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A legalidade do acordo de não persecução penal: uma opção legítima de política criminal

Vê-se, especialmente pela introdução do modelo de Justiça consensual, que a resposta para o crime tem sofrido o influxo de novas ideias, voltadas para uma solução cada vez menos retributiva (meramente punitiva) e mais construtiva (reparadora).

A internacionalização ou transnacionalidade do crime frutificou na identificação de dos vários modelos de resposta estatal, chamando a atenção:

a) Dissuasório clássico: inspirado pela ideia de retribuição, consiste na simples imposição de pena, medida suficiente para retribuir o mal causado pela prática criminosa e para evitar o cometimento de novos delitos;

b) Ressocializador: tem a finalidade de reintegrar o delinquente à sociedade (prevenção especial positiva);

c) Consensuado: tem o propósito de trazer à Justiça criminal modelos de acordo e conciliação que visem à reparação de danos e à satisfação das expectativas sociais por justiça. Pode ser dividido em (1) modelo pacificador ou restaurativo, voltado à solução do conflito entre o autor do crime e a vítima (reparação de danos) e (2) modelo de justiça negociada (plea bargaining), em que o agente, admitindo a culpa, negocia com o órgão acusador detalhes como a quantidade da pena, a forma de cumprimento, a perda de bens e também a reparação de danos.

Vê-se, especialmente pela introdução do modelo de Justiça consensual, que a resposta para o crime tem sofrido o influxo de novas ideias, voltadas para uma solução cada vez menos retributiva (meramente punitiva) e mais construtiva (reparadora).

Considerando os fins deste artigo, vamos aprofundar o instrumento do acordo na seara criminal, podendo ser compreendido, em apertada síntese, como o ajuste obrigacional celebrado entre o órgão de acusação e o indiciado/acusado (assistido por advogado), assumindo este sua culpa/responsabilidade, aceitando cumprir, desde logo, sanção penal reduzida e/ou minorada nos seus efeitos, benesse a ela concedida em troca de informações úteis ao esclarecimento do delito, renunciando ao processo criminal.

Sobretudo em países do Commom Law, o uso corriqueiro da justiça negociada e dos acordos penais demonstrou que este instituto é útil para determinados tipos de infrações e, principalmente, apto a evitar o colapso do sistema de Justiça, incapaz de conciliar as formalidades procedimentais e o tempo necessário para dar respostas tempestivas que aplacassem satisfatoriamente o clamor decorrente dos crimes. Schünemann, embora crítico do instituto, demonstra que não há como ignorar que o plea bargaining expandiu-se para quase a totalidade dos ordenamentos jurídicos ocidentais, seja na Europa, seja na América Latina, principalmente em razão da necessidade de abreviamento das respostas necessárias à escalada da criminalidade moderna[1]. A adoção de institutos semelhantes na Itália, Alemanha, Chile e Argentina reafirmam essa tendência mundial.

No Brasil, o instituto da transação penal da lei 9.099/95 é considerado a semente da justiça consensuada (da qual negociada aparece como a mais promissora espécie), principalmente porque nela – transação penal - a pretensão punitiva é inteiramente disposta pelo Ministério Público em troca do cumprimento de obrigações pelo autor dos fatos, notadamente pecuniárias. Talvez a mais significativa diferença desse instituto com o do plea bargaining, é que naquele não existe reconhecimento de culpa (plea do nolo contendere).

A novel resolução n.º 181/17 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) prevê uma espécie de acordo penal, denominado acordo de não persecução penal, cujos requisitos estão no artigo 18, valendo ser transcrito:

“Art. 18. Nos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal, desde que este confesse formal e detalhadamente a prática do delito e indique eventuais provas de seu cometimento, além de cumprir os seguintes requisitos, de forma cumulativa ou não:

I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima;

II – renunciar voluntariamente a bens e direitos, de modo a gerar resultados práticos equivalentes aos efeitos genéricos da condenação, nos termos e condições estabelecidos pelos arts. 91 e 92 do Código Penal;

III – comunicar ao Ministério Público eventual mudança de endereço, número de telefone ou e-mail;

IV – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público.

V – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito.

VI – cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada.

§ 1º Não se admitirá a proposta nos casos em que:

I – for cabível a transação penal, nos termos da lei;

II – o dano causado for superior a vinte salários-mínimos ou a parâmetro diverso definido pelo respectivo órgão de coordenação;

III – o investigado incorra em alguma das hipóteses previstas no art. 76, § 2º, da Lei nº 9.099/95;

IV – o aguardo para o cumprimento do acordo possa acarretar a prescrição da pretensão punitiva estatal.

§ 2º O acordo será formalizado nos autos, com a qualificação completa do investigado e estipulará de modo claro as suas condições, eventuais valores a serem restituídos e as datas para cumprimento e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e seu advogado.

§ 3º A confissão detalhada dos fatos e as tratativas do acordo deverão ser registrados pelos meios ou recursos de gravação audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações.

