Resumo: O presente trabalho tem como objetivo a análise do trabalho escravo no ordenamento jurídico brasileiro, buscando-se analisar a evolução histórica do instituto, o arcabouço normativo, formas de combate, bem como a exposição da temática da “lista suja” frente as recentes decisões judiciais sobre o tema.
Palavras-chave: Trabalho análogo ao de escravo. Histórico. Legislação. Formas de combate. Lista suja.
Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. Breves apontamentos históricos do trabalho escravo no mundo.3. Breves apontamentos históricos do trabalho escravo brasileiro. 4. Da terminologia adotada atualmente.5. Legislação internacional e nacional. 6. Formas de combate do trabalho em condições análogas à de escravo. 7. Da “lista suja”. 8. Considerações finais.
1. Considerações iniciais
A história do trabalho escravo acompanha a história de humanidade, havendo indícios de sua aplicação desde tempos remotos, quando os guerreiros vitoriosos escravizavam os seus adversários perdedores. Com o passar do tempo e o desenvolvimento da sociedade, a escravidão clássica foi abolida, entretanto, novas formas contemporâneas de escravidão ainda persistem, inclusive no Brasil.
Para a compreensão deste instituto, faz-se indispensável, em um primeiro momento, analisar a evolução histórica do trabalho escravo no mundo e no Brasil, para, em um segundo momento, abordar as formas contemporâneas de escravidão.
Posteriormente, será apresentado o arcabouço normativo que repele as práticas de trabalho escravo, bem como as tentativas de retrocesso, a exemplo do Projeto de Lei nº 6442/2016.
Por fim, examinar-se-á a problemática do cadastro de empresas e pessoas autuadas por exploração do trabalho escravo em face das recentes decisões judiciais sobre o tema.
2. Breves apontamentos históricos do trabalho escravo no mundo
A história do trabalho escravo remonta aos primórdios das relações humanas. Silva (2010) aponta que há indícios que a escravidão surgiu na Pré História, ao final do Período Neolítico e início da Idade dos Metais, com a descoberta da agricultura. Por outro lado, há indícios de que o trabalho escravo tenha surgido por volta do ano 3000 a.C., no Egito e Sul da Mesopotâmia, expandido gradativamente em outros territórios, como Assíria, Fenícia, Pérsia, Índia, China e Europa.
A escravidão era um meio de subjugação de um povo a outro, em razão das guerras que ocorriam entre as tribos e povos (SANTOS, 2003). Neste período, como destaca Silva (2010), a história já aponta registros de servidão ou escravidão por dívidas.
Contudo, apesar de já existir traços de escravidão anteriormente, foi no Egito, Grécia e Roma que o instituto ganhou maiores proporções, uma vez que os prisioneiros de guerra foram considerados escravos, cujos filhos também já nasciam nessa condição (Santos, 2003).
No Egito, a sociedade era dividida entre dois grandes grupos: o dos dominantes, compostos por nobres, escribas e sacerdotes, e o dos dominados, composto por artesãos, felás (camponeses e pessoas que trabalhavam em obras públicas) e escravos, sendo que estes tinham alguns direitos, como o casamento com pessoas livres, aquisição de bens e capacidade de testemunhar em tribunais (SANTOS, 2003).
Já na Grécia, embora existente a escravidão desde o período Homérico, que perdurou entre o século XV e o século VIII a.C., foi utilizada em grande escala no período Helenístico (séculos V e VI a.C.). O trabalho escravo era imposto aos prisioneiros de guerra e também àqueles não honravam com suas dívidas contraídas (SILVA, 2010).
Em Roma, os escravos sequer faziam parte da sociedade, uma vez que eram considerados como coisas (res), não fazendo jus a direitos civis ou de cidadania. Registre-se, no entanto, que alguns possuíam alguns direitos, como o de comparecer perante os tribunais, com intermédio de seus senhores, bem como não serem mortos ou torturados (SILVA, 2010).
Na localidade, em 366 a.C., decretou-se a proibição da escravidão por dívidas e, em 326 a.C, a escravidão foi abolida.
Como leciona Santos (2003), com o advento e ascensão do Cristianismo, a escravidão foi gradativamente atenuada por ideais religiosos de igualdade, fraternidade e liberdade, preconizado pela Revolução Francesa. São Tomás de Aquino e Santo Agostinho propugnavam um tratamento digno e caridoso aos escravos, mas não condenavam a escravidão.
