica afasta a ideia de um darwinismo social ao rechaçar conceitos clássicos da evolução biológica como sobrevivência do mais apto55.

Se tomarmos, por exemplo, o processo evolutivo do direito em Luhmann, percebemos que este está distante de enfatizar a ideia de progresso. Isso fica claro em face a redefinição do princípio da causalidade. Ou seja, a causalidade é construída pelo sistema que observa. Em outras palavras, dado o universo de possibilidades provenientes do ambiente, o sistema deve proceder a sua própria seleção para lidar com a complexidade crescente e isso é o que se denomina causalidade autoproduzida56. Essa forma de causalidade afasta, portanto, a ideia de progresso do direito, visto que ela afasta não somente qualquer pretensão de determinação de um evento do sistema pelo ambiente e das operações passadas por aquelas futuras57. Com isso quer se dizer que as estruturas dos sistemas (Erinnerungen e Erwartungen)58 é que são responsáveis pela sua própria evolução, não sendo possível derivar do sistema qualquer forma de certeza sobre o que deve acontecer59.

Assim, se a contingência é um elemento inerente ao direito positivo, pode-se compreendê-la como um fator motivacional da evolução do próprio direito. Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se mesmo dizer que a incerteza é parte inerente do direito na modernidade, visto que sempre haverá a possibilidade de se optar pela decisão menos acertada, ainda que haja a possibilidade de se voltar atrás em uma nova reflexão. Mais uma vez isso reforça o entendimento de que a evolução do direito não implica necessariamente em um progresso do direito.

3.3. Os mecanismos condicionantes da evolução

social e do direito

A teoria da evolução em uma perspectiva sistêmica luhmanniana trabalha com a diferença representada pelos mecanismos de evolução social variação/seleção/restabilização60. Essa diferença permite compreender o surgimento de formas e substâncias de forma acidental61, visto que por meio da observação desses três mecanismos é possível concluir que a evolução nos termos se dá de forma irracional, com ênfase sobretudo na ideia de acaso (Zufall)62. Isto é, nenhum sistema pode lidar com todas as causalidades que se lhe apresentam, sendo necessário, portanto, a redução da complexidade. Tal redução de complexidade ocorre por meio da seleção e da normalização de determinadas relações de causalidade, enquanto outras são simplesmente deixadas ao acaso63. Essa ênfase na ideia de acaso reforça também a questão de que o modelo sistêmico de evolução social e do direito não permite a determinação do futuro64.

O primeiro dos mecanismos evolutivos é a variação. Trata-se do mecanismo pelo qual fica assegurada a capacidade de reprodução desviante de elementos pelos próprios elementos do sistema. A variação, no entanto, não implica por si só em mudança, visto que se assim fora já se estaria diante da evolução propriamente dita65. A variação possibilita a atualização do sistema em face das novas possibilidades geradas pelo próprio sistema. No caso específico do direito a variação revela-se “como comunicação de expectativas normativas inesperadas”66. Isto é, o comportamento referido não está previsto nas estruturas normativas existentes e dessa forma acaba por “decepcionar a expectativa contra fática predominante”67.

A partir dessa “decepção”, o sistema irá proceder a uma rejeição seletiva do desvio que será tratado com indiferença ou por meio de repetição integrar esse desvio a sua ordem normativa, inovando-a68. A última possibilidade se referir a uma seleção referente a estrutura do sistema que se pode entender também como “comunicação de expectativas acumuladas”69. A sua principal função é a de transformar projeções em expectativas normativas e justamente por se referir a estruturas do sistema ela se concretiza mediante procedimentos decisórios70.  Com isso quer-se dizer que a seleção é responsável não só pelo tratamento do excesso de possibilidades como também pela incongruência dessas possibilidades71. No primeiro caso, o excesso refere-se a tudo aquilo que não esteja de acordo com as estruturas internas do direito, sob o risco de interferir no processo de diferenciação do direito, seja por meio da socialização do direito ou pela juridicialização da sociedade72. No segundo caso, a seleção atua no sentido de limitar a variabilidade de possibilidades através dos procedimentos. Isso ocorre uma vez que eles possibilitam a transformação de comunicação possivelmente jurídica em comunicação propriamente jurídica73. O interessante é que mesmo com tais procedimentos decisórios e com a estabilização da expectativa normativa selecionada, as outras possibilidades não perdem sua validade, podendo ser reconsideradas, caso haja questionamento acerca do acerto no momento da decisão. Daí falar-se que a estabilização gera contingência, isto é, incerteza.