§ 4º É dever do investigado comprovar mensalmente o cumprimento das condições, independentemente de notificação ou aviso prévio, devendo ele, quando for o caso, por iniciativa própria, apresentar imediatamente e de forma documentada eventual justificativa para o não cumprimento do acordo.

§ 5º O acordo de não-persecução poderá ser celebrado na mesma oportunidade da audiência de custódia.

§ 6º Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo ou não comprovando o investigado o seu cumprimento, no prazo e nas condições estabelecidas, o membro do Ministério Público deverá, se for o caso, imediatamente oferecer denúncia.

§ 7º O descumprimento do acordo de não-persecução pelo investigado, também, poderá ser utilizado pelo membro do Ministério Público como justificativa para o eventual não-oferecimento de suspensão condicional do processo.

§ 8º Cumprido integralmente o acordo, o Ministério Público promoverá o arquivamento da investigação, sendo que esse pronunciamento, desde que esteja em conformidade com as leis e com esta Resolução, vinculará toda a Instituição”.

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No pronunciamento final do procedimento do qual resultou a Resolução, consta como fundamento para sua edição, além da contextualização mundial acima mencionada, o princípio da eficiência e a opção da Constituição de 1988 pelo sistema acusatório – e não pelo sistema inquisitorial – o que cria as bases para uma mudança profunda na condução das investigações criminais e no processamento das ações penais no Brasil, e possibilita a criação, por meio de resolução do Conselho Nacional do Ministério Público, do acordo de não-persecução penal [2]. E conclui a comissão redatora do pronunciamento:

“Diante dessas razões, é que esta Comissão entende que, com o acolhimento das propostas aqui delineadas, haveria um grande avanço na qualidade do nosso Sistema de Justiça, já que haveria:

a) uma celeridade na resolução dos casos menos graves (evitando-se, inclusive, que o nosso STF tenha que discutir questões bagatelares menores, como vem fazendo, que são completamente incompatíveis com a relevância que deve ter um Tribunal Supremo); b) mais tempo disponível para que o Ministério Público e o Poder Judiciário processem e julguem os casos mais graves, tendo a possibilidade, de tal maneira, de fazê-lo com maior tranquilidade e reflexão; c) haveria economia de recursos públicos, já que os gastos inerentes à tramitação do processo penal seriam reduzidos (ou seja, menos processos judicias, menos gastos); d) minoração dos efeitos deletérios de uma sentença penal condenatória aos acusados em geral, que teriam mais uma chance de evitar uma condenação judicial, dando um voto de confiança aos não reincidentes, minorando, também, os efeitos sociais prejudiciais de uma pena e desafogaria, também, os estabelecimentos prisionais”.

Vislumbra-se nessa alvissareira iniciativa uma legítima manifestação do funcionalismo penal na medida em que a Resolução editada navega naquilo que se denomina de espaço de conformação dado pelo legislador às diretrizes possíveis da política criminal.

A política criminal, segundo Figueiredo Dias, tem a função de “servir de padrão crítico tanto do direito constituído, como do direito a constituir, dos seus limites e da sua legitimação. Neste sentido se deverá compreender a minha afirmação de que a política criminal oferece o critério decisivo de determinação dos limites da punibilidade e constitui, deste modo, a pedra-angular de todo o discurso legal-social da criminalização/descriminalização” [3].

A definição de requisitos para a mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal, por meio de uma norma infralegal, equivale a legítima e salutar penetração das decisões valorativas político-criminais no sistema do Direito Penal a que se refere Claus Roxin [4].

Ao Ministério Público, titular exclusivo da ação penal, é franqueado inegável protagonismo de agente definidor de políticas criminais, notadamente na fase inquisitorial, sendo que o recorte efetuado pela resolução é absolutamente legítimo, sobretudo se considerarmos o ciclo restrito de infrações que serão por ele alcançadas.

Semelhante recorte é efetuado, anualmente, pela edição dos chamados indultos natalinos, que se materializam por meio de decreto do Presidente da República e implicam na extinção da punibilidade de vários condenados mediante pressupostos discricionariamente estabelecidos, abarcando, atualmente, quase todo tipo de infração penal (salvo os delitos hediondos e equiparados). A liberdade de conformação do indulto sempre foi considerada manifestação de uma política criminal entregue ao Presidente da República. Pretende-se demonstrar com este exemplo, que uma proposta de política criminal pode ser exercida por um dos seus principais atores - o Ministério Público – notadamente quando voltada, como no caso em análise, à valoração consequencialista garantista dos crimes contemplados pela proposta. Outros exemplos de políticas criminais oferecidas por outros importantes atores merecem ser lembrados;

I) o protagonismo do CNJ, que regulamentou, por meio da Resolução n.º 213, as audiências de custódia;

II) a importante atuação do STF ao definir os parâmetros para se autorizar a execução provisória da pena após a condenação em segunda instância (ADCs 43 e 44), ou a que definiu os pressupostos para a aplicação do princípio da insignificância (HC nº 84.412-0/SP);

III) os chamados procedimentos da Verificação Preliminar de Informação (VPI), utilizados pela polícia judiciária, destinados à verificação da procedência das informações para posterior instauração de inquérito policial, formalmente normatizada, por exemplo, o Departamento da Polícia Federal pela Instrução Normativa nº 01/1992;

IV) baseado na celeridade e eficiência, a Polícia Civil do Estado de São Paulo, por meio de portaria, implantou o Núcleo Especial Criminal – NECRIM, ambiente policial de conciliação para infrações de menor potencial ofensivo.