Superado o período escravagista, na Idade Média prevaleceu o trabalho sob o regime de servidão, no qual grande parte do poder foi transferido do monarca aos chamados senhores feudais (SANTOS, 2003), que ofereciam proteção militar e política aos servos em troca de sua liberdade (GARCIA, 2011).
Nesse período, apesar de os servos não serem considerados escravos ou coisa (res), eram tidos como acessórios das terras pertencentes aos senhores feudais, em situação de desumanização. Submetiam-se a uma série de restrição de direitos, como proibição de contrair casamento sem autorização do seu senhor, bem como de se deslocar para outras terras (SANTOS, 2003).
Paralelamente à servidão, não obstante ser o regime mais utilizado na Idade média, adverte-se que o trabalho escravo não desapareceu por completo, sendo utilizado ainda pelos senhores feudais quando aprisionavam os derrotados em batalhas, negociavam no mercado de compra e venda de escravo, além de haver um intenso tráfico de escravos promovido por turcos (SILVA, 2010).
Autores notam semelhanças entre a servidão na Idade Média e a servidão por dívidas contemporânea:
não é exagero afirmar que a servidão serve de referência analítica ao trabalho análogo ao de escravo rural contemporâneo, na modalidade da servidão por dívidas, pois, assim como o servo da Idade Média não podia romper o vínculo que o atava ao senhor feudal, por estar em constante débito com aquele, o trabalhador rural reduzido a condição análoga à de escravo, em razão de dívida, também não pode desligar-se do liame que o prende ao fazendeiro (SILVA, 2010, p.93).
Com o declínio do feudalismo, que se concentrava basicamente na zona rural, no final da Idade Média e início da Idade Moderna, observou-se processos gradativos de expulsão dos servos das glebas, o que acabou por romper com as relações servis (DELGADO, 2013).
Na Idade Moderna, todavia, os traços de escravidão voltaram a se fortalecer no chamado Novo Mundo, que teve como característica as navegações promovidas por povos europeus, sobretudo de Portugal e Espanha.
Nas terras encontradas, os europeus passaram a subjugar os nativos americanos, denominados de indígenas, causando esgotamento das forças de trabalho disponíveis nas colônias e conduzindo à escravidão negra para suprir a escassez de mão-de-obra (SILVA, 2010).
A partir deste momento, o tráfico negreiro ganhou contornos cada vez mais densos, sendo difundido em países mercantilistas de todo o mundo.
As condições de trabalho e de sobrevivência na escravidão negreira também eram extremamente precárias, uma vez que os escravos estavam sujeitos a castigos e torturas, excesso de trabalho, baixa expectativa de vida e precárias condições de higiene e saúde (SANTOS, 2003).
A sociedade mundial, já na Idade Contemporânea, é drasticamente modificada pela Revolução Industrial. Garcia (2011) assevera que a necessidade de pessoas para operar máquinas a vapor e têxteis acabou por impor a substituição da mão de obra de trabalho escravo, servil ou coorporativo por trabalho assalariado, ou seja, trabalho livre.
É a partir desse momento histórico que surge o Direito do Trabalho, ou seja, com o fim da escravidão e servidão, já que a categoria central de formação do direito do trabalho é o trabalho subordinado, mais propriamente a relação empregatícia (DELGADO, 2013). Como a existência do trabalho livre é pressuposto histórico-material do surgimento do trabalho subordinado, este não ocorre de maneira relevante na história enquanto não assentada uma larga oferta de trabalho livre e remunerado.[1]
3. Breves apontamentos históricos do trabalho escravo brasileiro
No Brasil, a escravidão sempre esteve presente na história. Desde a chegada dos colonizadores, iniciou-se um processo de escravização dos nativos deste território.
A força de trabalho dos índios foi utilizada no setor rural cafeeiro e de cana-de-açúcar, atingindo elevados patamares de rentabilidade e produção. Porém, para suprir toda esta demanda na produção rural, o mão-de-obra dos nativos americanos não foi suficiente, sendo introduzida, gradativamente, a utilização do trabalho de negros.