O produto da seleção deve ser ao cabo estabilizado, de modo a gerar identidade. Com isso quer se dizer que feitas as escolhas, estas devem ser integradas ao sistema de forma a produzir diferença que deve ter a capacidade de perdurar74. Trata-se da reestabilização que no entanto não ocorre de forma obrigatória como consequência da seleção75. Como aponta Neves, a reestabilização só ocorre no caso do direito, quando a nova expectativa seja integrada ao modelo de estrutura da reprodução do direito76. Ou seja, concluída a fase na qual os procedimentos decisórios estabelecem as projeções a serem generalizadas como expectativas normativas a toda à sociedade, a partir do momento da generalização destas é que ocorre efetivamente o processo de reestabilização. Dessa forma, é possível dizer que a reestabilização possui dupla função, pois além de promover a eficácia da seleção, ela também é ponto de partida para o surgimento de novos eventos77.

3.3. Duas tendências na dinâmica evolutiva do direito

Ainda que não haja uma direção do processo evolutivo dos sistemas sociais e assim do próprio direito, pode-se identificar, conforme Neves, pelo menos duas tendências na dinâmica evolutiva do direito. Essas tendências são designadas pelo autor como exógenas e endógenas78. A evolução exógena ocorre a partir do aumento da complexidade do ambiente. Isto é, com as transformações políticas, econômicas, científicas etc., o sistema jurídico busca se ajustar a elas por meio de adaptação ou de uma reação. Tais transformações podem ser vistas „como estímulos ou irritações para o sistema jurídico que as processa de acordo com critérios internos de aprendizagem“79. Se a evolução endógena se dá por meio da adaptação do sistema as alterações de ordem ambiental, a evolução endógena se dá mediante a determinação dada pelo próprio sistema sobre o seu percurso evolutivo80.

3.4. Fases da evolução do direito

Quando se fala da evolução do direito e da sociedade, é possível dizer grosseiramente que cada sociedade tem o direito que merece. Quanto mais complexa a sociedade mais o direito deve adaptar-se a essa complexidade e a contingência para produzir respostas relevantes81, isto é, respostas aos problemas de relacionamento com o ambiente82. Como a sociedade partiu de um modelo segmentário83 até alcançar seu atual estágio, é possível naturalmente deduzir que o direito como uma estrutura dela integrante também se desenvolveu com a sociedade.

Em outras palavras, a evolução do direito da sociedade pode ser vista se cotejarmos as formações jurídicas que se deram na pré-modernidade e aquelas da modernidade propriamente dita. O direito positivo está inteiramente oposto aquele que se desenvolveu nas primeiras. Entre eles opõem-se as distinções “revelação/seleção”, “necessidade/complexidade” e por fim, como já observamos, aquele que opõe “certeza/incerteza”84. Interessante é, no entanto, observar as variações que marcam cada uma dessas etapas evolutivas levando em contanto o funcionamento dos denominados mecanismos evolutivos já observados.

3.4.1. Direito arcaico

Em um primeiro momento, tem-se o denominado direito arcaico que é marcado basicamente pela ausência de variação e pela certeza, esta reforçada pela organização familiar vigente a época que não se diferenciava da sociedade85. Aliás, como alerta Luhmann, “o ponto de partida” para compreender o direito arcaico jaz sobre o princípio do parentesco que regula a estruturação social86.

 O papel do parentesco na sociedade diferenciada de forma segmentaria é decisivo, pois ele funciona também como um meio de redução da complexidade e de inclusão do indivíduo em um esfera de certeza. Além disso, ele fornecerá os elementos necessários para o desenvolvimento do direito que terá as suas raízes nele firmemente fincadas. Ou seja, ainda que o grau de influência deste princípio seja variável na resolução de disputas jurídicas, “nenhuma competência de decisão” surge desligada deste princípio. A patria potestas talvez seja a sua representação máxima, a configuração de um poder “quase absoluto do paterfamilias sobre os que dele dependem”87. O respeito social era granjeado conforme a fortuna moral do grupo a que se pertencia. Com isso negava-se aos indivíduos a sua própria individualidade, visto que eles encontravam-se a mercê do poder centralizador do chefe do grupo.

Assim, nesse tipo de sociedade era impossível o desenvolvimento de outro direito que não aquele de base familiar, uma vez que outro direito seria o direito de outra família que provavelmente teria de ser imposto por meio da agressão88. Sobre a fundamentação deste, sabe-se que esta ainda não era religiosa, mas sim de caráter mágico e estava também em grande medida relacionada aos cultos domésticos e familiares. A fundamentação mágica como centro de certeza surge exatamente como meio de escapar ao desviante89.