Diante de tantos exemplos emblemáticos – e aceitos sem resistência pela comunidade jurídica -, importante reproduzir o escólio de Busato:

“(...) as eleições de diretrizes político-criminais referentes à atuação do Ministério Público têm, necessariamente, grande influência nos rumos que seguirá o Direito penal brasileiro, tanto no estudo da dogmática, da Política Criminal, como no desenvolvimento de uma necessária linguagem própria que corresponda aos objetivos visados pelo Estado com a aplicação das consequências jurídicas do delito. Não tenho qualquer dúvida de que cada Promotor de Justiça, em sua atuação político-criminal cotidiana, ao decidir, a respeito dos rumos interpretativos de cada impulso da Justiça Criminal, traz a lume os pontos que vão ser objeto de discussão técnico-jurídico. (...) Assim, é muito importante que o Ministério Público esteja consciente do papel determinante que exerce na evolução do desenvolvimento dogmático do Direito penal brasileiro, dado que suas opções político-criminais representam um papel de verdadeiro ‘filtro’ das questões que doravante tendem a ser postas em discussão” [5].

E antes que se acuse a proposta de ativismo ministerial, cumpre destacar que uma das principais funções de uma política criminal institucional é justamente servir de instrumento de combate aos voluntarismos individuais que acabam por desagregar a unicidade do direito e a segurança jurídica.

Quanto a legalidade estrita, não se verifica qualquer prejuízo ao indigitado/réu, pois o instituto não amplia o poder punitivo do Estado. Ao contrário. Trata-se de instituto que beneficia o implicado que, além da diminuição da pena, não experimentará qualquer sentença penal condenatória contra si proferida. A extensão de institutos penais benéficos é prática comum na dogmática penal brasileira, bastando lembrar o que ocorre, por exemplo, com o pagamento de cheque sem fundos antes do recebimento da denúncia. A rigor, referida situação levaria tão somente a incidência da causa de diminuição de pena prevista no art. 16 do CP. Porém, a jurisprudência consolidou que, neste caso, por razões de política criminal, há uma exceção mais favorável ao réu, e a ação penal não pode ser iniciada. Neste sentido é a súmula 554 do STF “O pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal”.

Também não se vislumbra prejuízo à vítima, notadamente nos crimes em que ela é bem definida ante a previsão de reparação de danos.

Em suma, não se vislumbra prejuízo à Justiça Pública/interesse público, porque sob a análise do custo-benefício trazido pelo instituto, fruto da onda consequencialista em que se encontra o direito atualmente, em que já se reconhece a incapacidade do Judiciário dirimir, tempestiva e satisfatoriamente, todos os conflitos que a ele são levados, é muito mais vantajoso uma imediata decisão negociada, que cumpra a função dirimente do conflito do que uma decisão proferida ao longo de anos, incapaz de cumprir com as funções da pena e nem de recompor o sentimento social de validade das normas.

Por fim, não se pode deixar de analisar a norma aqui discutida sob um enfoque econômico, ainda que em breves linhas. E não vamos apenas afirmar o óbvio: o acordo de não persecução penal trará economia de recursos. O consenso entre as partes se estabelece num ambiente de racionalidade, apresentando vantagens recíprocas, jamais substituída a contento a partir de posicionamentos exteriores.


Notas

[1]   SCHÜNEMANN, Bernd. Um olhar crítico ao modelo processual penal norte-americano. In: SCHÜNEMANN, Bernd; GRECO, Luís (coord.). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 240.

[2]   Pronunciamento final no Procedimento de Estudos e Pesquisas n.º 01/2017, p. 31-32. Disponível em http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Pronunciamento_final.pdf. Acessado em 10.09.2017.

[3]     DIAS, J. de F. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: RT. 1999. p. 42.

[4]     ROXIN, Claus. Política criminal y sistema del derecho penal, 2ª ed. Buenos Aires: Hammurabi. 2002. p. 49.

[5]     BUSATO, Paulo César. Reflexões sobre o Sistema Penal do nosso tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, pp. 69-70.

Sobre os autores
Renee do Ó Souza

Promotor de Justiça em Mato Grosso

Rogério Sanches de Lima

Promotor de Justiça no Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Mato Grosso e do CERS (Complexo de Ensino Renato Saraiva).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Renee Ó; LIMA, Rogério Sanches. A legalidade do acordo de não persecução penal: uma opção legítima de política criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5371, 16 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60861. Acesso em: 22 dez. 2024.

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