Com o passar do tempo, os próprios colonos passaram a preferir a utilização de trabalho escravo negro,
já que o tráfico de escravos africanos interessava não só aos traficantes, quanto à própria Coroa portuguesa. Com efeito, enquanto a captura do nativo americano era praticamente um negócio interno da colônia, pois, com freqüência, até o quinto devido à Coroa era sonegado, o tráfico negreiro constituía importante fonte de receita ao governo e aos comerciantes. (SILVA, 2010, p. 100)
Como observa Melo e Lorentz (2011), o Brasil colonial era pautado no quadrinômio escravidão, latifúndio, monocultura e extrema dependência do mercado externo. Com o advento do Estado Liberal, o que se deu a partir da Revolução Francesa, a burguesia, que já detinha poderio econômico, passou a almejar e conquistar o poder político. O fortalecimento dos burgueses, sobretudo após a Revolução Industrial na Inglaterra, impulsionou a conquista de novos mercados, o que, consequentemente, fez com que os ingleses proibissem a escravidão e compelissem os outros países a extinguirem esta prática também.
No Brasil, a abolição da escravidão veio a ocorrer de forma gradativa e somente depois que a classe dominante obteve do Estado compensações financeiras pela liberdade dos escravos, por meio da Lei do Vente Livre e da Lei dos Sexagenários (DODGE, 2002).
Assim, no Brasil, o sistema escravagista perdurou até o século XIX, quando em 12 de maio de 1888, a Lei Áurea (Lei nº 3.353) aboliu formalmente a escravidão, por forte influência inglesa (MELO; LORENTZ, 2011).
Todavia, é importante esclarecer que, em terras brasileiras, ao contrário dos países europeus, nos quais a escravidão foi abolida com vistas ao desenvolvimento do capitalismo, a introdução do trabalho livre se deu em razão de interesses externos de ocupação e exploração da terra, objetivando-se a perpetuação do sistema territorial e agrícola no qual a escravidão estava inserida (SILVA, 2010).
A partir da abolição da escravatura, o Brasil passou a utilizar mão de obra de imigrantes europeus para substituir os negros. A própria classe dominante brasileira, mesmo antes da proscrição da escravidão e já prevendo sua inevitabilidade, demonstrou interesse nestes trabalhadores europeus, de modo que por volta de 1850 foi promulgada uma lei de desenvolvimento de uma política de imigração de estrangeiros, mormente de europeus (SILVA, 2010).
Essa mão de obra, portanto, passou a ser utilizada em larga escala após a Lei Áurea. Melo e Lorentz (2011) observam que o resultado disto foi devastador para os ex-escravos negros, já que tinham uma suposta liberdade, mas se encontravam ceifados de possibilidades de trabalho remunerado, passando por intenso processo de exclusão social e marginalização.
Apesar desta pretensa liberdade dos escravos, é certo que o Brasil não deixou de ser uma país escravocrata. E a escravidão moderna não se restringe aos negros ou indígenas, como anteriormente. Na verdade, revela-se como
uma escravocracia camuflada. Hodiernamente, não somente os negros estão relegados à herança negativa da escravidão oficial, como também os brancos, pobres, mulheres e crianças são submetidos a verdadeiros regimes escravocratas de trabalho nas mais diversas regiões do País; desde as mais industrializadas, como o Sul e o Sudeste, às menos desenvolvidas, como Norte e Nordeste. (SANTOS, 2003, p. 54).
Assim, a escravidão moderna apresenta-se em nova roupagem, porém guarda traços bastante semelhantes com a escravidão antiga.
4. Da terminologia adotada atualmente
Há muita controvérsia doutrinária no que tange à terminologia ideal a ser adotada para designar a nova faceta da escravidão nos tempos contemporâneos.
Para Melo (2003), hodiernamente, quando se fala em “trabalho escravo”, o que se imagina é aquele tipo de trabalho empregado em séculos passados, realizado de fato pelos escravos. Assim, adverte que, ao realizar esta associação, incorre-se em um grande risco de tornarmos insensíveis às formas modernas de trabalho escravo, já que estas são revestidas de vestes de maior “licitude”.
Com a abolição da escravidão tradicionalmente concebida, surgem novas formas de dissimulação que causam resultados práticos muito parecidos.
A terminologia de trabalho escravo contemporâneo, assim, mostra-se mais adequada a demonstrar as novas formas de exploração do trabalho humano, apesar de persistir a utilização da expressão “trabalho escravo” pela doutrina e órgãos governamentais (SILVA, 2010).