Esse aspecto marcadamente familiar do direito arcaico é fundamental para entender a razão pela qual o direito não se institucionalizava de forma generalizada neste período. Isto é, como cada questão era resolvida conforme os sujeitos envolvidos não se produzia um direito objetivo, a ser aplicada a casos semelhantes em outras circunstâncias. É o que Guilherme Leite Gonçalves denomina “incapacidade de abstração das formas jurídicas arcaicas”90. Segundo Luhmann, o direito arcaico opera apenas no plano da variação, isto é, inexiste a diferença básica entre variação e seleção91. Isso implica dizer, em outras palavras, que as expectativas cognitivas e normativas não se apresentam diferenciadas umas das outras92.

Dessa forma, é possível perceber que nas sociedades segmentarias assim como no direito destas não há lugar para o questionamento. O direito é fundamento pela certeza da aplicação desses modos familiares de solução de conflitos.

3.4.2. O direito das culturas pré-modernas

É interessante perceber que a transição para uma nova fase de desenvolvimento social e do direito se dá com a “ampliação do socialmente possível”93. A resolução circunstancial de conflitos subjetivos de base familiar não é mais suficiente para tratar de questões decorrentes da necessidade de relacionar presentes e ausentes. O direito escrito irá se formar e com isso serão introduzidas no plano jurídico as regras de reconhecimento que trarão a semente do que ficará conhecido como validade jurídica94. Além disso o direito passa a ser alterável e não mais fixado de forma eterna por meio das denominadas regras de alteração95. Com a introdução das denominadas regras de julgamento o que fica claro é que no direito das culturas pré-modernas inicia-se o processo de surgimento das instituições.

Com o processo de institucionalização irão se formar gradualmente estratos sociais. As sociedades segmentarias irão dar lugar às sociedades estratificadas que terão sua máxima representação na Idade Média. Um consequência dessa estratificação para o direito é o surgimento das expectativas de expectativas96. A partir daí o direito passa ser imposto por uma camada superior as demais, justamente em razão dessa superioridade de posição social. Essa superioridade é base para a legitimidade das decisões políticas como para a fundamentação do direito. A estratificação também é base para a forma de lidar com a incerteza nesse período. Ou seja, a moral é canonizada para ser imposta de forma generalizada a todas as pessoas. Tal moral canonizada não comporta exceções e deve ser seguida sob a pena de quebra dos valores últimos da sociedade. Sua função é, portanto, conforme Guilherme Leite Gonçalves “coibir a insegurança gerada pela incerteza do resultado dos procedimentos”97 e ela o faz por meio de ditames de validade pretensamente universal.

Essa moral de validade universal se reflete no direito que ainda não aceita contingência como autovalor intrínseco de sua natureza. A certeza é não só buscada como construída com base nessa moral construída. Caracteriza o direito das culturas pré-modernas também a indiferenciação entre seleção e reestabilização.

3.4.3. Direito positivo ou moderno

A medida que a sociedade ganha em complexidade é necessário que o direito organize tal complexidade. O direito positivo moderno é assim o direito ideal para tal tarefa, visto ser posto e transformável por ele mesmo. É, portanto, direito aberto ao futuro e a contingência. Diferentemente das sociedades pré-modernas nas quais se deu a canonização da moral transformada em centro de certeza, na sociedade moderna não há um centro de certeza e dessa forma o direito positivo como o direito desta sociedade exerce a escolha de possibilidades, sem que as hipóteses momentaneamente descartadas sejam definitivamente eliminadas. Trata-se, assim, da não eliminação da divergência. Dessa forma a possibilidade que naquela oportunidade não foi escolhida permanece todavia juridicamente possível98. Afinal, o que se tem como direito hoje pode não ser mais considerado como tal amanhã99.

Por fim, sobre o funcionamento dos mecanismos de evolução do direito, é possível observar o seu funcionamento pleno na sociedade moderna se dá por meio de seleções de alternativas “que, ao serem estabilizadas, não excluem aquelas que foram rejeitadas”100. Ou seja, as alternativas não selecionadas são mantidas “como variação de seleções futuras ou como estímulo de novas críticas”101. Com isso fica evidente o caráter mais destacado do direito na modernidade que é justamente a abertura à contigência.

4. Conclusão

A ideia do sistema jurídico como centro de certeza se desenvolve a partir de uma série de conceitos dogmáticos dentre eles a visão do direito como um dever ser. Tais conceitos se apresentam questionáveis na modernidade, visto que a contingência é traço característico da sociedade regida pelo direito. A aceitação de diversas certezas provenientes de diversos sistemas sociais é inevitável e negá-las não seria uma forma adequada de tornar o direito mais seguro ou certo.

Sobre o autor
Antonio Silveira Marques

Doutor em Direito Público pela Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU), mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O texto surgiu a partir do estudo da problemática paralela do risco no direito público, objeto de estudo sobretudo do direito administrativo, ambiental e constitucional. Percebe-se um paralelo entre a ideia de contingência da sociologia e da teoria do direito com a problemática do risco concernente ao direito público.

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