As Convenções nº 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho se utilizam da terminologia “trabalho forçado ou obrigatório”. A Convenção nº 29 da OIT, equipara as duas expressões, de modo que
para os fins da presente Convenção, a expressão “trabalho forçado ou obrigatório” designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade. (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1930).
Em seu art. 2º, a Convenção nº 29 da OIT ressalva que o serviço militar, serviço cívico em país autônomo, obrigações derivadas de condenações judiciais, trabalhos em situações de emergência e pequenos serviços comunitários não são considerados trabalho forçado.
Em uma acepção tradicional, Melo (2003) equipara o trabalho forçado ao trabalho escravo, conceituando-os como
toda modalidade de exploração do trabalhador m que este esteja impedido, moral, psicológica e/ou fisicamente, de abandonar o serviço, no momento e pelas razões que entender apropriado, a despeito de haver, inicialmente, ajustado livremente a prestação de serviços (MELO, 2003, p. 14)
Conforme observa Villela (2010), para esta corrente, o conceito de trabalho escravo se contrapõe ao de trabalho degradante, que representa a “falta de garantias mínimas de saúde e segurança, além da falta de garantias mínimas de trabalho, de moradia, higiene, respeito e alimentação” (BRITO FILHO, 2004, p. 13).
Em uma segunda acepção, Brito Filho (2004) entende o trabalho em condições análogas à de escravo como gênero do qual são espécies o trabalho forçado e o trabalho degradante, caracterizando-se como “exercício do trabalho humano em que há restrição, em qualquer forma, à liberdade do trabalhador, e/ou quando não são respeitados os direitos mínimos para o resguardo da dignidade do trabalhador” (p. 14).
Já para Sento-Sé (2000) o trabalho análogo ao de escravo representa uma espécie do gênero trabalho forçado.
No Código Penal brasileiro, adota-se a terminologia “redução à condição análoga à de escravo”, que se desdobra em quatro condutas típicas: sujeição a trabalhos forçados; sujeição à jornada exaustiva; sujeição a condições degradantes de trabalho; restrição de locomoção, por qualquer meio, em razão de dívida contraída com empregador ou preposto.
Para Melo e Lorentz (2011), o conceito penal, que se aplica perfeitamente na seara trabalhista por força do art. 8º da CLT, equipara o trabalho degradante a uma das espécies de trabalho análogo ao de escravo, ou seja, o trabalho forçado. Inclui-se também a jornada exaustiva no trabalho degradante.
Os autores entendem, assim, que o trabalho em condições análogas à de escravo engloba o trabalho forçado (redução ou impedimento do direito de ir e vir, sendo motivado ou não por dívidas trabalhistas, por qualquer meio de coação, seja física, psicológica ou moral), trabalho degradante (realizado em péssimas condições de trabalho e remuneração, com o uso de técnicas de punições vexatórias, como o assédio moral, incluindo-se também as jornadas exaustivas) e também o trabalho desumano (realizado em condições de exposição física ou moral além do que seria possível que um ser humano suporte, violando o art. 5º, III, da Constituição Federal).
Brito Filho (2014) também classifica as condutas do caput art. 149 do Código Penal como típicas (trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho e restrição de locomoção por dívida contraída). Ademais, o parágrafo primeiro elenca condutas por equiparação, quais sejam: cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; e manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho ou apoderamento de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
Soares (2003) defende que a expressão mais apropriada é “trabalho em condições análogas à escravidão”, que abarca
como exploração de mão de obra em tais condições todos os casos em que a dignidade humana é aviltada, notadamente quando o trabalhador é iludido com promessas de bons salários e transportado sem obediência aos requisitos legais, ou impedido de sair do local de trabalho pela vigilância armada ou preso a dívidas impagáveis contraídas perante o empregador, ou, ainda, quando explorado sem atenção aos direitos trabalhistas elementares, tais o salário mínimo, jornada de trabalho normal, pagamento de adicionais, repouso remunerado e boas condições de higiene, saúde e segurança no trabalho. (SOARES, 2003, p. 34-35).
Desta forma, ante a cizânia doutrinária, entende-se por conveniente adotar a expressão abrangente “trabalho análogo ao de escravo” ou ainda seus sinônimos, como observa Silva (2010): “redução a condição análoga à de escravo”, “trabalho em condições análogas à de escravo” e “trabalho em condições análogas à escravidão”, para designar, neste artigo, as formas contemporâneas de escravidão.